1 de maio de 2007

na curva do rio

"Enterrem meu coração na curva do rio", de Dee Brown, tem como nome original em inglês "Bury my heart at Wounded Knee". Lançado em 1970, este livro mudou o modo com que os norte-americanos enxergavam os primeiros habitantes de seu país. Começando com a longa caminhada dos Navajos em 1860, e concluindo trinta anos depois com o massacre de homens, mulheres e crianças Sioux em "Wounded Knee", na Dakota do Sul, a obra conta como os índios norte-americanos perderam suas terras e conviviam com uma sociedade branca dinamicamente expansionista.

Mas recordemos o que os brancos enxergavam em Wounded Knee:

O 7º Regimento de Cavalaria dos Estados Unidos da América havia sido criado em 1 de Agosto de 1866, no Kansas, para reforçar as «campanhas índias» (1866-1891) - ou seja, para defender os colonos, os construtores do caminho-de-ferro, as caravanas e os exploradores de ouro contra os ataques dos índios. Numa época em que ainda não estava em uso a expressão «limpeza étnica», a conquista do Oeste pelos imigrantes brancos e o acantonamento dos índios em reservas passou à História como epopeia civilizadora, e o 7º de Cavalaria adquiriu fama como um dos mais experimentados e eficazes participantes na gesta. O mito foi cimentado com sangue quando o regimento foi dizimado num massacre cruel, na célebre batalha de Little Big Horn. Em 25 de Junho de 1876, o tenente-coronel George Custer - figura controversa, descrito como exibicionista e fanfarrão - atacou temerariamente 3000 guerreiros das tribos Sioux e Cheyenne, chefiadas por Touro Sentado e Cavalo Louco, que resistiam à colonização do território dos Black Hills, uma região sagrada para várias tribos, onde tinha tinha sido descoberto ouro. Custer e todos os 210 soldados de um batalhão do 7º de Cavalaria foram mortos, escalpelizados e esquartejados (e hoje o parque nacional no coração das Black Hills se chama Custer National Park!). O 7º de Cavalaria foi reconstituído e reconquistou os louros em inúmeras batalhas, sendo que uma representação da Fênix - a mítica ave do antigo Egito que renascia das cinzas - foi integrada nos símbolos do regimento. A vingança contra os índios, igualmente sangrenta, deu-se em 1890: em Wounded Knee, no último grande confronto das campanhas índias, onde o 7º de Cavalaria, chefiado pelo coronel Forsyth, massacrou 90 guerreiros e entre 100 e 200 mulheres e crianças índios, incluindo o chefe Big Foot; a cavalaria teve 25 mortos. Wounded Knee continua, até hoje, a ser um símbolo para os defensores dos direitos dos povos indígenas, enquanto por sua vez o 7º de Cavalaria continua ativo inclusive na Guerra do Iraque.

José Mercader comenta: "O general Phillip Sheridan dizia que um índio bom é um índio morto. Os massacres dos autóctones e a forma detalhada descrita pelos poucos sobreviventes das reservas falam de matanças de inteiras populações incluindo mulheres, crianças e anciãos, porque esses selvagens sangüinários impediam o progresso e a civilização, segundo o próprio Theodore Roosevelt. Nas primeiras incursões ao oeste, os soldados gringos mataram em muito pouco tempo mais de 3 milhões de búfalos, para impedir que os autóctones pudessem comer. O governo dos EUA e o seu exército estavam convencidos de que, para ocupar o território, deviam matar os índios, e assim o fizeram, porém de uma maneira verdadeiramente selvagem e sangüinária, como em Wounded Knee, em 1890. E essa mentalidade de pilhagem, de roubo, ficou instalada como política normal oficial nos governantes que se seguiram até hoje".

Os modernos pensadores céticos usam o que aconteceu em Wounded Knee para desqualificar a eficácia do pensamento xamânico, como Richard Petraitis em "Os Xamãs de Subúrbio": "Um índio Paiute chamado Wovoka começou um movimento religioso chamado Dança Fantasma que antecipava o retorno de terras aos índios. Muitos de seus seguidores eram índios Sioux, um povo antes orgulhoso dono de terras que resistiu ao homem branco através da adoção com sucesso de cavalos e armas de fogo. Wovoka alegava poderes sobrenaturais; ele dizia que os mortos iriam retornar e restaurar a terra aos índios. Wovoka disse aos seus seguidores que eles seriam protegidos das balas da cavalaria americana ao usar "camisas Fantasma". O movimento cresceu por dois anos e alcançou seu zênite em um confronto armado, em 21 de dezembro de 1890 em Wounded Knee, Dakota do Sul. O confronto começou com uma tentativa de dispersar uma grande número de índios Sioux, enquanto o exército americano movia-se para prender os líderes do movimento Dança Fantasma. Enquanto alguns guerreiros Sioux estavam entregando suas armas, um tiroteio começou entre os dois lados. Duas armas Hotchkiss, antecessoras de metralhadoras, atacaram o bando Sioux, deixando quase trezentos mortos, entre homens, mulheres e crianças. A mágica nativo-americana havia levado, através de camisas Fantasma e pensamento mágico, a um falso senso de invencibilidade. Foi um trágico fim a uma nação guerreira corajosa."

Nos parece bem mais lúcida a visão do ensaísta português Nicolau Saião em seu artigo intitulado "O Índio e o Ocidente: Reflexos de Duas Visões diferentes sobre o mundo" , que recomendamos:

"Mais ou menos a partir de 1891, passado cerca de um ano sobre o massacre de Wounded Knee perpetrado pelo exército americano sobre os sioux oglalas liderados pelo chefe Big Foot, começou a falar-se em certos círculos de Leste sobre o “problema índio” remanescente. Alguns americanos mais sensíveis às condições em que as outrora poderosas nações índias eram obrigadas a viver, as contínuas tentativas de retirarem aos autóctones o resto dos territórios, transformados em reservas, que ainda estavam na sua posse sem contudo na prática serem por eles controlados, tinham despertado em alguns - escritores, publicistas ou simples particulares - uma espécie de remorso misturado com uma boa dose de má consciência. A seu ver, haveria um triste problema índio, que consistiria em factos existentes a partir da tentativa de genocídio e no claro etnocídio praticado contra a nação índia no seu todo. Esta denominação, nação índia, era sem dúvida reflexo - atravessado por um certo humor negro involuntário, a despeito das eventuais boas intenções - dos ecos que lhes chegavam, com meio século de atraso, da aliança formada pelos cherokees, choctaws, seminoles, creeks e chikasaws e que funcionou durante algum tempo, antes dos seus membros serem definitivamente enviados para lá do Mississipi, como uma “nação doméstica” no interior da outra. Com diversas variantes, sulcado por diferentes contradições, este estado de espírito tem-se mantido até aos nossos dias. Num lúcido ensaio publicado no início dos anos setenta, o escritor francês Claude Roy escreveu com a sua agudeza proverbial que, a seu ver, havia não um problema índio mas sim um problema branco, ou seja: um problema ocidental que através do tempo se comunicara às etnias das diferentes latitudes. E isto porque, como o sublinhou noutro texto o escritor de ascendência Lakota (Sioux) Vine Deloria, o que se passou com os índios norte-americanos revela na perfeição o deficiente sistema societário engendrado pelo homem ocidental, cuja mentalidade cúpida foi um facto infelizmente indesmentível, ainda que camuflado sob o pretexto da evangelização ou da vontade de civilizar."

Analisará assim o poeta Saião:

"Grande parte da civilização ocidental assenta num intrincado jogo de efusão/recalcamento (para usar a terminologia freudiana) que estimula o desejo de acumulação. Ao frustrar pulsões legítimas, o sistema relacional ocidental e cristão (a este respeito sugerimos a leitura de “A neurose cristã” de Pierre Solignac) distorce o pensamento e dá origem à necessidade de posse dos bens, que tudo arrasta na sua frente (o que é caracterizado pelo axioma “uso e abuso” que define o conceito de propriedade). A mística recorrente é, em geral, apenas uma fórmula - e, em rigor, hipócrita e falsa - para tentar impedir que as consequências vão demasiado longe ou, então, para camuflar o que subjaz aos manejos dos sectores dirigentes e possidentes. Nunca passou pela cabeça do índio, antes da dura realidade o esclarecer, que o branco quisesse para exclusivo uso seu e para fins que ao índio pareciam provindos da banal loucura - isto é textual, é um raciocínio dum líder chikasaw, Braço-de-pedra - o vasto território que lhe parecia sem fim e onde as nações índias viviam harmoniosamente devido à arquitetura forjada pelos milênios. Estabilizada por anos e anos de sucessivo aperfeiçoamento que a vastidão e a riqueza do continente permitia, a vida do índio estava recheada de sentido. A vida era por vezes dura, mas sempre se revelava gratificante. Interiormente, o índio interrogava-se mas não se enrolava sobre si mesmo e, se muitas vezes se angustiava, como ser humano que era, as ricas relações no interior da comunidade encarregavam-se de aplacar ou dissolver essa palpitação negativa. Nas tribos do nordeste e da costa atlântica, que foram as que primeiro sofreram a brutalidade do invasor, o choque entre a sua mentalidade libertária e a obstinação primária dos colonos foi o sinal claro do que a seguir iria suceder, uma vez que a terra não era para o índio um corpo político e sim um lugar onde residia com as árvores, os animais, as montanhas, a chuva e o deserto, em suma: tudo aquilo que constituía o mundo de realidade e de sonho onde não fora instaurado o complexo de culpa que constitui uma das bases fundamentais do pensamento religioso ocidental e, inevitavelmente, o seu cerne filosófico. Para o índio norte-americano a morte não era, como para o cidadão europeu, uma essência e sim uma cessação. Nunca uma imanência, antes uma consequência bem reconhecível - uma facada, um tiro, uma doença ou a muita idade. Arguto, encarava por isso a protérvia judaico-cristã como uma história absurda ou uma impostura. E por isso mesmo o seu mundo conceptual, extremamente perigoso para o que lhe chegava abruptamente, tinha de ser destruído pelo homem branco. Assim sendo, é fácil tirar a conclusão maior destas linhas e a única para que chamo vivamente a vossa atenção: sempre que uma civilização baseada na tradição secular livremente engendrada se confronta com outra baseada na evolução acelerada e na acumulação, a primeira desaparece ou é gravemente transformada pela segunda."

Nenhum comentário: