13 de maio de 2007

Iara, mito aquático em mutação


O folclorista brasileiro Câmara Cascudo reconta em "Lendas Brasileiras" (1945) a lenda da Iara (Uyára era o deus amazônico dos peixes: era , segundo outros, a Sereia ou Mãe d'água, pois Y-Yára quer dizer - a que mora na água. A raça desses monstros marinhos chamavam de Y-Yára-ruoiara).

Deitada sobre a branca areia do igarapé, brincando com os matupiris, que lhe passam sobre o corpo meio oculto pela corrente que se dirige para o igapó, uma linda tapuia canta à sombra dos jauaris, sacudindo os longos e negros cabelos, tão negros como seus grandes olhos.

As flores lilases do mururé formam uma grinalda sobre sua fronde que faz sobressair o sorriso provocador que ondula os lábios finos e rosados.

Canta, cantando o exílio, que os ecos repetem pela floresta, e que, quando chega a noite, ressoam nas águas do gigante dos rios.

Cai a noite, as rosas e os jasmins saem dos cornos dourados e se espalham pelo horizonte, e ela canta e canta sempre; porém o moço tapuio que passa não se anima a procurar a fonte do igarapé.

Ela canta e ele ouve; porém, comovido, foge repetindo: - “É bela, porém é a morte... é a Iara”.

(...)

A noite cobre o espaço, e mais triste do que nunca volta o tapuio em luta com o coração e com os conselhos maternos.

Assim passam-se os dias, já fugindo dos amigos e deixando a pesca em abandono.

Uma vez viram descer uma montaria de bubuia pelo Amazonas, solitária porque o pirassara tinha-se deixado seduzir pelos cantos da Iara.

Mais tarde apareceu num matupá um teonguera, tendo nos lábios sinais recentes dos beijos da Iara.

Estavam dilacerados pelos dentes das piranhas.

Em outra versão, mais recente, Iara é retratada como uma índia violada e morta por homens brancos, que se transformou em sereia:

Yara, a jovem Tupi, era a mais formosa mulher das tribos que habitavam ao longo do rio Amazonas. Muito atraente, com longos e negros cabelos, tinha um sorriso meigo e sensual. Mantinha-se, entretanto, indiferente aos muitos admiradores, preferindo ser livre. Caminhava pela floresta e pelas areias brancas dos rios, envolvendo-se constantemente em suas águas claras. Por sua doçura, todos os animais e as plantas a amavam.

Numa tarde de verão, mesmo após o Sol se pôr, Yara permanecia no banho, quando foi surpreendida por um grupo de homens estranhos. Tinham longas barbas, usavam roupas pesadas, botas e chapéus. Falavam uma língua desconhecida e pareciam muito agressivos. Sem condições de fugir, a jovem foi agarrada e amordaçada, não podendo se livrar daquelas mãos que tocavam todo o seu corpo. Acabou por desmaiar, sendo, mesmo assim, violentada e atirada ao rio.

O espírito das águas transformou o corpo de Yara num ser duplo. Continuaria humana da cintura para cima, tornando-se peixe no restante. Assim, permaneceria bela, podendo ao mesmo tempo viver no rio eternamente.

Yara passou a entender os pássaros e a conversar com eles e com os peixes, como uma sereia cujo canto atrai os homens de maneira irresistível.

Ao verem a linda criatura, eles se aproximam dela, que os abraça e os arrasta às profundezas, de onde nunca mais voltarão.

Na verdade, na opinião de Câmara Cascudo, a Iara é simplesmente uma forma literária brasileira para representar a lenda mediterrânea da sereia sedutora ou da Mãe D'Água do folclore africano, e não um mito autenticamente brasileiro. O mito autêntico, ligado à origem, aos mistérios e a temores da água, é o do Ipupiara (o que reside ou mora nas fontes).

Ao contrário do mito mediterrâneo e do africano, o mito brasileiro do Ipupiara refere-se a um homem-marinho, gênio protetor das nascentes e olhos d'água e como tal, de certo modo, inimigo dos pescadores, marisqueiros e lavadeiras. Os cronistas dos séculos XVI e XVII registraram essa história. O personagem era masculino e chamava-se Ipupiara, homem peixe que devorava pescadores e os levava para o fundo do rio. No século XVIII, Ipupiara passa a ser conhecido como uma sedutora sereia: Uiara ou Iara. Todo pescador brasileiro, de água doce ou salgada, conta histórias de moços que cederam aos encantos da bela Uiara e terminaram afogados de paixão. Ela deixa sua casa no fundo das águas no fim da tarde. Surge magnífica à flor das àguas: metade mulher, metade peixe, cabelos longos enfeitados de flores vermelhas. Por vezes, ela assume a forma humana e sai em busca de vítimas.

Segundo Senira Veinsencher, "os índios brasileiros possuem representações e mitos aquáticos, mas (...) nenhum deles incorpora as qualidades malignas e fatais da Iara. Em verdade, eles sempre procuram algum remédio para combater as maldades, sublimando, inclusive, a própria morte. E como não reprimem a sexualidade, eles também não sentem necessidade de criar figuras sensuais como a Iara. Quando os indígenas citam a beleza das cunhãs, estão enaltecendo essa qualidade como uma referência estética e, não como objeto de libido. A sua Mãe d´Água, contrariamente à Iara, é uma figura bondosa e importante: como a guardiã dos rios, ela se materializa nas plantas e flores aquáticas que alimentam todos os seres vivos de água doce".

O blog Contos e Lenda conta que: "Crianças também são atraídas [pela Iara]. Neste caso, elas são raptadas e levadas para viver debaixo d'água. Crêem os ribeirinhos que essas crianças estão "encantadas" no reino da "gente do fundo". Ficam lá aprendendo todos os segredos da manipulação de plantas, ervas, poções, remédios e magias e são "devolvidos" depois de 7 anos já como um grande feiticeiro, um xamã".

A série Juro que Vi, da MULTIRIO, foi a primeira produção brasileira a receber o selo Especialmente Recomendado para Crianças e Adolescentes, recém-criado pelo Ministério da Justiça, com o objetivo de reconhecer ações de qualidade voltadas para o público infanto-juvenil. Em um de seus dez episódios, "Iara", a mãe d´água sai do rio para enfeitiçar os homens, em mais uma lenda do coração do Brasil: assista aqui o curta-metragem de animação no YouTube:

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