30 de maio de 2007

Festas populares dos Andes peruanos

Fiesta - Music from Peru
Recorded by Peter Cloudsley 1980 - 2000

"Fiesta - Music from Peru" contém extratos das atmosféricas e hipnóticas gravações de Peter Cloudsley feitas ao longo das duas últimas décadas no Peru. O CD vem com descrições detalhadas das cerimônias e cantos, tem 61 faixas e um encarte de 12 páginas coloridas com fotos, letras e completa documentação de seu trabalho etnológico.

Segundo a "Sacred Hoop Magazine" (primavera de 2002), Fiesta Music is an album which only contains music from the Andes. It starts with the most amazing song with the singers embodying bear spirits if I am not mistaken . Its raw, wild peasant music and is so alive it's untrue. If you want to explore the music of this culture this is an excellent start.

Também em 2002 a britânica SLAS - "Society for Latin American Studies", recomendava esse cd: A fine selection of fiesta music from Peru has been collected by Peter Cloudsley and is now released on CD by Pepe Chiriboga, Soqta Estudio, Lima, Peru Tel: (511) 4404381. This CD reflects recording work over the last 20 years, from 1980 until 2000 and has 61 tracks from fiestas, carnival, and pilgrimages in the departments of Cusco, Apurimac, Puno, Cajamarca, Ancash, and Amazonas. With many fiestas changing out of all recognition, because of changing patronage, the stress of tourism, political manipulation, new inroads made by television and a new market economy, and altering attitudes to fiestas, many of the earlier recordings are now unique. This is a fascinating selection and will certainly appeal to anyone with an ear for Peruvian music and feeling for indigenous community spirit and Andean culture.

As gravações "ao vivo", registrando a sonoridade ímpar das vozes e instrumentos próprios da região, foram feitas por Cloudsley em:

1. Carnaval em Canchis, Cusco
2. Peregrinação ao Nevado de Koilloriti, Quispicanchis, Cusco
3. Carnaval em Andahuaylas, Apurimac
4. Carnaval em Copisa, Apurimac
5. Festa da Virgem de Candelária em Puno
6. Carnaval em San Marcos, Cajamarca
7. Festa da Tentação, em Puno
8. Festa das Cruzes, em Puno
9. Festa de Jaca Tisariy, em Ancash
10. Festa de São João no Amazonas e na Ilha de Taquile (Lago Titikaka)
11. Festa de São Pedro e São Paulo em Puno

Usando os mesmos parâmetros do blog sombarato (veja aqui), estou disponibilizando o download das mp3 do cd ao mesmo tempo em que recomendando sua aquisição. Extraia o sumo em:


Conheça mais sobre o etnomusicólogo britânico Peter Cloudsley lendo suas entrevistas em: "Ayahuasca Retreats - An Encounter with an Amazonian Shaman" e "The Cactus of Vision - San Pedro and Shamanic Tradition of Northern Peru".

Para ver mais sobre as festas tradicionais peruanas, o leitor poderá assistir o vídeo Wylancha (Espanhol-Inglês), 1994, 28 min."O sacrifício ritual de alpacas ou Wylancha é celebrado durante os carnavais. Na comunidade de Molloko (Acora, Puno) é ocasião para solicitar às divindades proteção e fertilidade." Dirigido por Gisela Cánepa Koch. Assista também o vídeo Mamita Candelaria VHS-NTSC (Espanhol-Inglês), 1996, 40 min. "A Virgem Candelária em Puno é símbolo de pureza e fertilidade. Ela representa o lago, a terra, o raio e as minas. Uma grande variedade de danças se apresentam durante as duas primeiras semanas de fevereiro". Produzido por Juan Ossio. Dirigido por Luis Figueroa.

26 de maio de 2007

¡Pachamama, Santa tierra Kusiya Kusiya!

¡Óyeme, Pachamama, viento frío besando, viento frío besando, muchos años estuve! ¡Óyeme Pachamamita! ¡Por tierra y arena he andado, viento frío he andado, viento frío he besado! ¡Acórtame el camino!

O sonho de Benito Condorí (relato indígena) - por Manolo Pliego Iglesias, cfm

Benito Condorí había perdido sus llamas, y aquella mañana se fue a buscarlas al cerro, preocupado pues el puma estaba haciendo daño y mientras se encaminaba para el cerro junto a su perrito, sacó su chuspa y se puso a coquear su acullico de coca para tener ánimo. Cuando llegó al cerro el sol estaba bien alto, busco sus llamas en la pampita de las chillaguas y no estaban, después en el campo de los irus y tampoco, a la tardecita llegó a la abrita de la apacheta, hizo su oración a la Pachamama y dejó su acullico de coca debajo de una piedra. El sol ya estaba de tarde y la noche se acercaba. Entonces se fue al puesto para pasar la noche y seguir buscando al otro día, se abrigó con su ponchito y se durmió. Cuando estaba profundamente dormido tuvo un sueño: "De la apacheta yo vi como si naciera de adentro de la tierra una mujer en forma de árbol como Queñua, sus pies quedaron en la tierra como raíces, su cuerpo era el tronco y las ramas y sus cabellos eran las hojas. Y diciéndome me hablo: Yo soy la Pachamama, yo soy toda y estoy en todo, mira mis pies ahí están tus antepasados, y me dio una escalera hecha de pan y me dijo; Sube, y escucha mi corazón, yo subí y vi un cielo muy azul y un olor a coa invadió todo el lugar, acerqué mi oído a su seno y escuché las voces de mis hermanos huérfanos que vagan por el mundo porque han perdido a su madre. Bajé del árbol y se hizo viento sus cabellos se trasformaron en plumas y voló un cóndor. De su cuerpo se hizo una vicuña y de sus pies una serpiente que se perdió para adentro. Y todo el lugar donde ella había estado se convirtió en una hermosa chacra donde maduraban las mejores papas, maíces y quinuas que han visto mis ojos. De repente, ahí no más me desperté de mi sueño y estaba amaneciendo y contento me fui a buscar mis llamas y las encontré pasteando tranquilas en el ciénago, las conté y no faltaba ninguna, las rodeé y me volví para el rancho junto a mi perrito. Cuando llegué le conté a mi compañera Lidia: Anoche me soñé con la Pachamama..."

Aos leitores

Tinku = Encontro

As palavras das línguas vivas dos Andes, na atualidade, têm em seu conteúdo, não só um significado semântico, mas também se pode encontrar uma mensagem pragmática, que possui características visionárias praticadas no tempo e espaços dos runas (povos) tawantinsuyanos. Mais além de dar a entender as pessoas os primeiros conteúdos ou o significado literal das palavras, as palavras do quechua contém ainda outros significados; aqueles que fazem referência a fatos, feitos, ocorrências, princípios divinos, sociais, telúricos e visionários, significados de interrelações multidimensionais e multifacéticos.

Os dicionários fazem referência a Tinku como "Encontro. Ato de encontrar-se". E, alguns outros, lhe dão como sinônimo a "choque", entendemos aqui de enfrentamento. No plano de categorias gramaticais, esta palavra (tinku) chega a ser "nome". Entretanto é mister tocar também o referente a sua atividade, ou seja, a ação; o Tinkuy. Para muitos esta palabra chega a ser simplesmente "verbo no infinitivo", cujo conceito é "Encontrar-se alguém ou algo com um opuesto, seja concreto ou subjetivo, em um tempo e espaços determinados". A característica deste verbo é a permanência do sufixo –y. Entretanto, uma das funções deste sufixo é também a de nominalizar o verbo. Isto quer dizer que Tinkuy é tanto verbo como nome. E a maioria dos verbos quechuas, em sua forma infinitiva, são também nomes confirme a quais contextos estejam se referindo as palavras que a acompanham. O fato de que muitos runas (seres humanos) se refiram à atividade de encontro como Tinku e outros como Tinkuy, tem que ver com a variedade dialetal da língua e as diferenças multidimensionais da natureza humana em relação às multidões de Ayllus (comunidades, bairros, famílias, etc.) em todo o conteúdo de Pacha.(Pachamama).

O Tinkuy ou Tinku antes que mais nada, ou seja antes de ser dança ou tipo de baile, é o "encontro de dois ou mais opostos para dar-se determinados processos e chegar a concretar um "equilíbrio" baseado em princípios cosmovisionais em que intervém as forças telúricas para o cumprimento da complementariedade paritária. Dentro deste encuentro de dois ou mais Ayllus se efetuam os compartilhamentos de posses. Uma das principais é o mukhuchinaku; uma maneira de compartilhar os alimentos dos participantes, o parlarikuy; (encontrar-se para falar, dialogar, conversar) e nisto se tocam temas de interesse que tem a ver com as realidades dos ayllus participantes, e se nos tempos Inkanos o Tinkuy era "continuado" com o Aqha, (chicha, bebida fermentada de milho) a modernidade a que todo ayllu está submetido hoje obriga a evoluir; o mais usual nos Tinkuykuna da atualidade é o álcool. Dentro destes, e muitos outros fatos mais, na atividade do Tinkuy estão presentes as apresentações de danças com características que possuem referências caracterizando ao ayllu correspondente. De modo que as danças nomeadas de Tinku que observamos atualmente são parte do Tinkuy ou Tinku. E de uma maneira simples estas ocorrências tawantinsuyanas estão levando a discussões quanto à "Origem do Tinku", que alguns querem atribuir especificamente à região ao norte de Potosí, na\ Bolívia. Na verdade o Tinkuy se dava, se dá e seguramente sempre se dará com individualidades ou ayllus em seus próprios tempos e espaços. Pensar de outro modo seria deixar atrás os princípios do povo tawantinsuyano, (de Tawantinsuyu, nome do que dizemos Império Inca) que é de reciprocidade, vida em harmonia, e alcançar a tranquilidade em interrelação com a natureza.

Traduzo essas palavras e explicações de um jornal boliviano, querendo deixar aqui mais esse registro da poética andina e das questões culturais "em processo" nos Andes. Este blog ficará a partir de hoje um pouco em suspenso, pois amanhã tomo o caminho do Tawantinsuyo. Na lua cheia já estarei em Cusco, e na seqüência teremos um grande Tinkuy na peregrinação ao Apu Koilloriti, onde os ayllus tradicionais se encontram para muitos dias de danças, festejos, devoção e rituais. Assim que puder estarei enviando notícias de lá. O leitor que desejar pode escrever-me pessoalmente para o mail: alcanave@gmail.com

Agradeço, a todos que aqui passarem, seu interesse e carinho para com este blog. Convido-os também a conhecer a revista da qual participo do conselho editorial, "A Arca da União", em especial no referente à cultura ameríndia os artigos:


Deixo aqui também esse vídeo como uma mostra do que são os Danzarinos de Tijera de Apurímac e Ayacucho, no Peru, uma sorte de "clown" andino cuja formação possui caráter iniciático dentro de uma confraria de expertos "dançarinos de tesoura" (para mim são reminiscências da Ásia Central que permanecem por lá):

Missa Kewere


MARLUÍ MIRANDA: 2 IHU KEWERE: REZAR (1997)

Há mais de 20 anos que Marlui Miranda, etnóloga e compositora brasileira, pesquisa e interage com tribos de índios do Amazonas. Quatro anos antes de "2 IHU Kewere: Rezar", editou "IHU Todos os Sons", uma réplica sonora algo experimental da grande selva visualizada maioritariamente por músicos da nossa civilização e que contou com a colaboração de, entre outros músicos brasileiros e não só, Gilberto Gil. "2 Ihu Kewere: Rezar" é, segundo as próprias palavras da autora, uma «catequese sonora ao inverso» criada no sentido de permitir uma saudável absorção da religião cristã. Algo que poderia servir de Missa aos Jesuitas no Sec. XVI, «por forma a traduzir os conceitos cristãos para o sagrado campo indígena». Gravado pela Orquestra Jazz Sinfônica e o Coral Sinfônico do Estado de São Paulo, esta Missa Kewere além de possuir uma base litúrgica cristã é «incendiada» pela força dos cânticos indígenas carregadas de misticismo, num duelo equilibrado entre o céu e a terra. (Luís Rei - Crónicas da Terra - Músicas sem fronteiras)

O CD comemora o quarto centenário de nascimento de José de Anchieta e aborda, através de uma linguagem de grande diversidade o universo sonoro indígena - através da música das tribos Aruá, Tupari e Urubu-Kaapor - com versos em tupi escritos originalmente por José de Anchieta. Como comenta a própria Marlui a respeito da composição:

"Em Kewere a idéia central é a contraposição de crenças: de um lado, cantos de pajés; de outro, versos cristãos de José de Anchieta e textos da liturgia acomodados dentro da mesma trama composicional".[fonte]

extraia o sumo: download Marlui Miranda - 2 IHU Kewere: Rezar

Faixas:
01 Canto de entrada (Marlui Miranda)
02 Kyrie (Marlui Miranda)
03 Glória (Marlui Miranda)
04 Aleluia: Aclamação ao Evangelho (Marlui Miranda)
05 Credo (Kaapor - Marlui Miranda)
06 Ofertório (Marlui Miranda)
07 Pai Nosso (Texto extraído do Catecismo da Língua brasílica século XVI - Marlui Miranda)
08 Agnus Dei (Marlui Miranda)
09 Comunhão (Marlui Miranda)
10 Ação de Graças (Kaapor - Marlui Miranda)
11 Canto final (Texto José de Anchieta - Marlui Miranda)

25 de maio de 2007

Há luz no fim do túnel?

Republicando por copyleft aqui este ótimo artigo porque vem de encontro ao nosso questionamento sobre o comércio internacional indiscriminado de matéria-prima fitoterápica da tradição indígena:

"Conhecimento tradicional e perspectivas de mudanças na política indigenista brasileira" (Thiago Ávila)

Os conhecimentos que os povos indígenas e populações tradicionais possuem acerca da utilização da biodiversidade nunca estiveram tão em moda. Nunca se falou tanto, se escreveu tanto e se pensou tanto sobre as utilidades que os saberes dessas comunidades indígenas, sertanejas, caiçaras, ribeirinhas, seringueiras ou quilombolas podem ter dentro da ótica da sociedade ocidental, do atual mundo da informação e da contínua transformação. As modernas empreitadas biotecnológicas e o screening desenfreado de espécies vegetais vêm colocando novas e interessantes questões tanto para os países com uma mega diversidade biológica como para os povos indígenas que vivem justamente nessas áreas tão desconhecidas quanto cobiçadas.

Um ponto inusitado dessa temática é que, talvez pela primeira vez na história brasileira, os interesses dos povos indígenas e do Estado brasileiro se encontraram. A diplomacia brasileira e o aparato governamental lutaram, pressionaram e fizeram alianças com outros países nos diversos fóruns internacionais, defendendo a soberania nacional sobre os recursos naturais existentes em seu território. Esse campo escuro – sim porque somente uma ínfima parcela da biodiversidade é “cientificamente” conhecida – foi reconhecido legalmente, em acordos como a Convenção da Diversidade Biológica como de posse e soberania dos países onde essas áreas estão localizadas. Por outro lado, os movimentos indígenas, indigenistas, ambientalistas e de direitos humanos também se articulavam e pressionavam para que também as chamadas “populações tradicionais” fossem reconhecidas como soberanas (ou na nomenclatura que se consagrou: os guardiães) desses novos recursos: os recursos genéticos.

Nessa surpreendente aliança entre duas forças historicamente opostas – Estado brasileiro e povos indígenas – ambos foram reconhecidos como detentores de direitos sobre os recursos genéticos presentes em seus territórios. Os movimentos indígenas e segmentos da sociedade nacional que lutam em favor dos direitos indígenas visualizam nesses novos projetos – que envolvem tecnologia e ancestralidade para produção de novas mercadorias farmacêuticas, cosméticas ou alimentícias – como uma real possibilidade de mudança efetiva no modelo das relações entre os índios e a sociedade brasileira.

Pretendo, neste texto, apresentar de maneira simples e rápida algumas questões que nos auxiliem a refletir sobre as reais possibilidades de reversão do cenário das políticas indigenistas no Brasil. Considero o acesso aos conhecimentos tradicionais como um fenômeno ideal para essa tarefa, principalmente porque ele evidencia aspectos sugestivos das relações entre povos indígenas e Estados nacionais no mundo contemporâneo, colocando em choque os entendimentos e as perspectivas globais versus os desejos e os anseios locais. Enfim, o texto pretende ver se realmente há alguma luz no fim do túnel, visualizando se os “conhecimentos tradicionais” podem realmente alterar os modelos de relacionamento com os povos indígenas.

Em meio a essas perspectivas ora mais localizadas e ora mais globalizadas, temos o Estado-nacional, instituição símbolo e base da modernidade política ocidental. Sabemos que as leis em vigor em um país não existem isoladas do restante de sua sociedade. Ao contrário, elas são reflexos do tempo e espaço onde foram elaboradas e estão entrelaçadas com sua cultura, dizendo muito das sociedades que lhes produziram. Neste sentido, as legislações indigenistas são caminhos para que percebamos como esses Estados – e suas elites políticas - construíram um certo estilo para lidar com as alteridades indígenas dentro de seus territórios.

A história da legislação indigenista brasileira e de atuação dos órgãos governamentais revela os processos de dominação e subjugação impostos aos índios que, obviamente, não aceitaram esse papel “passivo” que os governos nacionais lhe impunham e, desde muito tempo, vêm se organizando para inviabilizar e resistir aos avanços da sociedade brasileira sobre seus territórios. As recentes conquistas nos direitos indígenas, presentes na Constituição de 1988, são uma inovação na história brasileira e foram conquistados, em grande medida, pelos esforços dos diversos movimentos indígenas e de suas redes de articulação nacional e internacional.

No atual contexto das políticas indigenistas, o acesso aos conhecimentos tradicionais é visto como um potencial meio de reversão dessa situação histórica. O acesso aos recursos genéticos e os direitos intelectuais coletivos são produtos de um tempo facilmente identificável, tempo este que uniu os ideais ambientalistas e humanistas – especialmente os direitos humanos – com a causa indígena. Apesar de haver um Projeto de Lei em tramitação no Congresso desde 1995, ainda não há uma legislação sobre a questão que é regulamentada por uma Medida Provisória. A biopirataria, outro conceito que está muito em voga, é um caso de acesso ilegal dos recursos genéticos, podendo envolver o conhecimento tradicional e os direitos a ele relacionados.

Alguns casos tornaram-se famosos. A ayahuasca, utilizada em rituais mágico-religiosos por diversas populações amazônicas, foi alvo de tentativas de patenteamento, o que foi prontamente questionado por diversas organizações indígenas, especialmente a Coordinación de las Organizacones Indigenas de la Cuenca Amazonica (Coica). Os povos amazônicos e suas organizações conseguiram mostrar que aquele tipo de saber era coletivo e sagrado, sendo que o patenteamento dessa planta foi considerado como ofensivo às culturas indígenas. Seus representantes afirmavam que era como se a hóstia fosse patenteada pelos índios! A ação da Coica impediu a apropriação de um conhecimento coletivo, imemorial e comum à diversos povos.

O caso vivido pelos índios Wapichana, moradores ancestrais das bacias dos rios Branco e Rupununi, localizadas nas savanas e cerrados do leste de Roraima e do sul da República Cooperativista da Guiana, representa um caso concreto de biopirataria. Dois processos químicos, chamados cunaniol e rupununies, foram patenteados nos escritórios europeu e norte-americano em nome de Conrad Gorinski. Essas ações foram realizadas entre 1993 e 1998 e surpreenderam os Wapichana ligados ao Conselho Indígena de Roraima, que tomaram conhecimento sobre o assunto por meio de uma reportagem publicada pela Folha de S. Paulo.

O cunaniol é um alcalóide desenvolvido a partir de um veneno de pesca preparado pelos Wapichana que os chamam de cunani. A Guiana é conhecida na etnografia sul-americana como uma região que usa amplamente diversos tipos de venenos de pesca. Os Wapichana relatam que Gorinski prometera pesquisar as plantas, fazer os remédios e ajudá-los na saúde distribuindo medicamentos nas aldeias. Nunca o fez. Filho de uma índia guianense com um fazendeiro descendente dos primeiros europeus a chegarem na região, Conrad Gorinski reconheceu que os processos químicos patenteados são baseados em saberes dos índios daquela região, mas considera que não pode ter uma patente compartilhada porque os índios não sabem lidar com o dinheiro. Ao expor a questão nesses tópicos, o pesquisador revela todos os seus preconceitos acerca das populações indígenas, essencializando-as em estereótipos como crianças, tolos e ignorantes ao ponto de não saberem administrar recursos financeiros.

Os Wapichana começaram a discutir essas questões ainda em 1996, nas reuniões do Conselho Indígena de Roraima e da Amerindian People Association, duas das organizações indígenas mais influentes na região. Denunciaram esse caso em fóruns e encontros, chegaram a receber prêmios internacionais pelo combate à biopirataria, mas não entraram em um questionamento formal das patentes. Não o fizeram, talvez, por estarem envolvidos em questões consideradas mais imediatas, como o reconhecimento oficial de seus territórios tanto no Brasil como na Guiana. Para os Wapichana, os direitos intelectuais coletivos são vistos como uma grande ficção ou um ideal distante. Isso porque os Wapichana ainda não tiveram seus territórios assegurados e seus mais de 6 mil habitantes no Brasil têm que viver em áreas pequenas e apertadas, o que dificulta uma vida tradicional. Como alternativa à vida nas malocas – como são conhecidas as aldeias indígenas em Roraima – eles podem ir para a periferia de Boa Vista atrás de uma renda ínfima obtida nos empregos informais.

O projeto de pesquisa desenvolvido pela conceituada Universidade Federal de São Paulo – Unifesp/Escola Paulista de Medicina entre os índios Krahô é outro caso de acesso arecursos genéticos com conhecimento indígena associado que tem ganhado bastante atenção. A Unifesp assinou um protocolo de intenções com uma associação representativa de seis povos Timbira do Maranhão e Tocantins, inclusive os Krahô. Os Krahô são dois mil índios que vivem no norte do Estado do Tocantins, em uma das maiores áreas de cerrado contínua brasileira, mas somente quatro de suas 18 aldeias são associadas à Wyty-Catë.

Uma doutoranda em psicobiologia pesquisou o que oito wajaca krqhô – pajés e curadores – de três aldeias conheciam sobre plantas medicinais, especialmente aquelas com ações psicoativas. A pesquisa revelou que esses oito pajés conheciam mais de 500 receitas para 400 espécies de plantas do cerrado. Mas a pesquisadora não respeitou os limites das aldeias associadas e realizou atividades na Aldeia Nova, Forno Velho e Serra Grande, onde somente a primeira é associada à entidade parceira da Unifesp.

O que chamou a atenção da imprensa foi uma suposta rixa entre os próprios índios, fato que inviabilizou um “projeto de pesquisa bem intencionado” e que respeitava as legislações sobre o tema, inclusive a repartição de benefícios. Os lucros da utilização econômica dessas pesquisas seriam divididos entre a Unifesp, os índios, a Fapesp e o laboratório interessado. O tratamento dado pela mídia, que explorou uma conotação de rivalidade dos índios como incapazes de chegarem à um acordo entre si, revela um outro ponto constante da história de relacionamento das sociedades indígenas com a sociedade brasileira: o silenciamento da voz indígena. A Associação Kapey (União das Aldeias Krahô) se sentiu excluída do processo de negociação com o conhecimento tradicional e acionou o Ministério Público Federal, exigindo uma taxa de bioprospecção milionária. O resultado foi que a pesquisa foi paralisada por completo há mais de dois anos, justamente na fase de pesquisas das plantas selecionadas que teriam maior chance de se tornarem um medicamento ou outro processo patenteável.

A legitimidade de quem é reconhecido para falar em nome de um povo é o cerne das dificuldades práticas dos projetos de bioprospecção e acesso aos conhecimentos tradicionais associados. Parece que sempre há espaço para um grupo se sentir excluído. Mas o mundo indígena amazônico é uma polifonia política. Cada aldeia é uma unidade política em si e nunca houve um processo de centralização política nas sociedades indígenas brasileiras. A construção de uma representatividade unificada de um povo indígena é um reflexo da situação atual envolvendo os povos indígenas que estão aderindo ao associativismo local como uma alternativa.

Os Krahô percebiam, à medida que iam tomando conhecimento das possibilidades legais garantidas pela Medida Provisória que regulamenta a questão, que esse tipo de negociação era única. Dentro de um processo interno de discussão e negociação envolvendo todos os caciques e dois pajés de cada aldeia, os Krahô concordaram com a continuidade da pesquisa, desde que a instituição proponente fomentasse um projeto relacionado à medicina tradicional que seria administrado pelas cinco associações indígenas existentes entre os Krahô. O que os índios queriam era tornar-se propositores de políticas específicas para valorizar sua medicina, exercendo maior controle social e ampliando as ações de saúde em seu povo.

A Unifesp alegou que não poderia atender à solicitação porque não seria responsável por óbitos de pacientes tratados com um sistema médico que não é cientificamente comprovado. Tentou estimular que dois laboratórios parceiros financiassem a idéia dos Krahô, mas esses argumentaram que tinham receio de serem acusados de biopirataria. Então, a Unifesp passou a alegar que o projeto era uma iniciativa pessoal do cientista, então chefe do seu Departamento de Psicobiologia, que havia se retirado do projeto devido às dificuldades de continuar as pesquisas, dando-o por encerrado. Posteriormente reviu sua posição. O projeto continua parado, esperando uma definição formal da Unifesp. O Ministério Público Federal acompanha o caso de perto, pois é um exemplo concreto da complexidade do acesso a recursos genéticos com conhecimentos tradicionais associados.

Os Krahô deixaram de lado suas divergências e diferenças internas e formularam um projeto político dentro dos parâmetros assegurados pela lei. No caso entre a Unifesp e os Krahô, a legislação entrou em vigor durante o andamento do projeto e, desde então, a universidade não tem conseguido a autorização governamental para pesquisar os recursos genéticos conhecidos pelos Krahô e identificados em suas pesquisas. Ela não consegue a autorização por não atender o posicionamento dos índios de desenvolverem, por conta própria, um projeto na área da medicina tradicional. Não queriam que fosse um projeto da Unifesp, mas que ela conseguisse os recursos financeiros necessários para que os pajés pudessem trabalhar. Queriam viaturas para deslocamento de pacientes para tratamento com pajés e, especialmente, queriam solucionar um grave problema social: muitas famílias têm dificuldade em acessar o seu próprio sistema médico tradicional porque não têm como adquirir os bens solicitados pelo pajé para curar e tratar uma pessoa. O projeto previa uma ajuda para que a família utilizasse os pajés, caso quisessem.

O projeto continua parado. O caso não pode ser descrito, até este momento, como um caso de biopirataria. As promissoras pesquisas estão engavetadas, dentro da lógica da Unifesp, porque os índios não souberam definir quem os representa e colocaram uma condição impossível de ser obtida: um projeto que valorize a prática da medicina tradicional entre os Krahô. Para os Krahô, o que os brancos não conseguem é entender o jeito do Mehin – auto denominação dos Krahô. Os cupen, como são chamados os não-indígenas, não entendem que cada aldeia é uma unidade política em si e que uma posição Krahô legitimada internamente só pode ser obtida através de uma delicada e ampla negociação com as diferentes forças políticas presentes no contexto local. Somente através do reconhecimento desses pressupostos básicos da política tal qual entendida pelos Krahô é que foi possível chegar a um acordo interno: o chamado Projeto Mehcarinc – Fundo de Saúde Krahô cujas idéias principais foram expostas.

Nos dois casos vimos que muitas promessas, expectativas e esperanças foram criadas pelos índios em troca de uma pesquisa com seus conhecimentos tradicionais. Todas essas esperanças foram encerradas pela incapacidade ocidental de encarar o “outro” e sua alteridade de maneira igual e respeitosa. Parece que a desigualdade entre as partes, sejam elas pobres e ricos; desenvolvidos e em desenvolvimento; brancos e negros ou índios e não-índios é o modelo em vigor. A desigualdade é a base da prática entre pares no mundo ocidental. Vimos que os dois casos revelam um entendimento muito presente nas relações com os povos indígenas brasileiros, inclusive nas legislações e políticas indigenistas: os índios são pensados como incapazes e, por essa suposta incapacidade é que o Estado brasileiro legitimou a prática da “tutela” que tanto distingue a política indigenista brasileira frente às de todos os outros países sul-americanos.

Então pergunto: Há luz no fim do túnel frente aos projetos de dominação e subjugação que estão historicamente presentes nas legislações e políticas indigenistas brasileiras? Não tenho uma resposta clara e bem definida, mas acredito que existam luzes, pessoas e movimentos sociais tentando reverter esses quadros. Muitos dos avanços obtidos nos direitos indígenas devem-se, diretamente, aos movimentos indígenas que pressionam os Estados nacionais a reconhecerem o direito à diferença, de possuir uma identidade etnicamente diferenciada, de terem costumes e crenças próprias. Todavia é preciso lutar contra as elites políticas, a monocultura, a homogeneização sociocultural que está sendo estimulada pela nossa sociedade. É preciso se orgulhar das diferenças, sejam elas quais forem. A existência e respeito à diferença já está contemplada nos ideais contemporâneos, ao menos nas constituições de muitos países, inclusive no Brasil. Mas há que lutar contra os mecanismos que impedem a mudança da situação atual.

Até que vençamos essas dificuldades práticas, seremos obrigados a conviver com os alarmantes casos de morte por desnutrição de crianças indígenas na Amazônia e no Mato Grosso do Sul, com os índices de alcoolismo e suicídio de jovens indígenas em tantos povos, com o analfabetismo generalizado nas aldeias, com os preconceitos étnicos, com todo um processo de exclusão e marginalização indígena em nosso país.

A nossa incapacidade de “ouvir” e “aprender” com as diferentes sociedades indígenas existentes naquele território chamado Brasil nos faz desperdiçar boas oportunidades de ampliarmos nosso conhecimento. Timidamente vamos reconhecendo o valor que os povos indígenas e demais populações tradicionais têm para o mundo contemporâneo. Reconhecemos que temos muito que aprender sobre a utilização racional e sustentável dos recursos naturais; reconhecemos que as plantas coletadas no mato e utilizadas por um determinado povo podem se transformar em um precioso bem em uma prateleira comercial e, principalmente, reconhecemos que temos que respeitar esses valores tão diferentes aos nossos olhos. Colocamos isto nas nossas legislações. Agora a questão é incorporar essas práticas à realidade empírica das relações com os povos indígenas, procurando modificar e transformar essas relações em patamares mais justos e eqüitativos.

É preciso reconhecer efetivamente que “eles” são iguais a nós, apesar de diferentes. O respeito incondicional à esta diferença é o que pode trazer as mudanças que procuramos. No Brasil, quando o presidente Lula assumiu o governo, os movimentos indígenas e indigenistas comemoraram a chance de poder trazer alterações nesses quadros. A terra e os regimes de proteção dos conhecimentos tradicionais, acreditavam todos, iriam ser tratados dignamente. Nada aconteceu nesse sentido e, pelo contrário, o governo atual tem tomado atitudes anti-indígenas como a demora na homologação da T.I Raposa Serra do Sol em área contínua e a redução do território da T.I Baú em 300 mil hectares. Mas enquanto os movimentos indígenas, e seus parceiros na luta pelo reconhecimento dos direitos mínimos de respeito e convivência aos povos indígenas, tiverem fôlego, sempre haverá luz e esperança de tempos melhores.

indigenismo às avessas

Sem comentários! (No comments!)

22 de maio de 2007

Um neo-indigenismo na Bolívia?

Quando, em janeiro de 2006, Evo Morales se tornou o primeiro presidente ameríndio do mundo, houve debates nos meios de comunicação sobre se deviam dizê-lo "indígena" ou "índio": um termo parecia ligar-se a "pobre, indigente", e o outro à idéia errada de Colombo de haver chegado à Índia quando chegou em terras americanas. O pesquisador social boliviano Carlos Torrico aclarou aos jornalistas, como podemos ler no artigo de Sebastián Serrano "Índio e Indígena": "Acredito que acostumar-se a usar o termino índio em um contexto lingüístico que não denote conotações negativas é uma forma de desmontar essas conotações. À força de banalizar sua negatividade conseguimos desarmar sua carga pejorativa, pois poderemos um dia somar dito termo, e com o mesmo nível de significação, à lista formada por nominativos como humano, pessoa, boliviano ou venezuelano".

O editorial da última edição do jornal virtual Pukara nos põe agora a par de como está sendo a política indigenista de Evo Morales, ao alertá-lo contra os perigos do neo-indigenismo:

Incongruente, pois temos presidente indígena, mas o neo-indigenismo é promovido por seu próprio governo.
O indigenismo surgiu em terras americanas como corrente de suposta defesa do indígena, manifestando-se nas artes, literatura e política. Era a expressão do indígena pelos não-índios.
A figura do índio abundava em todas as poses, em quadros e pinturas, mas não eram indígenas os que visitavam as galerias de exposição e muito menos quem adquiriam esses quadros; o índio era o herói de relatos e novelas, mas esses livros estavam ausentes de suas moradas. No âmbito político, se discutiam medidas paternalistas de redenção do índio, enquanto este seguia ausente nos círculos de poder e decisão.
E isso porque o indigenismo era uma maneira a mais de prolongar e manter a situação de domínio e exclusão do ameríndio. Era uma manifestação romântica, superficialmente reconhecedora, dadivosa e promocional para com o índio. Se tratava de enaltecê-lo nas palavras e nas imagens, para subjugá-lo melhor na vida real das relações sociais.
Por isso uma das características do indigenismo é a hipérbole com que se refere ao índio. Cria um índio irreal, fictício, quase um super-homem, para colocá-lo no mundo ilusório da alegoria e não encarar assim ao índio real e objetivo. Atuar de outra maneira significaria eliminar as relações de dominação e ocasionar que o índio seja cérebro e ator de sua própria liberação e isso, justamente, o indigenismo busca evitar.
Agora está surgindo um neo-indigenismo e o terrível é que surge na Bolívia alentado a partir das próprias instâncias do atual governo nacional. Esta situação parece incongruente dado que temos como presidente do país a um indígena, Evo Morales, mas é real e abundantemente provada pelos fatos.
À vasta medida de atos promocionais neo-indigenistas se soma a ocorrência de convocar a “sábios indígenas” para elaborar o currículo da nova reforma educativa. Mas quê significa “sábios” para os convocadores? É o mesmo que em aymara, por exemplo, se denomina
yatiri, ou talvez amawt’a? Sabem qual papel desempenham estes atores na comunidade? Estes “sábios” serão remunerados com um salário maior do que o que ganha um deputado. Conhecem os promotores deste disparate o efeito que a monetarização produz em lugares onde ainda existem amawt’as e yatiris? Talvez sim, o conheçam e é isso mesmo que pretendem obter: a desestruturação social.
Em todo caso é uma medida de
show business, destinada ao público sensível à retórica neo-indigenista. Esquecem, entretanto, que estamos no século 21 e não no 19. Os intelectuais indígenas e não-indígenas podem ter outra aproximação ao tema e o povo já começou um levante que não pode ser distorcido nem interrompido. É urgente que o executivo mude de política, de outro modo o neo-indigenismo corre o risco de converter-se em sua lápide.

Oxalá o presidente Morales tenha capacidade de não deixar as políticas culturais de seu governo serem decididas por técnicos (teóricos) de gabinete, como andou aqui e ali sendo pretendido aqui no Brasil por alguns que quiseram até mesmo propor cartilhas de frases politicamente corretas. E que os índios, povos ameríndios, tenham voz ativa em toda e qualquer decisão referente à sua sociedade e cultura.

Ícaro de uma xamã shipibo


Elisa Vargas Fernandez, xamã shipibo da Amazônia peruana, entoa um ícaro, canção de amor e gratidão de seu povo, neste vídeo da Amazon Herb Company que atua junto à nação shipibo no sentido de apoiar sua luta pela terra e a preservação da biodiversidade. Recebi a seguinte mensagem do autor do vídeo, Troy, que trabalha com esses produtos florestais que afirma serem obtidos de modo sustentável na selva peruana:

Hi Eduardo,
I work with The Amazon Herb Co. We SUSTAINABLY harvest herbs from the amazon with the indigenous tribes. Our products are offered to people here in the "modern" world where it is needed most because the food chain is contaminated and people are very sick. Our mission and vision is simple: the more people that use these plants the quicker we make the Amazon worth more ALIVE than dead! I have personally been doing herbal medicine for 17 years and have not found a better nutritional source than what is coming out of the Amazon.
much love:
Troy.

Acredito que em países como os Estados Unidos possam existir formas de controle da comercialização desses produtos florestais (neste caso inclusive industrializados) que permitam ao consumidor diferenciar matéria-prima obtida de forma ecologicamente correta (sob manejo sustentável) daquela obtida de modo puramente expoliatório. Mas, e no Brasil? Um novo site de e-commerce, o "Natureza Divina", pretende vender "plantas sagradas" alegando que "Todo o material exposto em nosso site é destinado somente para estudos botânicos, pesquisa científica, propagação, coleção e produção de incensos. Nossos produtos não são destinados ao consumo humano ou animal de qualquer espécie"
. Vendem, por exemplo, porções de cem gramas de muirapuama (Ptychopetalum olacoides), um afrodisíaco amazônico, como se não se destinasse a consumo humano, e sim a "pesquisa científica", o que pode ser indicativo de alguma falsidade ideológica, pois pesquisadores científicos de verdade têm outros modos de aquisição e jamis o fariam a granel, sem um certificado de pureza da amostra. Mas, quem pode certificar que esse material é resultado de manejo sustentável? Aliás, quem fiscaliza os produtos de medicina natural vendidos livremente nos mercados e feiras-livres de todo o país, em especial na Amazônia e no Nordeste, para saber como eles são obtidos na natureza? Alguém se lembra (leia aqui) do lavrador preso em flagrante no Distrito Federal por tirar um pouco da casca de uma árvore para fazer um chá para a mulher doente? Isso aconteceu como fruto do acaso: o mesmo produto se vendido numa feira-livre não teria nenhuma forma de controle. Mas que órgão governamental brasileiro possuirá competência para realmente coibir a exploração irracional em larga escala de produtos florestais fitoterápicos? Nossa discussão a respeito da comercialização internacional indiscriminada de enteógenos continua...

21 de maio de 2007

Como identificar um "Plastic Shaman"

Nos Estados Unidos da América, a expressão "plastic shaman" é um coloquialismo pejorativo usado para referir-se a indivíduos que buscam divulgar a si próprios como xamãs, ou alegam possuírem alguma liderança espiritual tradicional, mas que na verdade não possuem conexão genuína com as tradições que dizem representar e são meros "imitadores" de xamãs com pouquíssima experiência de aprendizagem de campo (nem chegaram a aprender e pretendem saber ensinar). Na maioria das vezes, "plastic shamans" utilizam a mística destas tradições culturais, e a curiosidade legítima de buscadores sinceros, para obter ganhos pessoais. Esta exploração de aprendizes e de uma cultura tradicional pode envolver a venda de falsas cerimônias espirituais tradicionais, falsos artefatos xamânicos, registros fictícios em livros, turnês ilegítimas a sítios sagrados, e quase sempre a oportunidade de adquirir títulos espirituais.

Sites de ameríndios autênticos denunciando "plastic shamans":

Artigos e editoriais:

Artigos sobre Espiritualidade Nativa em Venda:

Cuidado, portanto, com as fantasias!... Afinal, "xamanismo" é moda. Basta dar uma busca no YouTube em verbetes como lakota ou o genérico indians para observar a quantidade de vídeos estilosos usando imagens pop de nativos norte-americanos... Talvez os daqui do Brasil pudéssemos chamar "Xamãs Rastaqüera" (termo coloquial brasileiro que quer dizer "sem substância", "sem conteúdo" ou "sem dinheiro", mas é derivado do francês "rastaquouère" - pessoa recentemente enriquecida que não perde oportunidade para chamar a atenção pelo luxo que ostenta e pelos gastos que faz - fonte: Dicionário Aurélio Eletrônico).

"Corpo a Corpo"

Documentário de Ronaldo Duque realizado em 1996, com fragmentos poéticos de Reinaldo Jardim, que retrata a delicada relação entre indíos Yanomami e garimpeiros, na floresta amazônica.

20 de maio de 2007

Defesa de Touro Sentado

Touro Sentado, ca. 1886
David F. Barry (1854–1934)
Museu Amon Carter, Fort Worth, Texas

O que diz Touro Sentado:

Que tratado houve que os homens brancos tenham respeitado e o homem vermelho rompido? Nenhum. Que tratado houve que o homem branco alguma vez haja feito conosco e ele tenha respeitado? Nenhum. Quando eu era criança, os Sioux eram senhores do mundo; o sol nascia e punha-se dentro das suas terras e podiam enviar dez mil homens ao combate. Onde estão hoje esses guerreiros? Quem os terá chacinado? E as nossas terras, onde estão? Quem será que as possui? Que homem branco poderá sustentar que eu alguma vez lhe tenha roubado a terra ou um só centavo do seu dinheiro? E apesar disso chamam-me ladrão. Que homem branco, mesmo sozinho, foi alguma vez feito cativo ou insultado por mim? E apesar disso clamam que eu sou um índio ruim. Que homem branco me terá alguma vez visto bêbado? Quem terá alguma vez chegado ao pé de mim com fome e se foi embora sem comer? E alguém me terá visto alguma vez bater nas minhas mulheres ou maltratar os meus filhos? Que lei terei eu quebrado? Não terei eu razão por ser fiel à minha própria lei? Acaso será um mal que eu tenha a pele vermelha? Que seja um sioux? Que tenha nascido onde meu pai viveu? Que morra pelo meu povo e pela minha terra?

(in "A Fala do Índio - Auto-retrato da Vida dos Povos Nativos da América do Norte", Teri C. McLuhan; Tradução, Notas e Iconografia de Júlio Henriques, ed. Fenda, 2000) apud: Blog da Sabedoria

plumas de exportação

Galo selvagem, faisão dourado e galinha-de-angola:
outras fontes de plumas para os anzóis de luxo islandeses, que seriam destinados à pesca do salmão!

19 de maio de 2007

Coacyaba, a beija-flor

Os índios do Amazonas acreditam que as almas dos mortos transformam-se em borboletas. É por esse motivo que elas voam de flor em flor, alimentando-se e fortalecendo-se com o mais puro néctar, para suportarem a longa viagem até o céu.

Coacyaba, uma bondosa índia, ficara viúva muito cedo, passando a viver exclusivamente para fazer feliz sua filhinha Guanamby. Todos os dias passeava com a menina pelas campinas de flores, entre pássaros e borboletas. Dessa forma pretendia aliviar a falta que o esposo lhe fazia. Mesmo assim, angustiada, acabou por falecer.

Guanamby ficou só e seu único consolo era visitar o túmulo da mãe, implorando que esta também a levasse para o céu. De tanta tristeza e solidão, a criança foi enfraquecendo cada vez mais e também morreu. Entretanto, sua alma não se tornou borboleta, ficando aprisionada dentro de uma flor próxima à sepultura da mãe, para assim permanecer ao seu lado.

Enquanto isso, Coacyaba, em forma de borboleta, voava entre as flores, colhendo seu néctar. Ao aproximar-se da flor onde estava Guanamby, ouviu um choro triste, que logo reconheceu. Mas, como frágil borboleta, não teria forças para libertar a filhinha. Pediu, então, ao Deus Tupã que fizesse dela um pássaro veloz e ágil, que pudesse levar a filha para o céu. Tupã atendeu ao seu pedido, transformando-a num beija-flor, podendo, assim, realizar o seu desejo.

Desde então, quando morre uma criança índia órfã de mãe, sua alma permanece guardada dentro de uma flor, esperando que a mãe, em forma de beija-flor, venha buscá-la, para juntas voarem para o céu, onde estarão eternamente.
(fonte: Waldemar de Andrade e Silva - Mitos do Brasil: Mitologia e Folclore)

Outra lenda ameríndia (são inúmeras!) sobre o beija-flor conta assim:

Muitos séculos antes do português Martim Afonso de Souza chegar ao Brasil, na região onde hoje chamamos “Mata Atlântica” havia, perto da costa, na floresta densa, uma aldeia de índios guaranis. Um jovem caçador costumava descer por uma trilha beirando um riacho e parava muitas vezes para admirar a beleza da jovem filha do feiticeiro da tribo Tupi, que se banhava e brincava com os animais que vinham saciar a sede no córrego. Um dia, não resistindo aos encantos da moça, ele colheu algumas flores, encheu-as de mel e foi oferecê-las, convidando a jovem a vir morar com ele. Ela aceitou, mas deveria antes ter a permissão do pai. Eles resolveram encontrar-se à noite, perto da gruta dos sambaquis onde o feiticeiro atuava. O pai da jovem, quando soube da decisão, preparou algumas poções mágicas, especialmente uma, na casca de côco, que deveria transformar o caçador em um bicho repelente, a fim de afastá-lo da filha. À noite, no meio de muitas iguarias com peixes e frutas, a jovem, já saciada com o mel das flores, foi logo pegar a bebida enfeitiçada que estava destinada ao caçador. Ninguém percebeu. No raiar do dia, quem passasse perto dos sambaquis podia ver deitado, imóvel, o velho feiticeiro que acabara de se envenenar após perceber que a filha se tinha transformado em pássaro; um caçador chorando de desespero, encostado nas pedras e um beija-flor voando de flor em flor, sugando o néctar, sem preocupar-se com a cena. Dizem que o jovem enamorado chorou tanto que suas lágrimas transformaram-se em rios, sendo suas lamúrias ouvidas tempos depois vindas das pedras, próximas aos sambaquis, como se fosse um canto. Os tupis-guaranis chamaram o local de “Itanhaém”, que significa “pedra que canta”.

Obtenha mais informações lendo na Wikipedia sobre o Beija-flor .

O tabaco ritual

Calumet (cachimbo-da-paz) da tribo dos MODOES, séc.19 - Bacia do Mississipi, América
Musée Fenaille (Rodez)

O tabaco é outra planta oriunda do continente americano que os conquistadores europeus pretenderam destituir do contexto ritual e religioso de que os ameríndios faziam uso dela. Na verdade, à diferença do moderno cigarro industrializado consumido em todo o mundo na atualidade, o tabaco entre os índios era usado não apenas com outra forma de abordagem (não era ingerido ou tragado jamais, e sim apenas colocado na boca e exalado, como fazem os fumadores de cachimbo e charuto) mas também com outro teor, no caso adicionado a outras plantas que compunham o seu uso ritual.

Conheça alguns mitos e lendas ligados à planta do Tabaco (Nicotiniana rusticum) na América, neste texto extraído do site cubano do Museo del Tabaco:

A deusa Cinacuati, ou cobra fêmea dos aztecas, era identificada com uma planta chamada picietl ou tabaco. Para os índios norte-americanos winnebago, o tabaco foi um presente dos deuses ao primeiro dos seres humanos: lançado ao fogo, propiciava as invocações que os espíritos elevavam aos céus. Entre os senecas, tribo de pele-vermelhas que viveu no Oeste do atual Estado de Nova York, se acreditava que o tabaco havia surgido da cabeça da filha dos céus, ao ser regada sua tumba por seu filho mais velho. A mãe celestial acrescentou outros dons a esta frutificação: o milho nasceu de seus peitos, a cabaça, de seu ventre, as favas, de suas mãos, e a batata, de seus pés. Os shippewa, nas festas sagradas, antes de fumar seus cachimbos costumavam volteá-los em direção aos quatro pontos cardeais, onde existiam outros tantos espíritos bons; um dos quais, o do Sul, proporcionava ao homem milho, melões e tabaco. Seu fumo o ofertavam ao trovão, voz dos espíritos. Para os ojibwas, o inverno, representado por um ancião de rosto gelado, era visitado por um joven, símbolo da primavera. Durante a noite, ambos fumavam um cachimbo de tabaco misturado com ervas aromáticas e contavam entre si suas façanhas. Ao amanhecer, o ancião desaparecia convertido em água. Os índios da Virginia tinham em tal estima a planta do tabaco, que a consideravam especialmente criada para os deuses; a queimavam para que o fumo perfumado ascendesse e quando se desatavam as tempestades de água, no meio de cantos e danças, jogavam pó de tabaco em punhados para cima. A mitologia das tribos de Susjuehannah, descrita por Benjamin Franklin, contava que a planta do tabaco havia brotado da terra junto com o milho e um tipo de feijão, graças à ação de uma jovem que baixou das nuvens e depois de ter provado da língua assada de um cervo, preparada por alguns caçadores, quis premiá-los: "Venham daqui a treze luas e vocês encontrarão sua recompensa". O tabaco, junto a outras espécies vegetais, fez parte de um singular rito entre os índios creek: colocavam tais oferendas em um altar, e as cobriam com argila, que tapavam com ramas de árvores. Depois de dois dias de jejum, colocavam fogo no lugar da oferenda. O fumo e as chamas que se alçavam ao céu propiciavam o perdão dos pecados cometidos, exceto o de homicídio.

"…brought the blackstone pipe to the Blackfoot. The Great Spirit sent the pipe through Duck to the Arapahoe. The ancient prophet Sweet Medicine brought the arrow pipe bundle to the Cheyenne at Bear Butte. The Lakota have beautiful White Buffalo Calf Maiden. With the smoking of the first sacred pipe, the ancient Native American elders of this continent discovered in spiritual communion that to share breath is to share life. When the pipe is smoked, every bit of tobacco is thought to represent part of creation, so that all of creation is contained in the pipe’s bowl. And as the ceremonial smoke wafts between peacemakers, all their good intentions are made plain to the creator. These stories of the origin of the Native American pipes are held as sacred to them as many American’s beliefs of their origin through the existence of the Bible." (Fonte: "Calumet History", de Toinette Trahan)

18 de maio de 2007

Padre Paulino do Acre

Me contou o tuxaua Mário Domingos, liderança hunikuin da Aldeia Fronteira, no Alto Purus, que o Padre Paolino, que sempre vem de Sena Madureira fazer os desobrigos (batizados e casamentos) por lá, é um homem milagroso. Quando fala uma coisa, acontece. Assim, quando chegou naquela aldeia e encontrou um missionário evangélico pretendendo construir um templo, olhou bem, bateu com a mão num dos alicerces e disse: "essa sua construção não vai pra frente". Dito e feito, antes do templo terminar de ser construído, o Padre Paolino já tinha ido embora, veio um vendaval e jogou a igreja por terra. Assim, diz Mário sorrindo, nunca prosperou culto evangélico lá com eles, e nem há de prosperar.

Esse sacerdote de origem italiana é a bem dizer um personagem quase lendário no Acre, e recentemente recebeu título de doutor honoris causa pela Universidade Federal do Acre, após publicar seu livro "Medicina da floresta". Entre outras entrevistas que ele deu, como em Amazonia.org e ChicoMendes.org , destacamos essa que Altino Machado fez com ele e publicou a 23/09/2004 em seu blog:

O padre de origem italiana Paolino Baldassari tem 79 anos, mas já vive no Acre há 46 anos. Ele acaba de ser condecorado pelo governador Jorge Viana com a Ordem da Estrela do Acre, no grau de Grande Oficial. "Se medalhas pudessem me levar para o céu, eu já estaria no céu por causa das tantas que recebi na vida", reagiu com elegância Baldassari após a condecoração, ocorrida na semana em que Sena Madureira comemora 100 anos. Paolino Baldassari está mais preocupado mesmo é com a situação dos índios, seringueiros e com o perigo de destruição das matas do Acre e não acredita em manejo florestal. Contra Baldassari estão grandes e pequenos proprietários rurais que querem continuar queimando ou explorando madeira. "Eu te digo: é uma tristeza! Eu falo, grito, denuncio. O Anselmo Forneck, chefe do Ibama no Acre é muito meu amigo. Eu chamo ele até a meia-noite e digo: dê um jeito porque não é possível continuar como está".

Leia a entrevista a seguir:

Padre, o que o senhor anda fazendo?
O meu trabalho continua sendo muito variado. Continuo fazendo aquele trabalho antigo, das longas viagens pelos rios, que são conhecidas como desobrigas.

Qual foi sua última viagem?
Foi uma viagem às comunidades indígenas dos kulina e dos kaxinawa no Alto Purus.

Como estão essas comunidades?
Pode-se dizer que teve um progresso também lá, mas a gente não chegou mesmo a conservar a própria cultura e torná-los independente das más influências. O alcoolismo predomina e estragou muito o trabalho que fiz.

A que o senhor atribui isso?
À ganância. Eu dei às comunidades indígenas, com dinheiro dos meus amigos da Itália, um pouco de gado. O gado estava prosperando e uma das comunidades chegou a ter 54 cabeças. Neste ano, constatei que havia apenas cinco cabeças de gado. O resto, venderam tudo em troca de álcool. Não foi em troca de cachaça, mas de álcool mesmo, o que é ainda mais grave. Claro que me sinto um pouco triste por causa disso, mas pode haver uma recuperação.

Como ocorre essa ganância?
Vendem uma caixa de álcool por um boi. Como o litro de álcool custa R$ 1,00, o lucro é estrondoso. Constatei lá o embarque de três cabeças de gado e em troca tinham dado aos índios um toca-disco velho e álcool. Diante disso, não quis permanecer lá com eles. Já estou muito velho. Eu trabalhava com eles no roçado, em tudo o que eles faziam. Imaginava que eles já tinham uma certa possibilidade de independência.

O senhor evangeliza ou entende que os índios devem seguir com a cosmogonia ou mitos imemoriais?
O evangelho pode viver na cultura indígena. Com os kulina eu dava e eles me davam, especialmente no sentido comunitário. Trabalhávamos, pescávamos e brincávamos juntos. Isso aqui já são qualidades evangélicas. Isso se estendia ao sentido da família, ao respeito da criança. Nunca vi um kulina bater numa criança. Os kulina fazem o fogo para assar macaxeira, carne, peixe. Eu vi uma criança se aproximar do fogo e queimar o dedo ao tentar pegar um pedaço de peixe. Ela correu para a mãe a chorar. Sabe qual foi a reação da mãe? Pediu que a criança fosse buscar o pedaço de peixe novamente. A criança foi buscar e se queimou novamente. Voltou chorando para a mãe, que outra vez recomendou que a criança fosse retirar o pedaço de peixe. Então a criança não foi mais ao fogo. Ela estava ensinando que a criança deve aprender com a experiência da vida. Ela fez isso sem bater e sem frustrar.

O senhor alguma vez já tomou ayahuasca durante essas suas andanças pelas comunidades indígenas?
Não, porém vi várias vezes eles tomarem a ayahuasca. A bebida, em certa quantidade, pode ser um remédio. Não tomei porque obedeço ao meu bispo senão eu tomava mesmo. Do jeito que eu comia morcegos, ratos, macacos e jacarés, assim eu teria tomado a ayahuasca com os índios para ter uma idéia de como é.

Desses 46 anos de Acre, existe algo que o senhor considera mais marcante?
Eu não saberia dizer. Talvez a experiência mais marcante é que tive contatos com tantas mentalidades e que me senti bem no meio dessa mentalidade seringueira, índia, dos sírios-libaneses que chegavam aqui. A mentalidade de me sentir bem com negros. O meu maior amigo aqui em Sena Madureira era um negro que me construiu 56 escolas. Ele era um grande amigo, quando eu ficava triste... Ele se chamava Macaúba. Ele era amigo e amava os índios e trabalhava com eles. Então eu me perguntava: como a gente pode ter raiva de negros? Era um homem de coração tão grande, tão alegre. Quando eu tinha alguma dificuldade corria lá com ele, com a esposa dele. Lembro de um dia, viajando no Puru, o rio seco, e eu me lastimando que aquilo não era vida. O Macaúba me disse: "Que nada! Ta vendo praia mais bonita que essa? Daqui a pouco o tracajá vai sair e nós vamos ter comida". Estávamos transportando uma serraria. Eu estava com os pés arrebentados de tanto empurrar o barco, mas o Macaúba estava sempre alegre.

O antropólogo Terry Aquino conta que certa vez o senhor deu uma bofetada no rosto dele quando pregava sobre o amor durante uma viagem que fizeram juntos. O senhor recorda disso?
Sim, eu lembro. Mas era de brincadeira. Estou acostumado a fazer assim com todos. Quando alguém é muito amigo eu dou logo um soco. É uma expressão um pouco bruta, mas quando eu me dou com amigos, mesmo em praça pública, dou um soco para um e outro. Para o Terry eu disse: cala a boca e dei um tapa. O Terry fez uma viagem longa comigo, que durou dois meses.

O Terry foi muito importante para a demarcação das terras indígenas do Acre?
Eu só digo que ele amava os índios. Ele tinha amor aos índios. Mas quanto à religião, não combinava muito comigo.

Quer dizer então que, enquanto o senhor evangelizava, o Terry tomava ayahuasca?
É isso. Ele tomava mesmo ayahuasca.

Nos últimos dias, o Acre tem permanecido sob uma densa nuvem de fumaça. Como o senhor avalia o processo de ocupação ainda em curso na Amazônia?
Estou lutando continuamente. A minha esperança, sempre que escrevo ao senador Tião Viana... Bem, quando é errado é errado e eu escrevo. Eu falo da realidade dos índios, da realidade das restrições da mata.

E o manejo florestal?
Eu não concordo com o manejo porque é uma manipulação. Eles dizem que é assim, mas depois manipulam. Não acredito no manejo mesmo não. Eles não respeitam nada, não. Eles derrubam tudo. Depois, fica a capoeira, que será vendida aos fazendeiros, que tocam fogo para fazer pasto para os bois. Eu te digo: é uma tristeza! Eu falo, grito, denuncio. O Anselmo Forneck, chefe do Ibama no Acre é muito meu amigo. Eu chamo ele até a meia-noite e digo: dê um jeito porque não é possível continuar como está.

Padre, a situação não é fácil?
Não é mesmo. Eu tenho todos contra. Os pequenos dizem que querem matá-los de fome porque não permitem mais que destruam as matas para fazer roçados. Os grandes também dizem a mesma coisa. Eu só digo porque alguém tem que sentar e dizer: a mata não pode ser destruída. Existe tanto dinheiro na mata. Então que se retire a riqueza dela, mas que se mantenha o seringueiro. A mata tem uma riqueza tão grande que amanhã essa riqueza pode ser estragada. Antes devemos fazer parar os canhões e depois tratar de paz. Temos que acabar com a destruição no mundo mais absoluto, de pequeno e de grande, e sentar e definir o dinheiro para conservar a mata, para desfrutar da mata sem derrubá-la.

Qual a avaliação que o senhor faz do governo da floresta nesse aspecto?
Eu sempre procurei alertá-lo quanto à destruição da mata. Nesse ano não veio helicóptero para fiscalizar e isso desanima um pouco a gente. Desanima, mas não dá para desistir.

Bom, termino essa "blogada" dizendo que o leitor pode encontrar no post Boas Palavras Curam algo sobre a atitude dos mbyá Guarani do sul do Brasil para combater o alcoolismo em suas aldeias: acho que esse é o caminho. E recordo que para mim foi muito bom ao regressar à aldeia Fronteira depois de catorze anos, encontrar o novo cacique, Francisco, juntamente com meu compadre Naximá, confeccionando as placas destinadas a notificar a todos de que aquela aldeia de acordo com o Estatuto do Índio proíbe tanto a comercialização quanto o consumo de bebidas alcóolicas, atitude mais que necessária já que desde que criado o município de Santa Rosa do Purus a aldeia por estar à beira do rio que é a hidrovia de acesso ao município dos brancos (cariús) ficou muito mais exposta a diferentes tipos de abuso por parte dos navegantes em trânsito.

17 de maio de 2007

Os madihá do Alto Purus


Em agosto de 1991, a convite do antropólogo Marcos Chaar, viajei pela primeira vez à Área Indígena Alto Purus, para ser assistente de direção do vídeo-documentário "Terras Não-Descobertas", que buscava resgatar a memória de conflitos armados que houveram entre brasileiros e peruanos naquela região de fronteira no começo do século 20. Como na Amazônia essa é a época do chamado "verão", pois não chove muito e o rio fica raso, foi uma longa viagem de barco do município acreano de Sena Madureira até a fronteira peruana. Nesse tempo ainda não havia sido criado o município de Santa Rosa do Purus, que fica bem na divisa, então no lado peruano pernoitamos no seringal chamado Shamboyaco, onde um ano depois eu estaria de volta participando com os amigos kaxinawás do plebiscito que foi o instrumento político para criação do novo município. Lá no Shamboyaco conhecemos alguns madihá (em espanhol se escreve "madija", que é como os membros dessa tribo do grupo arawak se chamam, mas são mais conhecidos como "kulina"), que estavam em uma expedição de caça. À beira da fogueira noturna, compartilhamos com eles um pouco da ayahuasca que havíamos trazido conosco para a viagem, e no amanhecer do dia seguinte gravei uma entrevista em cassete com o cacique Kakudá, da aldeia San Bernardo, que nos documentou com alguns cânticos de sua cultura, e o leitor interessado poderá escutar fazendo o download a partir de aqui.

As primeiras informações sobre os madihás os descreviam como uma sociedade guerreira de agricultores e caçadores que habitavam os rios Juruá e Purus, e que atacavam frequentemente a seus vizinhos. Em 1869, o explorador inglês Chandless fez uma breve resenha deste grupo. Posteriormente, o sacerdote francês Constantin Tastevin, que explorou a região entre 1908 e 1914 com fins missionários, os encontrou na área do rio Xirúa e na do Tarauacá, afluentes do Juruá no Brasil. Foi apenas a partir de 1890, que se deu início à exploração intensiva dos recursos desta zona com o "boom" do caucho, estabelecendo daí os madihás relações permanentes com os patrões dedicados a esta atividade.

Este grupo foi severamente afetado pelo auge do corte de caucho, que provocou um forte processo de redução demográfica. Adicionalmente, uma epidemia de sarampo causou um alto nível de mortes na população madihá (Wise y Ribeiro, 1978). Depois deste período, os madihás se internaram novamente na mata levando uma vida seminômade e evitando contato com os brancos. Em 1940, se instalaram na área do Alto Purús, adotando elementos da cultura material das populações ribeirinhas, tal como a canoa e a rede de pesca. Em 1954, os missionários do Instituto Lingüístico de Verão (ILV ou em inglês SIL) se estabeleceram no lugar denominado Shamboyaco, nas proximidades do rio Purus, e depois de um tempo se mudaram com a população madihá - lá congregada - ao lugar chamado "Aldeia San Bernardo".

Os madihás praticam a horticultura de roça e coivara, a caça e a pesca. Os principais produtos cultivados são a banana, a macaxeira, o milho, o amendoim, o mamão, a melancia, a abóbora, o arroz e a cana de açúcar. A caça tem uma importância considerável na subsistência deste grupo. A pesca se realiza tanto de modo individual como coletivo. De maneira crescente, vêm criando aves de curral para a venda e o consumo, e também jabotis. Também vendem farinha de macaxeira e às vezes carne de caça. Produzem madeira sob encomenda de certos patrões: muitas destas transações são realizadas com comerciantes brasileiros apesar de que também fazem comércio com peruanos assentados em Puerto Esperanza, que é a cidade pertencente ao "Departamiento de Alto Purus" que se vincula por avião com Pucallpa, capital do estado peruano de Ucayali.

Domingos Bueno da Silva escreve sobre os madihás que, no Brasil, apenas em 1984, aliados aos Kaxinawá, realizaram a auto-demarcação da Terra Indígena Alto Purus, que foi seguida de sua interdição pela FUNAI em 31/07/1987 para estudo e definição, sendo a demarcação oficial da datada de 05 de Janeiro de 1996. Os Kulina, historicamente, assim como outras etnias, sobreviveram entre grupos hostis, fazendo da guerra a seus inimigos uma constante, mantendo ainda hoje relações jocosas com grupos da região, inclusive com seus vizinhos Kaxinawá, tratando-se essa aliança temporária uma estratégia diplomática pontual e necessária com o antigo rival. Hoje kaxinawás e madihás compartilham aquela que é a maior área indígena em extensão do estado do Acre, e considero interessante a esse respeito conhecer o depoimento de Pancho Kaxinawá publicado na coluna Papo de Índio quando de seu falecimento em 2006.

É forte a presença de missionários evangélicos sobretudo no lado peruano da fronteira, ou entre aqueles habitantes da Área Alto Purus que migraram do Peru. O secretário-executivo da CETELA (Comunidade de Educação Teológica e Ecumênica Latino-Americana e Caribenha), o luterano Roberto Zwetsch, demonstra uma visão bem equilibrada do contato intercultural que vivenciou entre os madihá, como lemos em seu artigo "Saúde Holística e Métodos Indígenas de Cura em Perspectiva Teológica", que se pode acessar na revista que edito, a "Arca da União". Outros missionários estranham mais as práticas dos madihá, como aspirar rapé pela garganta, ou as sessões de ayahuasca, como lemos nesse depoimento de Kelvin Souza do qual reproduzo um trecho significativo que me deixa a pensar até que ponto a chamada civilização ocidental possui parâmetros adequados para o contato intercultural com os povos ameríndios:

Conheci, também, um pouco mais da religião nativa, o xamanismo. Fui juntamente com Melsi, uma missionária peruana que fez escola de Treinamento e Discipulado (ETED) na Jocum da Bolívia e que estava acompanhando Cindy e Santiago nesse tempo na aldeia, assistir a um dos rituais dessa religião. As cerimônias do xamanismo são freqüentes e quando acontecem contam com a presença de pelo menos um pajé e da maioria das mulheres da aldeia, que se põem a andar de mãos dadas e a repetir as frases que o pajé canta. Quando nos aproximamos de onde o ritual estava acontecendo, as mulheres fizeram uma pausa. Vimos o pajé vestido com folhas de palmeira de Buriti e vomitando. Foi uma visão assustadora. As mulheres queriam que Melsi participasse do ritual, não entendemos exatamente o que elas diziam, pois falavam na língua Madijá. Ficamos com medo e logo fomos embora.Sei que sentir medo não é exatamente a reação que um missionário deve ter nessas situações. Não admito isso com orgulho, mas sim como confissão de um pecado: a covardia. A Bíblia diz para confessarmos nossos pecados uns para os outros e para orarmos uns pelos outros para que haja cura (Tg 5:16) Fiquei impressionado em ver como o xamanismo está entranhado na cultura desse povo. Em San Bernardo, é comum uma pessoa freqüentar a igreja cristã e também se valer dos serviços do pajé. Infelizmente, o cristianismo tem chegado aos Madijá com um baixo nível de contextualização cultural, o que faz com que ele seja visto como uma religião estrangeira. Mas não é hora de procurarmos culpados, precisamos orar para que esse povo tenha revelações de Deus através da sua cultura.

16 de maio de 2007

O olhar das estrelas

Ilustração de José Lanzellotti

No planalto oriental do Estado do Mato Grosso vive uma tribo de índios. Os orarimogodogue, mais conhecidos por bororo. Têm o hábito de se reunir todas as noites. Em voz alta, contam os fatos do dia, as aventuras e as lendas. É uma das mais vivas maneiras de perpetuarem a tradição oral da tribo. As estórias não começam com o “era uma vez”. O narrador inicia a lenda dizendo “eu digo a vós, meus filhos, a vós, meus netos, e vós escutais a minha palavra...”


O milho é um dos principais alimentos dos bororo. Um dia as mulheres foram à roça colher milho, mas encontraram umas poucas espigas. Ficaram muito tristes, pois não podiam alegrar os maridos que saíram para caçar. Lembraram então de levar uns meninos que estavam brincando para ajudá-las.
Colheram muito milho e, lá mesmo na roça, socaram e fizeram bolos para os homens caçadores. Enquanto pilavam o milho, um menino saiu com uma taquara cheia de grãos de milho e os deu para sua avó que estava na maloca.
- Prepare bolo para eu comer com meus amigos.
A velhinha não sabia que eles tinham pegado aquele milho sem ordem das suas mães. Fez o bolo e eles comeram. Mas foi um trabalhão para a velhinha. Um papagaio estava olhando tudo e sabia da tramóia dos meninos. Cortaram-lhe a língua.
Os meninos, bem alimentados pelo bolo de milho, pensaram em subir para o céu. Foram à mata, pegaram um beija-flor, amarraram em seu bico um cipó e ordenaram-lhe que voasse o mais alto possível e prendesse a ponta no céu. O Beija-flor fez como lhe haviam pedido. Enquanto ele voava, emendaram várias cordas de cipó até perder de vista. Os meninos foram subindo, subindo, um a um, pelo cipó céu acima...
Quando as mulheres voltaram da roça perguntaram pelos meninos. A velhinha, de tão cansada, dormia pesadamente. Perguntaram para o papagaio e ele nada respondeu porque tinham lhe cortado a língua.
As mulheres começaram a procurar os meninos e nada. Uma viu um cipó, olhou melhor e concluiu - eles subiram ao céu por aqui. Começaram a gritar para que os meninos voltassem. Mas o beija-flor cada vez levava mais alto a ponta do cipó. Eles não quiseram voltar, mesmo suas mães implorando, chorando. Desobedeceram.
Como castigo de sua desobediência e ingratidão, foram obrigados, todas as noites, a olhar para a terra para ver se suas mães ainda estão chorando. E os olhos dos meninos se tornaram as estrelas...

Texto de Alceu Maynard Araújo em:
BRASIL - Histórias, Costumes e Lendas - São Paulo: Editora Três Ltda., s/data