31 de julho de 2007

Diálogos interculturais de um xamã

Típica moradia Washo (foto de Edward S.Curtis, 1924)

O povo Washo, do Oeste norte-americano, sempre viveu em hostilidades com a nação Paiute, e já viviam deslocados na Califórnia quando tomaram contato com o homem branco. Entre 1860 e 1862 os Paiute se impuseram contra eles e os confinaram a um pequeno território nas proximidades de Carson City, Estado de Nevada. Em 1859 eram contados como um grupo tribal de novecentos indivíduos, mas hoje não resta sequer um terço destes, lutando pela sobrevivência de sua cultura. Os Washo imploravam auxílio a Ti-Kai ("Meu Pai") por alimento, saúde e outras bençãos, e também realizavam rituais xamânicos com o cacto Peyote.

A história de um xamã washo, Henry Rupert, apresentada e comentada por
Don Handelman (1967), constitui um bom exemplo das mudanças sofridas pelos povos desta área a partir de sua ocupação pelos brancos. Henry Rupert nasceu em 1885, em Genoa, Nevada, de pai e mãe washo. Seu pai abandonou a família quando ele tinha três anos de idade e ele só irá vê-lo outra vez, trabalhando num restaurante chinês em Carson City, dezessete anos depois. Sua mãe trabalhava como doméstica em um rancho em Genoa. O marido de sua irmã mais velha era também empregado de um rancho, mas era também um xamã que atuava nas caçadas anuais de antílopes realizadas pelos washos. O marido da irmã de sua mãe também, já sexagenário quando ele nasceu, também era xamã. Henry Rupert convivia com os dois xamãs, tanto nos invernos em Genoa como nos verões nas margens do lago Tahoe (cortado pela fronteira California-Nevada). Já nos seus primeiros anos tinha sonhos que denunciavam seu potencial para atividades xamânicas e místicas.

Aos oito anos de idade, Henry Rupert foi na Escola Indígena Stewart, então sob a supervisão e controle das forças armadas norte-americanas, destinada a crianças indígenas da Grande Bacia, que aí deviam obrigatoriamente cursar até a oitava série. Nos três primeiros anos a criança não podia tirar férias nas casas dos pais. A disciplina era severa, mantida a chibatadas e detenção em celas. Era um centro de aculturação forçada, com batismo à revelia e exposição a missionários de diversas religiões. Também oferecia treinamento em alguma atividade profissional e Henry Rupert aprendeu composição tipográfica, que lhe possibilitou, após sair da escola, conseguir um emprego no jornal Reno Evening Gazette. E por dez anos morou na cidade de Reno.

Assim, Henry Rupert vivia entre dois mundos e suas próprias predisposições xamânicas passaram a receber influências estranhas à tradição washo. Foi o caso do hipnotismo, de que assistiu a uma demonstração num teatro de Reno. Ele resolveu dominar esta técnica, comprando até um livro para aprendê-la. E conseguiu, fazendo ele próprio suas apresentações mensais. Mas ao mesmo tempo continuava a receber instrução conforme as tradições washo. Aconselhado pelo xamã marido de sua tia materna, ele tomou como orientador um outro renomado xamã para ajudá-lo a treinar e controlar seus poderes.

família de índios Washo

Desse modo ele fez sua primeira cura em 1907, conforme técnicas tradicionais washo, que requerem a realização de quatro sessões, as três primeiras do anoitecer até meia-noite e a última a noite inteira, com o uso de tabaco, água, chocalho, assobio e penas de águia. Também sementes verdes e amarelas (que simbolizam alimento) e conchas de haliote (que simbolizam dinheiro) espalhadas ao redor do corpo do paciente. O assobio serve para atrair o objeto ou germe do mal do corpo do paciente para o do xamã, onde pode ser controlado. A água serve para lavagem e aspersões sobre a parafernália e o corpo do paciente. Visões durante os trabalhos permitem ao xamã conhecer a causa do mal e fazer prognósticos.

Mas logo Henry Rupert conseguiu um segundo espírito auxiliar que era um jovem hindu. Esse espírito teria origem no esqueleto de um hindu do laboratório de um colégio de Carson City que ele costumava visitar. Este espírito entrou em disputa pela primazia com as duas mulheres mitológicas que introduziram o poder de cura entre os washos, até que o xamã conseguiu conciliá-los. O espírito hindu reforçou os princípios dos três xamãs washo que tinham orientado a formação de Rupert: ser honesto, discreto, fiel, delicado e não fazer mal. Também inspirou-lhe novas técnicas de cura.

Em 1910 ele se casou com uma mulher paiute do norte, antiga colega da escola Stewart. O pai dela, trabalhador de rancho e confecionador de laços de couro cru, tinha sido um devoto de Jack Wilson o apóstolo da Dança dos Fantasmas (Ghost Dance) de 1890. Era um tempo em que casamentos intertribais era visto de modo desfavorável pelos xamãs e outros conservadores washo. Ele voltou a trabalhar na Reno Evening Gazette, fundindo linotipos, mas suspeitando que a fumaça do chumbo o estava envenenando, retornou para sua família em Genoa, onde trabalhou num rancho até 1924. Nesse ano seus filhos estavam na mesma escola Stewart, mas agora administrada pelo Bureau of Indian Affairs, e ele se retirou com a mulher para Carson Colony, destinada aos washos desde 1916, mas ocupada apenas por famílias paiutes do norte e shoshones (a maior comunidade washo então era Dressville). Sua mulher morreu de tuberculose. Ele plantava morangos e criava perus. Foi um tempo de introspecção, auto-exame e de elaboração de suas idéias relativas ao xamanismo e ao sobrenatural. Sua fama como curador cresceu, era chamado a atender não somente índios de outras etnias, mas também não índios. Assim, em 1942, ele deixou seu emprego de bedel e vigia da Agência Indígena de Stewart, retirando-se para Carson Colony para dedicar-se exclusivamente à cura. E aí continuava em 1964, quando Handelman fez sua pesquisa.

Fonte: Júlio Cesar Melatti

Fotografia dos idos de 1900: mulher Paiute fazendo uma cesta.
Library of Congress; Charles C. Pierce (neg. no. LC-USZ62-104705)

A resistência mapuche não é terrorista

"Para la espiritualidad y comprensión del mundo de la gente Mapuche son cruciales las fuerzas de la creación (Ngenechen) y destrucción (Wakufu) así como un balance necesario entre las dos fuerzas. Los mapuches siempre han creído que el mundo podría terminar si ellos no resisten a los colonizadores, y han llamado a los espíritus de sus ancestros para que los ayuden en esta lucha." (Los inconquistables Mapuche)

A noite vai cobrir as colinas da comunidade de Chekenko, pontilhadas de pinheiros e de eucaliptos a perder de vista. O frio aperta e fogueiras já foram acesas. A machi (xamã) que repousa em seu abrigo, pega seu kultrun [tambor]. Está começando o guillatun, cerimônia tradicional do povo mapuche. Um guillatun específico que, no dia 6 de novembro de 2005, honrou a memória de Alex Lemun, um indígena de 17 anos de idade, morto em 2002 por um carabinero (policial). A convite de sua família, alguns vieram da capital, Santiago, que fica 700 km mais ao norte. Outros se arriscaram a deixar a clandestinidade. Uns dez dirigentes de comunidades vizinhas não compareceram por motivo justo: cumprem penas de até 10 anos na cadeia.

As almas se agrupam em torno do réwé que reina no meio do campo: um tronco de árvore esculpido em forma de escada aponta para a abóbada celeste. Elas saúdam os quatro pontos cardeais e em seguida iniciam um purun, um tipo de dança circular. Comandado pela machi, o canto do povo mapuche se eleva para os espíritos. Um canto que as autoridades chilenas querem silenciar...

"Quinze anos depois da ditadura, nosso país, cuja democracia é apresentada como exemplar, não tem um quadro jurídico adequado para proteger os povos indígenas", denuncia o Observatório [chileno] de Direitos dos Povos Indígenas [Observatorio de Derechos de los Pueblos Indígenas - ODPI]. A Constituição não reconhece o aspecto pluriétnico desse país, que continua um dos raros do continente que não ratificou o tratado internacional sobre os direitos dos povos indígenas - a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

(Alain Devalpo, in "Dossiê América Rebelde")


Conheça este blog pela causa mapuche: Kolectivo We Newen. Leia também: "El Estado de Chile declara la guerra contra la Nación Mapuche", por Andrés Bianque, e "La ceguera del estado chileno - Política y represión contra el Pueblo Mapuche", de Leopoldo Lavin.

O novo nascer do Sol

CLIQUE AQUI PARA LER A HISTÓRIA EM QUADRINHOS

Fonte: Portal Mapuche

29 de julho de 2007

Ceferino Namunkurá e a identidade mapuche

Ceferino Namunkurá representado já como Beato
(arco e flexa abandonados ao chão)


Na Argentina, o provincial dos salesianos para a região Patagônia Norte, Padre Vicente Tirabasso, afirmou que a próxima beatificação do índio mapuche Ceferino Namunkurá, anunciada para o dia 11 de novembro, "permite descobrir que um patagônico especial soube viver sua fidelidade ao Evangelho, por isso queremos propô-lo aos jovens como modelo de projeto de vida". O sacerdote afirmou que a causa de beatificação de Ceferino se abriu porque teve "uma fé profunda, radical. Porque amou Cristo desde seu povo, com todas as conotações de viver a vida cristã em plenitude. Também por sua atitude de serviço, porque decidiu ser sacerdote para ser missionário entre seu povo e por sua profunda expressão de sacrifício demonstrada frente a seus padecimentos de sua saúde".

No artigo "El Alma del Indio", Celia Langdeau Cussen narra que: "Em 1972 o Papa Paulo VI declarou a Ceferino "venerável" - o primeiro passo para a canonização - , e agora dezenas de milhares de pessoas acorrem a celebrar o aniversário deste santo homem no Parque Ceferino Namuncurá, localizado entre pomares de maçãs e peras junto a um braço do Rio Negro, 170 quilômetros a leste de Neuquén, e a dez horas de caminho de Temuco. (...) Aí se encontra uma imagem de tamanho natural de Ceferino, e é onde se venera a ele durante o ano, até o momento em que, para a celebração de seu nascimento, a colocam afora de modo que os fiéis possam tocá-la e formular suas petições de melhor saúde ou, nestes duros tempos pelos quais passa Argentina, de um trabalho estável. A estátua de madeira de cor amarela mostra a um adolescente em uniforme escolar, o cabelo bem penteado repartido do lado esquerdo, levando entre as mãos um livro que apóia contra seu peito. No dia da celebração alguém pôs sobre os ombros da imagem um delicado poncho branco que o vento agita. Não fica claro se o poncho protege a Ceferino das baixas temperaturas nesta manhã cristalina, ou se seu propósito é suavizar a vestimenta de madeira para que assim recobre mais vida. Talvez alguém pôs ali o poncho para recordar ao mundo que este estudante em uniforme de colégio salesiano era além disso um mapuche."


Ann Ball explica que: Ceferino Namunkurá estava destinado por nascimento a ser um “cacique” ou líder de seu povo, os índios Araucanos dos pampas argentinos. Oitavo dos doze filhos do chefe Manuel Namunkurá, Ceferino fôra escolhido - em virtude de sua inteligência e habilidade- ta ser o sucessor de seu pai como líder desta tribo aguerrida (a sucessão era hereditária, mas não recaía necessáriamente no filho mais velho). Entretanto Ceferino levou sua curta vida treinando para um diferente tipo de liderança. Sua ambição era conduzir seu povo à religião de um Deus único. Faleceu em Roma de tuberculose, em 1905, quando ainda não tinha cumprido os 19 anos.

O milagre atribuído ao mapuche e pelo qual será beatificado aconteceu em 2000, quando uma mulher de 24 anos da província de Córdoba, no centro do país, pediu intensamente sua intercessão ante Deus para salvá-la de um câncer de útero e se curou. A Coordenação de Organizações Mapuches recusou a beatificação afirmando que não aceitam este "perverso título para um irmão nosso que morreu nas mãos da colonização. Desterrado de sua terra de origem, consumiu-o a tuberculose". O comunicado da COM diz que a beatificação de Namuncurá é um presente que não pediram. Eles consideram o papa Bento XVI “um manipulador que disse faz pouco que a religião católica não tinha sido imposta” aos aborígenes. Para a COM, a decisão do Vaticano resulta em "uma distração para um povo que já não se distrai".

O jornal Mercúrio, do Chile, publicou nota afirmando que no bispado de Araucanía, jurisdição eclesiástica que compreende a maior parte do território mapuche no território chileno, o beato indígena "não conta sequer com uma oração, uma estampa ou uma bibliografia de sua vida". Segundo o vigário do bispado de Araucanía, Gerardo Franck, os mapuches sequer sabem que Namuncurá era um dos seus. Já o jornalista Rodolfo Chavez, da agência Rio Negro On Line, afirma que os mapuches da família de Namunkurá, residentes em San Ignacio, ao sul da província de Neuquén, estão "muito contentes porque o declararam santo”. Eles trabalham na construção de um santuário de madeira, onde esperam dar o descanso final ao santo mapuche, e aguardam muitas visitas de peregrinos crentes.

O jornal argentino La Nueva Provincia relatou que após considerar que a Igreja católica o levou a Europa "vivo e o devolveu morto e sem identidade", a COM, em um comunicado assinado por seu porta-voz, Jorge Nahuel, rechaçou a beatificação de Ceferino Namunkurá - "Não lhes aceitamos este perverso título para um irmão nosso que morreu em mãos da colonização. Desterrado de sua terra de origem, consumiu-o a tuberculose", apontou Nahuel. O documento questiona o método usado pelo exército argentino durante a chamada Conquista do Deserto, no século 19, e agrega que os mapuches não tinham defesa contras as doenças que, como a tuberculose, os soldados eram portadores.


Leia na íntegra o impactante comunicado mapuche desta semana:

Estamos alertas cuando el poder hace regalos que ni siquiera pedimos y que consideran importantes para tener distraídos a sus oprimidos. Por ejemplo, Videla les regaló un mundial de fútbol a los argentinos y todos contentos, inclusive saltando delante del propio dictador como festejándolo. Les regaló una "mano dura" y los que pedían semejante regalo se distrajeron, mientras veíamos espantados y horrorizados que se quedaban con nuestros hijos y nietos en nombre de una política de Estado. El mismo terrorismo de Estado que cayó 120 años atrás sobre la vida mapuche y que generó desapariciones, torturas y apremios ilegales durante la campaña de exterminio de Roca, acompañado por una Iglesia que reclutaba nuestros "picikecé" (niños) y los "amaestraba" en internados y albergues, hasta anular la identidad, el "rakizuam"/pensamiento, el "kimvn"/conocimiento ancestral. Es decir, eliminándolos ideológicamente.

Ahora mismo, Joseph Ratzinger desde ese centro de poder político que es "el Vaticano" ha decidido regalarnos a nosotros, "
pu mapuce", un beato con amenaza de trasladarle el título al de santo. Es el mismo Papa manipulador que dijo hace poco que la religión católica no había sido impuesta por la fuerza en nuestras vidas. Sin embargo, necesitó llegar protegida por el ejército comandado por Roca a este territorio.

En sus apenas dos milenios de existencia, para lograr sus objetivos nos "regalaron" el bautismo, los sacramentos, un catecismo lleno de rarezas y misterios, una biblia y algunos libros con incógnitas. Mientras "
pu mapuce", con diez milenios de existencia en cambio, intentábamos mirar lo que esos libros contenían y nos distrajimos. Cuando cerramos esos libros misteriosos y levantamos la vista, nos encontramos como si fuéramos extranjeros, aunque parados en el mismo lugar del que nunca nos fuimos ni nos vamos a ir.

Claro que nos entregaban sus "objetos sagrados" mientras nos apuntaban con armas de fuego. No sabíamos cómo hacer para salvar nuestras vidas y, si eso significaba agarrar lo que nos alcanzaran, lo hacíamos. A la vida siempre hay que preservarla. Por esa estrategia también estamos hoy vivos como pueblos originarios.
Esas armas de fuego son las que nuestra religiosidad nos impide concebir, ya que rompen el equilibrio de la biodiversidad de la que formamos parte, como hombres pertenecientes a la tierra, como mapuches que somos. Porque nosotros no concebimos esas crueles armas ni semihéroes llamados "santos", una especie de personajes literarios que tienen prohibidas las cosas más naturales de la vida, ¡hasta el mismo sexo, que es lo más natural de la naturaleza!

Luchamos contra estas invasiones y no aceptamos este perverso título para un hermano nuestro que murió a manos de la misma colonización. Desterrado de su "
wajmapu" tierra de origen , lo consumió la tuberculosis, esa enfermedad desconocida para nosotros. El método de esa guerra bacteriológica desatada por el ejército nacional contra la familia de Namunkurá era sencilla: liberar a un prisionero mapuche envuelto en mantas infectadas de esa enfermedad contra la cual no teníamos defensa. Hijo de nuestro "Logko Namvnkura", nieto de nuestro Toky Kalfvkura, se lo llevaron vivo a Roma. Como lo devolvieron muerto, para disimular semejante asesinato con pérdida de la identidad incluida ¡le prometieron devolverlo con títulos de semihéroe literario!: que le llamarían beato, que le llamarían santo. Regalos de distracción para el pueblo originario mapuche. Un pueblo que hoy ya no se distrae.

Esta demostración de nuevo engaño desde el Vaticano nos mantiene alertas, incrédulos, elusivos, negándonos a semejantes premios posmortem para nuestros muertos asesinados por ellos mismos.
Nosotros practicamos una filosofía de vida abismalmente distinta y opuesta a ésta, que nos trae de la mano una reivindicación falsa, artificial, impuesta y ajena. Nuestro "NorAdMogen" nos impide faltar el respeto de tal manera a las religiones ajenas.

Nosotros no tenemos santos, tampoco sacerdotes ni brujos. Más allá de que a nuestros médicos o "
maci", a nuestras filósofas o "pillan kuse", a nuestras autoridades originarias, les pusieron nombre de "chamanes". Todo lo tergiversan y todo lo pervierten. El asombro todavía no permite entretenernos con la caricatura que queda de esta manipulación.

Nuestra organización en "
Lofce", como parte de un pueblo preexistente al Estado argentino y a las iglesias impuestas, tiene claridad porque nuestro "rakizuam" o pensamiento circular nos impide levantar a una persona como más santos ni más héroes que otros. Todos formamos parte equilibrada del mismo círculo natural, no hay jerarquías ni menos papas dictadores en nuestro pueblo originario mapuche. Resta que las religiones y leyes usurpadoras de pensamiento, de identidad, de territorios y personas intenten, alguna vez, por una vez, por alguna única vez y para siempre, no faltarnos más el respeto.

JORGE NAHUEL - Werken (portavoz) de la Coordinación de Organizaciones Mapuches - COM (jnahuel@hotmail.com)

O velho cacique geral Namunkurá junto a seu filho Ceferino [Archivo General de la Nación]

Conheça o site The Mapuche Nation , que brinda maiores informações sobre a Nação Mapuche, hoje dividida entre Chile e Argentina.

Os filhos do Boto

"O Boto", de Vicente do Rêgo Monteiro (1921) - aquarela e nanquim sobre papel

"Em um universo fantástico e telúrico, onde forças primitivas e inimagináveis para o vulgo ainda predominam, lendas, crendices, histórias fabulosas de deuses, homens e animais são tão reais quanto os infindáveis rios e a vida ensolarada, e habitam a mesma dimensão mágica.

No paraíso amazônico onde tudo é possível, ou quase tudo, o mito do boto, o príncipe encantado das águas, assume uma feição especial, pois integra, ao mesmo tempo, o onírico e o concreto. Do imaginário para o real, o "filhos de boto" estão aí, pelos beiradões, a perpetuar uma raça mística, na qual não há distinção entre homens e deuses.

O boto, mamífero de águas doces, é um cetáceo delfinídeo do gênero Sotália, parente do golfinho chinês e indiano que, desde a antiguidade clássica, tem sido considerado um símbolo lúbrico, um fetiche ictiofálico dedicado a Vênus ou Afrodite, deusa do amor. A razão disso é a analogia existente entre as qualidades protetoras e sensuais do boto tucuxi amazônico e aquelas atribuídas ao delfim consagrado a Afrodite, a deusa nascida do mar e protetora dos amantes.

O golfinho, ou delfim, é também associado a Apolo, o deus da beleza, cuja associação resultou no nome de Delfos ao seu famoso santuário na Grécia. Além disso, uma tradição chilena ainda hoje conta a história dos peixes que foram os seres humanos pré-diluvianos, os quais, de tempos em tempos, saem dos rios e vêm procriar com as mulheres. Em muitos mitos, por sinal, em várias partes do mundo, sempre houve referências à fecundação por deuses e entes mágicos.

Segundo o historiador Câmara Cascudo, alguns cronistas relataram histórias do boto como sendo a personificação do Uauiará, ou Uiara (Senhor das Águas), o grande amante das mulheres caboclas e índias na mitologia tupi. O primeiro filho de muitas nativas é atribuído ao contato com esse deus que, ora as surpreende no banho, ora transforma-se em mortal para seduzí-las, arrebatando-as para dentro das águas. O boto, como Uauiará, representa o variante masculino da Iara (Mãe-d'Água), dona de igual poder de encantamento e sedução.

Assim, de modo amplo, o peixe está simbolizando o elemento água, dentro da qual vive. Ele transforma-se em homem e atinge o estado de manifestação dos poderes secretos, trazidos das profundezas do seu elemento. O peixe também é símbolo da vida e da fecundidade, em vista da sua prodigiosa faculdade de reprodução e do número infinito dos seus ovos.

Para quem conhece a Amazônia, não causa espanto que a psique dos habitantes, principalmente a feminina, possa fazer nascer dos imensos rios uma figura de animus. A presença das águas determina toda a vida da região, um verdadeiro planeta aquático, na forma das correntes fluviais, enchentes, chuvas torrenciais ("torós"), enxurradas, ou fenômenos incríveis como as "pororocas". A comunhão da mulher com a natureza é tão intensa, que um estrato de sua psique pode facilmente projetar-se nas águas e esperar dali a vinda do amante sensual.

Consta que o órgão sexual do boto, tanto do macho quanto da fêmea, é idêntico aos órgãos sexuais feminino e masculino. A semelhança entre os orgãos genitais humanos e dos botos torna verossímel a experiência sexual que o folclore insistentemente relata e, certamente, tem contribuído para intensificar o simbolismo do mito.

Antes da popularização do boto "amoroso", no entanto, relatam as lendas indígenas que havia um outro boto sério e bom, venerado pelos tapuias como um deus milagroso, conhecido como Mira que quer dizer boto-gente, ou boto em forma de pessoa. Essa sacralização contribuiu para que o consumo de carne de boto se tornasse um tabu, o que faz com que, na região, dificilmente índio ou caboclo se atreva a comer carne de boto.

Possivelmente o eco desses atributos de bondade com relação ao boto perduram, pois, de acordo a maiorias das tradições, ao boto é atribuída geralmente uma função protetora, havendo relatos de que o boto ampara as canoas em temporais e acompanha embarcações em que viajam mulheres grávidas, cuidando de protegê-las até que cheguem em terra firme.

Inia geoffrensis é o nome científico do Boto Vermelho
(arte: Yamaha)

O fato é que, cercado de crendices e lendas, o boto amazônico, ou "boto-namorador", é um dos animais mais populares da região, e suas atividades "donjuanescas" têm sido noticiadas em crônicas brasileiras e portuguesas há pelo menos dois séculos. Em forma de homem, pela qual é mais conhecido, apaixona e rapta as cunhãs, conquistando-as nos bailes e nas beiras de rio. Ocasionalmente em forma de mulher, "vira a cabeça" dos caboclos, deixando-os apalermados. Diz-se que, depois de servir sexualmente ao caboclo, o boto fêmea se apega a ele e passa a rondar a sua cabana ribeirinha e a proteger a sua canoa dos perigos das águas. Outros dizem, ao contrário, que o homem tem relações com o boto fêmea, ou bota, no linguajar caboclo, morre exausto, em razão do coito arrebatador.

Apesar das variações, o mito possui um conteúdo predominante, que se refere à entrega sexual da cabocla a um ser mágico. Este ser é visto como uma transformação do boto em rapaz sedutor que arrebata a jovem com carinhos e doces palavras e a possui nas praias mornas dos rios, em meio à natureza enebriante e acolhedora. No lendário amazônico, é natural atribuir ao boto a paternidade de uma bebê inesperado. E o boto-namorador que infelicita as famílias ao seduzir donzelas, casadas ou viúvas, é descrito como um belo e elegante rapaz que usa sempre impecáveis roupas brancas e chapéu preto, fala manso, e, dizem, toca bandolim. A deslumbrante figura aparece nas noites enluaradas, na ribeira dos rios, nos bailes e nos barrancos, e deixa sua marca nas areias das praias e no corpo das mulheres, geralmente na forma de um filho.

Dizem que uma mulher viciada em andar com o boto emagrece, empalidece, fica de tal forma enredada nas malhas do sedutor, que tem que ser levada a um curandeiro para ser liberta do encanto. Nas localidades interioranas, é comum a recomendação de que as mulheres não andem de canoa, não transitem pelos beiradões quando estiverem menstruadas, e evitem o uso de vestidos vermelhos, pois esta cor agrada ao boto e pode atraí-lo.

O caráter erótico e afetivo do mito do boto guarda estreita relação com temperamento sensual do habitante nativo da região que, inclusive, utiliza as partes do animal para fazer amuletos. O olho de boto, assim como o órgão sexual do boto fêmea, são muito requisitados por curandeiros e feiticeiros, e tidos como matéria-prima de amuletos de incrível eficácia em casos amorosos. Enfim, este ente saído do mundo interior, o mundo que no mito está simbolizando pelas águas dos rios e mares, tem o poder de suplantar a realidade consciente porque faz parte de um mundo mágico e telúrico, que foge à dimensão acanhada do mundo real e no qual ainda é possível viver o sonho e ser feliz."

Fonte: Coaripolis



"O Boto" é uma animação brasileira, dirigida por Humberto Avelar, e financiada pela prefeitura do Rio de Janeiro. Faz parte de uma coleção chamada "Juro que vi", uma série de animações sobre personagens do folclore nacional.

27 de julho de 2007

Em luta pelos direitos!

João Mateus, liderança indígena ferida durante ataque da polícia federal na aldeia "Olho d´Água", em 2006

Em outubro de 2005, em visita ao Brasil o relator especial da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Racismo Discriminação, Xenofobia e Intolerância, Doudou Diéne, disse que o racismo ainda é profundo no país, que índios e jovens negros são vítimas freqüentes da violência e que, ainda assim, alguns setores governamentais não estão dispostos a acabar com o preconceito racial.

"Fiquei perturbado com a violência contra os índios, em especial os caciques, e os jovens negros porque dezenas deles foram mortos recentemente. Percebi desespero e um sentimento de solidão por parte dessas comunidades", disse ele em entrevista à Radiobrás.

Em 2005, o GRUMIN/Rede de Comunicação, apresentou ao Relator da ONU o seguinte testemunho: Apesar da ratificação da Convenção 169 da OIT, que busca melhorar a situação indígena e representa o cumprimento dos direitos indígenas, ainda assim, dois lados permeiam o contexto histórico, político, social e econômico da sociedade brasileira: de um lado, os que sofrem impactos seculares ocasionados pela discriminação social e racial, e aí estão inseridos toda a população pobre e os povos indígenas do Brasil. Do outro, os que potencializam direta ou “indiretamente” para tornar real essa discriminação. O Estado brasileiro e todas as máquinas que se dizem responsáveis pelos povos indígenas desde 1759, com a criação do cargo “diretor dos índios”, prenúncio da tutela e da discriminação étnica, passando pelo SPI (Serviço de Proteção ao índio)/1910, desembocando na Lei 5.371 que cria a Funai (Fundação Nacional do Índio) em plena ditadura militar, objetivando “integração e proteção”, conceitos altamente racistas na sua essência filosófica. A participação dos povos indígenas nas instâncias que tratam dos seus direitos é bastante limitada. Podemos constatar que a elaboração e execução das políticas públicas acontecem sem a devida participação dos povos indígenas. E quando há discussões com os povos indígenas, suas propostas não são devidamente apreciadas e muito menos aplicadas.

Agora o Brasil (isto é, o governo federal) apresentou a candidatura de Mércio Pereira Gomes, presidente da FUNAI de setembro de 2003 a março de 2007, ao cargo que foi ocupado por Doudou Diéne. Natural de Currais Novos - RN, professor de Antropologia da UFF (Universidade Federal Fluminense) quando foi nomeado para a FUNAI, Mércio Gomes realizou diversas pesquisas com povos indígenas, escreveu livros sobre o assunto, prestou consultoria a empresas sobre o impacto de projetos em terras indígenas e trabalhou com Darcy Ribeiro. Também é atribuída a ele a autoria de um artigo no qual diz que "há inúmeros motivos políticos, culturais e filosóficos para não se confiar que o PT é o partido que melhor pode representar os anseios do Brasil e as necessidades de ascensão do povo brasileiro".

Em 2006 o representante da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia (Coiab) em Brasília, Genival Oliveira já destacava que, nos dois últimos governos, a média de demarcações atingia a marca de 14 por ano, enquanto no governo Lula a média anual é de seis. “Do jeito que está indo este governo, as demarcações só vão ficar concluídas daqui a 45 anos”, alertava. Na avaliação dos índios, o presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Mércio Pereira Gomes, personificava a má-vontade do governo. “Ele só fala baboseira”, acusa Genival Oliveira referindo-se à declaração de Mércio de que os índios já teriam terras demais. Segundo o dirigente do Coiab, o presidente da Funai não dialoga com os movimentos. “Isso é inaceitável”, sustenta.

Reconhecido internacionalmente, o sertanista Sidney Possuelo foi exonerado do cargo de coordenador-geral de Índios Isolados da Funai. O fato ocorreu uma semana após ele ter feito, em entrevista ao "Estado de São Paulo", duras críticas ao governo Lula e ao presidente da Funai, Mércio Pereira. "Mesmo que revoguem a demissão, me recuso a servir um governo desse tipo", disse Possuelo, que há mais de 40 anos se dedica à causa indígena. A declaração de Mércio Gomes, que os índios brasileiros têm terras demais, foi o estopim para ele: "Isso é o que dizem madeireiros e grileiros", afirmou Possuelo. “A pouca esperança que tínhamos nesse governo foi perdida. O Poder Judiciário valoriza mais um boi que uma criança indígena. A política de governo valoriza mais um pé de soja que um pé de ipê”, criticou o cacique Anastácio Peralta Guarani, líder caiouá do Mato Grosso do Sul. Assim como representantes de outras etnias, Anastácio acredita que o Estado brasileiro é conivente com a devastação dos recursos naturais em nome do agronegócio.


Assim, nada mais óbvio que as entidades ligadas aos povos originários no Brasil venham a protestar contra essa indicação realizada pelo Brasil na ONU, e o fato deve ser divulgado também para as outras nações do mundo:

MANIFESTO INDÍGENA CONTRA A CANDIDATURA DE MÉRCIO PEREIRA GOMES AO CARGO DE RELATOR DA ONU PARA OS POVOS INDÍGENAS

Nós, lideranças e organizações indígenas abaixo assinados, vimos por meio desta manifestar de público o nosso repúdio à indicação, pelo Governo Brasileiro, através do Itamaraty, do antropólogo Mércio Pereira Gomes, ao cargo de relator da Organização das Nações Unidas (ONU) para os Povos Indígenas.

A candidatura de Mércio Gomes constitui uma afronta aos povos e organizações indígenas do Brasil, sendo que no tempo em que este senhor foi presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai) agiu sempre na contra-mão dos nossos interesses e aspirações.


Somos contra esta candidatura porque consideramos, em primeiro lugar, que o senhor Pereira Gomes não reúne condições nem é digno de assumir um cargo de tamanha importância para os povos indígenas, do Brasil e do mundo inteiro.


Mércio Gomes é o principal responsável pela paralisia na demarcação das Terras Indígenas que marcou o primeiro mandato do presidente Luis Inácio Lula da Silva. Foi um dos principais responsáveis pela redução da Terra Indígena Baú, do povo Kaiapó, no sul do Pará. Teve ainda a coragem de vir a público, em entrevista a uma agencia internacional de notícias, para declarar que os povos indígenas têm terra demais, propondo que o Supremo Tribunal Federal (STF), colocasse um limite às reivindicações territoriais.

Por outro lado, este senhor foi um dos principais entraves para o diálogo reivindicado por nós junto ao Governo Federal. Desrespeitou as nossas organizações, ao considera-las não representativas, deslegitimando o seu papel de referência e interlocução. Mércio, inclusive foi um dos principais responsáveis para a não instalação da Comissão Nacional de Política Indigenísta (CNPI) no tempo esperado pelos povos e organizações indígenas.
Por este comportamento, várias organizações indígenas como a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e a Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), sempre foram contra a nomeação de Mércio Gomes para a presidência da Funai. Lamentavelmente o Governo Federal ignorou este pleito.

Tendo em consideração estas razões, solicitamos ao Governo Brasileiro que retire, de imediato, a candidatura do senhor Mércio Pereira Gomes ao cargo de Relator da ONU para os Povos Indígenas. Reiteramos que a presença de Mércio Gomes nesta instância internacional constitui uma ameaça aos interesses e expectativas dos povos indígenas, não só do Brasil, mas do mundo inteiro, notadamente da América Latina.


Reivindicamos, por fim, que se o Estado brasileiro decidir por indicar um outro candidato, o faça após consultar devidamente os povos indígenas através de suas instâncias representativas, conforme o estabelece a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que garante o nosso direito à consulta prévia e informada
sobre quaisquer assuntos do nosso interesse.

Brasília, 13 de julho de 2007.
ASSINAM lideranças indígenas membros titulares e suplentes da Comissão Nacional de Política Indigenísta (CNPI), reunida em Brasília-DF, nos dias 12 e 13 de julho de 2007.

Cacique do Xingu, em um Encontro das Nações Indígenas em Bertioga, 2005 - foto de Tatiana Cardeal

Leia "Funai é tutelista e autoritária", entrevista com o antropólogo José Augusto Laranjeira na Revista do Terceiro Setor, onde ele criticava a atuação de Mércio Gomes à frente do órgão governamental. Um depoimento este ano da roraimense Joênia Wapichana no Forum Permanente da ONU está disponível em tradução espanhola aqui. Um artigo que pode ser lido em inglês, demonstrando como se deu a administração de Gomes na Funai é: "Police raid reclaimed Indigenous lands in Brazil". E não deixem de visitar o blog de Tatiana Cardeal e conhecer suas belíssimas fotos!...

26 de julho de 2007

Documenta Kuikuro

Aldeia Ipatse (Parque Indígena do Xingu) - Integrantes do Coletivo Kuikuro de Cinema registram a chegada de visitantes. Foto: Pedro Biondi/ABr

O fim de semana passado foi de festa na principal aldeia do povo Kuikuro ("peixinho bicudo", uma das catorze aldeias que integram o Parque Nacional do Xingu, fundado em 1961 por iniciativa dos irmãos Villas Boas). Eles, que falam o dialeto Karib, são 400 indígenas e habitam o Alto Xingu, às margens do rio Kuluene, promoveram um evento que recebeu visitantes de várias aldeias, mas não tinha a ver com o calendário tradicional da região, no norte do Mato Grosso. Comemorava a inauguração de um centro de memória e o lançamento de vídeos sobre os xinguanos ou feitos por eles.

O centro de documentação resulta de uma iniciativa da aldeia e faz parte do projeto DKK - Documenta Kuikuro, em que computadores, filmadoras, gravadores e máquinas fotográficas são instrumentos para manter a cultura. "Estamos falando de documentar uma civilização", disse o antropólogo Carlos Fausto, um dos coordenadores do projeto. "De uma densidade comparável à das civilizações antigas. Comparando, é como se a Odisséia não tivesse sido escrita e desaparecesse na tradição oral." O poema é uma das principais narrativas da Grécia Antiga.

Segundo Fausto, que é professor do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o centro tem no acervo 300 horas de gravações de narrativas, rezas e conjuntos de cantos, e conta com apoio técnico do Museu do Índio, da Fundação Nacional do Índio (Funai). "Trata-se de um gesto político de dar às comunidades indígenas a possibilidade autônoma de se apropriar da magia dos brancos: a nossa tecnologia, que tanto valorizamos", disse. "Botar a tecnologia a serviço da tradição, mas uma tradição viva, renovada."

O cacique Afukaká Kuikuro, um dos idealizadores do centro, fala à Agência Brasil: "O índio é que sabe as histórias que tinham nossos avós - como vocês, no papel. Nós, não. Guardamos toda a nossa tradição na cabeça. Agora, a gente tem canto, mas é importante neto, bisneto, saber".

No discurso, ele preferiu se pronunciar em sua língua natal (de modo geral, os habitantes dessa parte do parque entendem as línguas dos povos vizinhos). Foi traduzido pelo presidente da Associação Kuikuro do Alto Xingu, Mutiá Mehinaku-Kuikuro. A opção foi por uma casinha de alvenaria, em vez das clássicas malocas com cobertura de sapê, por segurança, justificou: "Se pegasse fogo, perderia todos materiais".

O Centro de Documentação Kuikuro é financiado pelo Subprograma Projetos Demonstrativos para os Povos Indígenas (PDPI). Coordenado pelo Ministério do Meio Ambiente, o PDPI resulta do Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil (PPG7), estabelecido na Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, a Rio-92, explica a assessora técnica do ministério Maira Smith. "O PDPI apóia propostas de iniciativa indígena em toda a Amazônia", diz Smith. "Uma das três áreas apoiadas é essa, de valorização cultural."

Segundo ela, o valor recebido pelo projeto é de R$ 99 mil, e os recursos são repassados de dois em dois meses. Ela conta que tem crescido o surgimento de iniciativas semelhantes, com cinegrafistas indígenas e documentação com vídeo.

Na Aldeia Ipatse, grande parte do material foi documentado pelo Coletivo de Cinema Kuikuro, formado por jovens da aldeia com assessoria da organização não-governamental Vídeo nas Aldeias. Imbé Gikegü - Cheiro de Pequi e Nguné Elü - O Dia em que a Lua Menstruou, duas das produções artísticas do grupo, foram exibidas em sessão na aldeia e estão disponíveis em DVD. Os cerca de 300 habitantes da aldeia e os convidados assistiram também ao primeiro episódio da série de documentários Xingu - A Terra Ameaçada, do jornalista Washington Novaes, que já havia retratado a região em uma série de documentários veiculada em 1985.

A partir de domingo agora (veja a programação completa), 29 de julho, às 18 horas, será exibido na TV Cultura o novo documentário que marca o retorno de Novaes e a mesma equipe ao Xingu. Em 1984, eles produziram a premiada série "Xingu - A Terra Mágica", exibida pela Rede Manchete no ano seguinte. Pela primeira vez, por iniciativa da produção e do jornalista, houve pagamento de direitos de imagem aos cinco grupos documentados na ocasião - Waurá, Kuikuro, Yawalapiti, Metuktire e Panará. Cada aldeia documentada na nova série recebeu R$ 30 mil. "Com o dinheiro, os kuikuros compraram um caminhão por R$ 35 mil. Ainda falta quitar os outros R$ 5 mil", conta Novaes.

Como mostra o primeiro capítulo de Xingu - A Terra Ameaçada, não só os índios kuikuros, como as demais tribos da região, vivem uma situação delicada, atualmente. Principalmente no que diz respeito aos mais jovens, pouco interessados em resguardar a sua cultura. Amunegi é filho do cacique Afukaká e um dos cinco índios cineastas de Kuikuro, autor dos documentários Cheiro de Pequi (2006) e O Dia em Que a Lua Menstruou (de 2004, exibido no ‘dia do índio’ de 2006 na mostra Vídeos e Realizadores Indígenas, do Itaú Cultural). Enquanto Amunegi conversava com a reportagem do Estado, a Dança do Papagaio era apresentada. O significado dela? "Não sei, pergunta para o meu pai, ele é quem sabe tudo", respondeu.

A ameaça de devastação cultural cresce num ritmo alucinante. Por meio da televisão e com as constantes viagens a grandes cidades para apresentarem alguns de seus rituais, eles têm acesso à tecnologia que faz brilhar tanto olhos brancos quanto olhos indígenas. Os jovens índios querem DVDs, CDs para seus aparelhos de som e discman, óculos escuros, roupas modernas, motocicletas. "Você tem MSN? E Orkut?" foi o que primeiro perguntou Janapa, de 20 anos, logo após se apresentar. O ponto de internet na aldeia Ipatse está previsto para ser inaugurado somente em setembro, mas os jovens índios acessam o mundo virtual a cada visita às cidades.

No novo documentário de Novaes, comparações são feitas com o Xingu de 1984. O lixo gerado pelos índios e a importância dada ao dinheiro são dois dos fatores focados em Xingu - A Terra Ameaçada. Hoje, eles produzem artesanato para vender para os brancos, em larga escala. Um dos ‘produtos’ mais nobres utilizado como adorno e comercializado pelos índios kuikuros é o colar de caramujo. Por já ter-se tornado escasso na região do Alto Xingu e dependendo da largura das finas tiras (semelhantes à madrepérola), um colar pode chegar a custar R$ 500. Ele serve, inclusive, como moeda de troca no casamento: é comum o marido oferecer um colar de caramujo ao seu sogro, em forma de agradecimento pela concessão da mão de sua filha.

O problema da escassez, em parte, foi resolvido há algum tempo. Novaes conta que os índios do Xingu estabeleceram intercâmbio com os pataxós, na Bahia. "Eles enviam penas de aves para os pataxós e recebem deles caramujos, através do programa Arte Índia, em Brasília", conta. A surpresa fica por conta dos coloridos colares usados pelas índias kuikuros. As miçangas que preenchem mais de cem voltas de cada colar vêm da Rua 25 de Março, de São Paulo. O índio Pelé conta que chegou até a discutir com o dono de uma loja que queria vender as miçangas verdes por um preço maior que as demais, sendo que vinham na mesma quantidade. "Quis dar uma de esperto", desabafa o pai de sete filhos kuikuros.

Na noite de sábado, enquanto eram exibidos os documentários em um imenso telão montado no centro da aldeia, a adolescente índia Maíra escutava, em seu discman, músicas do grupo RBD, produto da novela mexicana Rebelde. Quem a presenteou foi o filho de uma indianista, que há algum tempo trabalha com a tribo. "É o que podemos chamar de ‘nova invasão branca’", define Novaes. No ano passado, enquanto filmavam Xingu - A Terra Ameaçada, se depararam com uma situação, no mínimo, bizarra: a rede britânica BBC levou três lutadores (de jiu-jitsu, full contact e um fisiculturista) para lutarem com os índios no Huka-Huka, tradicional combate corpo-a-corpo dos xinguanos. "Eles justificaram que ‘não poderíamos impedir o contato dos índios com outras culturas’", lembra Novaes.

Mahajugi, mais conhecido por Jairão, também engrossa o coro dos jovens índios encantados pela falsa estabilidade branca. Se tivesse condições, não pensaria duas vezes em se mudar de vez para a cidade. "É que lá temos de pagar por aluguel, comida, transporte. Fica tudo mais difícil", diz. Deixou três namoradas no Rio, onde morou durante um ano, e a filha Mayara, de 1 ano, que teve com uma carioca. "Gosto de mulher branca. E vou me casar com uma."

Novaes, de 73 anos, sendo 50 de jornalismo, conta que vez por outra um índio liga para sua casa em Goiânia para pedir ajuda. "Eles chegam até a cidade, mas não têm como se sustentar. Recebo-os em casa, ofereço comida, envio R$ 100."

Bóia-fria, mendigo ou alcoólatra são os três fatídicos e invariáveis destinos dos índios que tentam a vida fora da aldeia, pois não apresentam qualificação para o mercado. Também é notado um alto índice de suicídio em diversas etnias localizadas no Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. A ameaça ‘de fora para dentro’, com a construção de hidrelétricas e extensos terrenos destinados à plantação de soja, desassossega na mesma intensidade que a ameaça ‘de dentro’, sofrida pelos índios internamente. "Temos de parar de ver o índio como um ser exótico. A democracia do consenso indígena, que tem o cacique como mediador e não como autoridade, aponta em direção às utopias humanas. Só por esse motivo já deveríamos aprender a proteger essa sociedade. Temos muito o que (re)aprender com ela", sentencia o jornalista.

Fonte: Lívia Deodato (jornal O ESTADO DE SÃO PAULO)

Pai e filho Kuikuro em foto de Rogério Salgado

Veja: Galeria de Fotos dos Kuikuro por Wilian Cézar Aguiar, e Galeria de Fotos de Tiago Queiroz no Estadão. Imperdíveis!

Kambô e biopirataria na Amazônia

Phyllomedusa bicolor, o sapo Kambô, em foto de Guido W. Stiehle

"Nosso pajé diz: 'Este remédio extraído do rã de nome Kambô é bom porque traz felicidade para quem o toma e também para se caçar. Quando toma o Kambô a caça se aproxima curiosa, pois quem o toma passa a emitir uma luz verde, e é esta luz que faz a caça e as coisas boas se aproximarem de nós. Serve para tirar a panema e também desentope as veias do coração, e faz circular o sangue e as emoções, harmonizando as funções do ser humano como um todo. O uso do Kambô é milenar em nossa tradição: vem da sabedoria dos nossos ancestrais". (Katukina)

Paulo Prada, em seu artigo "Tribo indígena espera lucrar com rã das árvores" (disponível também em inglês), assim relatou o assunto escrevendo da Reserva Indígena Katukina de Campinas - Acre:

"Fernando Katukina é chefe de uma tribo indígena que vive em grande parte sem água corrente, eletricidade ou elos com o mundo fora de seu canto remoto do oeste da Amazônia. Mas Katukina diz que possui um tesouro que pode estar na vanguarda da biotecnologia. Se o projeto iniciado pelo chefe tiver sucesso, as riquezas da tribo serão transformadas em algo que ele e o governo brasileiro acreditam deter grande promessa para a indústria farmacêutica global: a secreção de uma rã venenosa.

Os xamãs tribais usaram a mucosidade como remédio ancestral para tratar doenças, dores e até preguiça. Os ingredientes ativos têm propriedades anestésicas, tranqüilizantes e outras. Os pesquisadores dizem que a promessa está em isolar os peptídeos da secreção e depois reproduzi-los na produção de remédios contra hipertensão, ataque cardíaco e outras doenças.

Katukina já tem o apoio do governo do Brasil, que vê no projeto uma oportunidade para desenvolver sua própria pesquisa de farmacêuticos. Em particular, o desafio científico da rã, conhecida localmente como kambo, vai aprofundar o conhecimento do Brasil no ramo farmacogenético -o uso combinado de genética e farmacologia- e aproveitar o conhecimento tradicional dos povos indígenas.

"O conhecimento tradicional também pode ajudar a medicina moderna e gerar benefícios econômicos significativos", disse Bruno Filizola, coordenador técnico do projeto e biólogo do Ministério de Meio Ambiente em Brasília, capital.

A dimensão indígena também é crucial porque o Brasil, como outras nações em desenvolvimento, está tentando combater o que entende como biopirataria, o roubo de recursos biológicos de habitats naturais do país para uso comercial. Apesar de o projeto ainda estar nos primeiros estágios, cerca de 20 cientistas estão buscando um patrocínio inicial de perto de US$ 1 milhão (em torno de R$ 2,2 milhões) de mais de uma dúzia de universidades, governos estaduais e de agências federais.

Há muito mais que esperança ingênua em jogo. Os pesquisadores brasileiros já ensinaram aos agricultores do país, que hoje estão entre os maiores exportadores, a manipular os solos e alterar as lavouras que não eram adequadas ao clima do país. Agora, muitos cientistas acreditam que a ciência pode transformar as florestas brasileiras em laboratórios produtivos.

"O Brasil tem uma comunidade grande crescente de pesquisadores dispostos a desenvolver sua própria pesquisa e produtos", disse Joshua Rosenthal, vice-diretor de uma divisão de treinamento internacional e pesquisa do Instituto Nacional de Pesquisa em Bethesda, Maryland.

Pesquisadores brasileiros não esquecem o caso da jararaca, a cobra da Amazônia. A gigante farmacêutica Squibb usou o veneno da cobra para desenvolver o captopril, um remédio para pressão sangüínea comercializado a partir de 1975. Apesar de estar disponível na forma genérica desde 1996, o remédio foi o produto de maior venda da empresa, hoje parte da Bristol-Myers Squibb, e arrecadou US$ 1,6 bilhão (em torno de R$ 3,5 bilhões) em 1991. "Por causa dos erros do passado", diz o documento do Ministério de Meio-Ambiente brasileiro, "o captopril não é brasileiro".

Apesar de abrigar a maior floresta atlântica do mundo e um dos mais diversos ecossistemas do planeta, o Brasil em geral tem demorado a desenvolver seu patrimônio genético -as plantas e animais dentro de seu território e o potencial de lucro que oferecem. O documento do ministério também lamenta o atraso histórico na pesquisa brasileira e a conseqüente perda de bilhões em receita de fármacos, produtos agrícolas e outros bens comerciais.

Um resumo do Projeto Kambo, escrito por uma equipe de pesquisadores do Ministério de Meio Ambiente, diz: "O patrimônio genético nacional pode ser chave para a transformação do Brasil no contexto político e socioeconômico global."

Os países em desenvolvimento promovem cada vez mais a idéia de desenvolver e comercializar seus remédios tradicionais e artes locais. Eles estão questionando os direitos dos estrangeiros de explorar produtos derivados de substâncias locais. Em uma reunião da ONU, na cidade de Curitiba no mês passado, delegados de nações em desenvolvimento pediram mudanças na lei internacional para permitir que os governos impeçam o patenteamento estrangeiro -ou ao menos compartilhem dos lucros- de recursos biológicos encontrados em seu território. Em dezembro, em uma reunião da Organização Mundial de Comércio em Hong Kong, o ministro de comércio da Índia disse aos delegados que o progresso nas negociações internacionais dependia de mudanças nessas linhas.

A indústria privada está temerosa. O caminho da pesquisa até o desenvolvimento de um produto é longo e caro. Raro é o composto que pode se tornar a próxima droga milagrosa ou outro sucesso comercial sem ser adulterado, argumentam. "As nações em desenvolvimento devem trabalhar para desenvolver seus próprios recursos -e não bloquear os esforços de outros para pesquisar e investir", disse Alan Oxley, ex-embaixador australiano de assuntos comerciais que hoje é consultor em Melbourne e dirige um instituto de pesquisa patrocinado em parte pela indústria farmacêutica americana.

O Brasil quer tomar a dianteira com o kambo. O projeto foi lançado no ano passado depois que Marina Silva, ministra de meio-ambiente do Brasil, recebeu uma carta de Katukina, chefe da tribo, denunciando o uso do veneno de Kambo por pessoas de fora. Seus benefícios observados nos últimos anos fomentaram o comércio pirata do veneno em cidades pelo Brasil. Se mal administrado, o veneno pode ser perigoso, advertiu Katukina. Além disso, se o ganho econômico gerado pelo remédio não reverter para a tribo, chamada Katukina, seu uso equivaleria à biopirataria, disse ele. Silva, nativa do Estado da tribo, o Acre, concordou. Ela autorizou a criação do projeto do ministério para estudar o kambo, estipulando que os lucros derivados da pesquisa fossem compartilhados com a tribo. "O conhecimento é da tribo", disse ela em recente entrevista telefônica. "Ela deve dividir as recompensas."

Leonide Principe, em seu portal, nos oferece mais detalhes sobre a "descoberta" do Kambô:

O Kambô é uma resina retirada de um pequeno sapo que vive na Amazônia, o Philomedusa bicolor. Esta resina contém peptídas analgésicas e de fortalecimento do sistema imunológico que provocam a destruição de microorganismos patogênicos. A aplicação é realizada sobre a pele e transportada rapidamente para todo o corpo pelos vasos linfáticos. Para se obter um ótimo resultado deve-se tomar o Kambô com uma pessoa que tenha experiência e um conhecimento profundo dos mistérios e da magia da natureza como ( plantas, pedras, animais, energias etc...) E seja iniciado nesta ciência indígena.

De acordo com declarações da Dra. Sônia Valença Menezes, Terapeuta Floral Acupunturísta e também faz parte da Associação Juarense de Extrativismo e Medicina Alternativa, situado em Cruzeiro do Sul – AC, o Kambô é indicado para qualquer distúrbio e desequilíbrio, ele purifica o sangue eliminando as impurezas, mas quem não tem nenhum sintoma usa o Kambô para a imunização. O Kambô atua nos corpos sutis, na percepção, sonhos, no inconsciente e nos bloqueios que impedem o fluxo de energia vital do ser humano. Durante a reação ocorre um processo de limpeza no campo energético, físico e emocional. Segundo pesquisas médicas há estimulação do sistema nervoso simpático e para-simpático, é como se o organismo fosse passado a limpo, é preciso estar de coração aberto para recebe-lo. Após o inicio do tratamento é indescritível o estado de conscientização e clareza de pensamentos, a sensação de harmonia e felicidade é visível, os sonhos a percepção e a intuição melhoram, a auto-estima rebrota principalmente para aqueles que tem coragem de buscar novas experiências na medicina alternativa.

A medicina Tradicional dos povos das florestas é baseada em conceitos filosóficos da milenar cultura das etnias indígenas pragmáticas em sua essência, estando estruturados na observação do homem e de seu organismo (microcosmo) em relação à natureza e seus fenômenos ( macrocosmo ).

Diz a lenda que os índios da aldeia estavam muito doentes e de tudo havia feito o Pajé para curá-los. Todas as ervas medicinais que conhecia foram usadas, mas nenhuma livrara seu povo da agonia. O Pajé então se embrenhou na floresta e, sobre os efeitos da Ayauaska, recebeu a visita do grande Deus. Este trazia nas mãos uma rã, da qual tirou uma secreção esbranquiçada, cuja aplicação nos enfermos ensinou como deveria ser feita. Voltando à tribo e seguindo as orientações que havia recebido, o Pajé pode curar seus irmãos índios. A história pode nos parecer exótica ou mesmo inverossímil, mas a rã existe. Ela recebeu dos índios Katukinas a denominação de Kambô, também podendo ser chamada de Kampun ou Kempô dependendo da tribo indígena.

Nos anos sessenta o seringueiro Francisco Gomes Muniz já com a visível vocação de curador conviveu durante 5 anos com índios Katukinas no rio Liberdade em Cruzeiro do Sul no Estado do Acre, onde aprendeu a utilizar grande número de espécies com propriedades medicinais e onde também foi iniciado nos Mistérios e na Magia do Kambô ou seja “A vacina do sapo” como é conhecida, que consiste na secreção retirada da rã Phillomedusa bicolor e que é utilizada por muitas tribos Amazônicas ( Katukinas, Kaxinawá, Kulinas, etc... ) com o objetivo de prevenir, curar ou afastar o “Panêma” conhecida entre os índios e caboclos como preguiça, baixo astral, má sorte ( na caça, na pesca, na colheita ou na conquista amorosa ) com o tempo seu Francisco passou a aplicar a vacina em sua própria família e em amigos, comprovando os efeitos benéficos de imunização as doenças, de vigor , disposição física e abertura dos caminhos para negócios, empregos e conquistas amorosas.

Em 1994, o Dr. Glacus de Souza Brito, chega a Cruzeiro do Sul para fazer um trabalho de saúde pública a pedido do então Governador do Estado do Acre Orleír Camellit, lá toma conhecimento que seu Francisco Muniz havia feito a inoculação do Kambô em um amigo seu o Murad e que o mesmo tinha se curado de uma sinozite antiga e tinha até arranjado uma namorada. Glacus recebe a vacina, tem uma sensação de bem estar muito grande e fica intrigado sem conseguir entender porquer, depois de trinta dias volta receber o Kambô desta vez 7 pontos e finalmente no outro mês 9 pontos. Dr. Glacus alem de médico clinico geral é também um investigador na área de doenças infecciosas. Como médico da família utiliza nos tratamentos a homeopatia, a oligoterapia francesa e a fitoterapia amazônica, nos anos seguintes começa a estudar o kambô testando em sí mesmo e em pesosoas de sua família, sua mulher por exemplo sofria de uma enxaqueca crônica e forte dores nas pernas também depois de tomar o kambô estes problemas desaparecem. Seu cunhado que estava incubando uma forte gripe, com muita dor de cabeça, também tomou o kambô teve uma reação muito forte ,vomitou muito fez uma espécie de limpeza; passada duas horas, os sintomas haviam sumido completamente e não houve evolução do estado gripal. Para Glacus o efeito da substancia no organismo em termos médicos é uma reação infra-médio simpática, com estimulação do sistema nervoso simpático e parasimpático como se o organismo fosse limpo em verso e reverso, num tempo de cinco minutos, algo incrivel. As substâncias presentes na vacina devem ter um processo bioquímico de interação orgânica de estimulação e inibição sequencial, onde apartir do momento que estimula certos receptores organicos, evolui para um processo de inibição de outros centros, por isso a mudança rápida do sistema de ação.

Conclusão pessoal do reporter: É só experimentando que podemos reconhecer o valor dessa medicina milenar. A nossa condição de seres aculturados e cientificamente condicionados, na maioria das vezes, fecha o caminho do coração, delegando tudo ao departamento limitado da mente. Os mistérios da natureza não cabem naquele espaço tremendamente definido. Há coisas que só pelo sentimento podem ser vivenciadas e assimiladas.

Em "A Ciência do Sapo Kambo" , José Augusto Bezerra conta que a Amazonlink, ong sediada na capital acreana, relacionou dez pedidos de registro de patentes com as palavras Phylomedusa bicolor, deltorfin ou dermofin no título ou na descrição à Ompi, revela o presidente da ONG, Michael Schmidlehner, referindo-se a duas substâncias até então desconhecidas - deltorfina e dermofina - isoladas da secreção cutânea do sapo. "As pesquisas comprovaram a eficácia terapêutica de ambas. A primeira é um analgésico potente. A segunda pode reduzir a possibilidade de ataques ao coração, derrames cerebrais e lesões no fígado, melhorando a função dos órgãos", afirma, baseando-se em estudos conduzidos pelo doutor Vittorio Erspammer, da Universidade de Roma e matéria publicada pela revista Science Magazine, dos Estados Unidos.

Eu pessoalmente tomei três aplicações de Kambô no começo de novembro do ano passado, na aldeia Nova Fronteira do povo hunikuin da Área Indígena Alto Purus. O pajé Geraldo Domingos, que aplicou o Kambô, explicou que a época boa de tomar o medicamento é em fevereiro, época das chuvas, quando os sapos estão cantando e a tribo tem muita caiçumada de milho verde para "forrar o estômago" para os vomitórios. Como as aplicações que eu recebi não tiveram o efeito total, foi explicado que o responsável pela extração da secreção do sapo não havia cumprido as exigências rituais: não comer alimentos com açúcar, não ter relações sexuais durante esse período, não mexer com fogo. Para mim isto esclareceu que a medicação é uma ciência da floresta assim como a ayahuasca, que envolve para sua preparação a obediência a preceitos rituais, dentro do contexto do "pensamento mágico". Como poderia então vir um dia a ser um produto industrializado? Impossível... O Kambô se inscreve, entretanto, como ícone do combate à biopirataria na Amazônia.

Minha amiga Nicole Algranti, produtora cultural, cineasta e fotógrafa, incentivou os Katukina a arrecadar recursos através da veiculação de sua cultura, como no caso do filme "Noke Haweti - Quem somos e o que fazemos", que assisti ano passado no seu lançamento no Museu da República, no Rio de Janeiro, e que mostra a aplicação do Kambô entre os moradores da aldeia. Visitando o site da Taboca Filmes o leitor poderá adquirir além desse DVD outros CDs com gravações de músicas da nação Katukina (saiba mais clicando também aqui). "Apresentamos as músicas do Uní (Ayahuasca), cantada por nossos pajés e rezadores, as músicas do Mariri (Txiriti) que representa a floresta,a alegria, a tristeza e as brincadeiras que a natureza ensinou para nossos povo, as músicas de cura (Shoiti), as músicas de brincadeiras das crianças (Yomevo Wesiti) e as músicas com a flauta (Vonko Rewe)... ... Pela primeira vez compartilhamos todos os nossos cantos na esperança de que também contribuam para a proteção e a felicidade daqueles que os ouvirem." (Benjamin André Sherê Katukina).

Leia também: Entrevista com Tashka Yawanawá sobre Kambô, na Revista Época; uma matéria sobre o Kambô publicada na Revista Globo Rural; e "O Pajé que virou sapo e depois promessa de remédio patenteado", por Bia Labate.

24 de julho de 2007

Txai

Mulher Araweté no tear / Indío Araweté produzindo instrumento de caça.
Expedição Disco Txai (Milton Nascimento). Instituto Sócio-Ambiental, 1989

Aquarela em papel: Rubens Matuck

Em 90, pela CBS, Milton Nascimento lançou o álbum TXAI (você consegue baixar as mp3 clicando aqui), que louva o índio e sua cultura, a preservação das florestas e os amigos das matas. Milton ficou no topo da lista de world music da revista norte-americana Billboard com esse disco. "Txai", palavra da língua dos índios Kaxinawa, foi adotada por índios, seringueiros e ribeirinhos no Acre, como tratamento de respeito e carinho a todos os aliados dos povos das florestas. Na abertura, o vocal é de Milton e o texto e fala, de Davi Kopenawa Yanomami. O repertório reuniu ainda Txai e Benke (Milton e Márcio Borges), Baü Metóro e Baridjumokô (músicas originais do povo Kayapó do A-Ukre), Coisas da vida, Yanomami e nós e Que virá dessa escuridão? (Milton e Fernando Brant), Hoeiepereiga (música original do povo Paiter), Awasi (música original do povo Waiaãpi), A terceira margem do rio (Milton e Caetano Veloso), Sertão das águas (Milton e Ronaldo Bastos), Curicuri (livre interpretação do índio Tsaqu Waiãpi / texto e fala de River Phoenix) e Nozanina (H. Villa Lobos e Roquette Pinto). Esse trabalho foi produzido por Márcio Ferreira e teve a direção musical assinada por Milton. O álbum contou com as presenças especiais de Leonardo Bretas, River Phoenix e Marlui Miranda, com quem Milton fez dueto em Nozanina. Túlio Mourão, Robertinho Silva, Nivaldo Ornellas, Jurim Moreira, Jacques Morelenbaum,Wagner Tiso, Novelli e Ronaldo Silva são alguns dos músicos que participaram desse disco.

Milton Nascimento com Benki Pianko Ashaninka, por ocasião da visita do cantor à aldeia Apiwtxa
Foto: Beto Ricardo, 1989.
Txai (Milton Nascimento e Márcio Borges)
Tom: C
C
Txai é fortaleza que não cai
C6
Mesmo se um dia a gente sai
F7+
Fica no peito essa flor
Dm7 Am7
Txai neste pedaço em meu ser
G
Tua presença vai bater
D
E vamos ser um só
F7+ C
Lá onde tudo é e apareceu
F/G
Como a beleza que o sol te deu
C
Metade longe também sou eu
Txai a tua seta viajou
C6
Chamou o tempo e parou
F7+
Dentro de todos nós
Dm7 Am7
Já vai, ia levando meu amor
G
Para molhar teus olhos
F7+
E fazer tudo bem
Bb
Te desejar bom vento
C
Porque a tarde cai
Em7
Txai é quando sou o teu igual
Em6 Em7
Dou o que tenho de melhor
Em5+ G Em7
E guardo teu sinal
Em6
Lá onde a saudade vem contar
Em5+
Tantas lembranças numa só
F7+
Todas metades todos inteiros
G Bb A C
Todos se chamam Txai
Tudo se chama nuvem
C6
Tudo se chama rio
Dm7
Tudo que vai nascer
Am7
Txai onde achei coragem
G
De ser metade todo teu
D
Outra metade eu
F7+
Porque a tarde cai
Bb
E dona lua vai chegar
C
Com sua noite longa
F/G C
Ser para sempre Txai
D
Txai tudo se chama nuvem
D6
Tudo se chama rio
Em7
Tudo que vai nascer
Bm7
Txai onde achei coragem
A
De ser metade todo teu
Em7
Outra metade eu
G
Porque a tarde cai
C
E dona lua vai chegar
D
Com sua noite longa
A7/4 D
Ser para sempre Txai.

Perguntem ao Milton Nascimento por que deu o nome “Txai” a um dos seus mais belos CDs. O genial cantor e compositor vai responder que subiu o rio Juruá na companhia de Terri e seus amigos da floresta. Quando voltou da viagem, gravou o disco e fez um show antológico no Teatro Plácido de Castro. Dirá, certamente, que a música “Txai” é uma síntese da emoção e mensagem que se criam quando o homem, impregnado de dignidade e afeto, faz a vida acontecer pelo lado bom. (Elson Martins)

O que há para se ler: "O Índio Redescoberto".

20 de julho de 2007

Autonomia Indígena

Raoni Kayapó Mentuktire, arte de Sérgio Macedo

"Trazendo à Luz as Autonomias Indígenas Contemporâneas no Brasil" é o Grupo de Trabalho 027 programado para acontecer na REA - Reunião Equatorial de Antropologia, que com a X Reunião de Antropólogos Norte-Nordeste, será realizada na Universidade Federal de Sergipe, em Aracaju, de 8 a 11 de Outubro do presente ano.

A partir da nova Constituição Federal de 1988 e a instituição do denominado 'estado democrático de direito', o cenário do indigenismo no Brasil - já marcado pelo surgimento das primeiras organizações pan-indígenas e pela crescente visibilidade dos índios no cenário político - altera-se radicalmente, consolidando ao longo da década de 1990 suas novas características, baseadas na fragmentação da face do Estado. O surgimento de um campo dialógico – ou de interlocução - entre povos e organizações indígenas e as novas agências do estado e sociedade civil ocupadas com a questão indígena; a criação e consolidação de uma 'linguagem de direitos' (inclusive com a criação de mecanismos institucionais, como por exemplo as novas atribuições constitucionais do ministério público) como 'medium' por excelência desse diálogo; e a criação de uma 'comunidade de argumentação e comunicação' que consolida-se na década de 1990, tendo por agentes, não membros 'esclarecidos', mas a 'pressão dialógica' de lideranças indígenas. A esta nova configuração das relações entre Índios e Estado/sociedade civil pode-se denominar 'autonomia indígena', uma situação cada vez mais presente nas relações entre povos indígenas e o estado e sociedade civil no Brasil, ao contrário do que prega hoje o discurso 'oficial' da FUNAI e de indigenistas 'oficiais', para os quais 'autonomia' é um projeto de relações institucionais a que (talvez) os índios tenham acesso em um futuro não especificado, como uma concessão do Estado. Este GT tem por objetivo trazer á luz estas novas formas de relações entre povos indígenas e Estado/sociedade civil – ou seja, autonomias indígenas – em seu cotidiano de já quase duas décadas de atividade. Busca reconhecer explicitamente o protagonismo do movimento indígena na criação de Autonomias Indígenas que a agência indigenista federal aparentemente tenta usurpar. Serão bem-vindos trabalhos que abordam aspectos deste processo ressaltado acima.

Coordenadores: Prof. Dr. Stephen Baines (UnB) / Prof. Dr. Odair Giraldin (UFT).

Confira a programação do REA, faça sua inscrição e participe!... Conheça o texto "Os Novos Desafios para os Índios no Mato Grosso", no site da Operação Amazônia Nativa e leia também "Índios, Convenção 169 OIT e Meio Ambiente", no site do Warã - Instituto Indígena Brasileiro. Em espanhol, de Adelfo Regino o excelente artigo "Las razones de la iniciativa de COCOPA" pode ser lido em Réplica 21.

Alunos do Curso de Formação Intercultural para Educadores Indígenas, da UFMG

19 de julho de 2007

Seattle e sua carta-testamento

"Seattle" (1786-1866), nome mais corretamente grafável como Seathl ou Sealth, líder das tribos Duwamish e Suquamish, do noroeste norte-americano, fotografado em 1865 por E.M. Sammis. Special Collections, UW Libraries

Texto completo da carta que o índio "Seattle", cacique da tribo Duwamish, escreveu em 1855 para o então Presidente dos Estados Unidos, Franklin Pierce:

"O Grande Chefe de Washington mandou dizer que deseja comprar a nossa terra. O Grande Chefe assegurou-nos também de sua amizade e benevolência. Isto é gentil de sua parte, pois sabemos que ele não precisa da nossa amizade. Vamos, porém, pensar em sua oferta, pois sabemos que se não o fizermos, o homem branco virá com armas e tomará nossa terra. O Grande Chefe de Washington pode confiar no que o Chefe Seattle diz, com a mesma certeza com que nossos irmãos brancos podem confiar na alteração das estações do ano. Minha palavra é como as estrelas - elas nuca empalidecem. Como podes comprar ou vender o céu, o calor da terra? Tal idéia nos é estranha. Se não somos da pureza do ar ou do resplendor da água, como então podes comprá-los? Cada torrão desta terra é sagrado para meu povo. Cada folha reluzente de pinheiro, cada praia arenosa, cada clareira e inseto a zumbir são sagrados nas tradições e na consciência do meu povo. A seiva que circula nas árvores carrega consigo as recordações do homem vermelho. O homem branco esquece a sua terra natal, quando, depois de morto vai vagar por entre as estrelas. Os nossos mortos nunca esquecem esta formosa terra, pois ela é a mãe do homem vermelho. Somos parte da terra e ela é parte de nós. As flores perfumadas são nossas irmãs; o cervo, o cavalo, a grande águia - são nossos irmãos. As cristas rochosas, os sumos das campinas, o calor que emana do corpo de um mustang, o homem - todos pertencem à mesma família. Portanto quando o Grande Chefe de Washington manda dizer que deseja comprar nossa terra, ele exige muito de nós. O Grande Chefe manda dizer que irá reservar para nós um lugar em que possamos viver confortavelmente. Ele será nosso pai e nós seremos seus filhos. Portanto vamos considerar a tua oferta de comprar nossa terra. Mas não vai ser fácil, não. Porque esta terra é para nós sagrada.

Esta água brilhante que corre nos rios e regatos não é apenas água, mas sim o sangue de nossos ancestrais. Se te vendemos a terra, terás de te lembrar que ela é sagrada e terás de ensinar a teus filhos que é sagrada e que cada reflexo espectral na água límpida dos lagos conta os eventos e as recordações da vida de meu povo. O rumorejar da água é a voz do pai de meu pai. Os rios são irmãos, eles apagam nossa sede. Os rios transportam nossas cargas e alimentam nossos filhos. Se te vendermos nossa terra, terás de te lembrar e ensinar a teus filhos que os rios são irmãos nossos e teus, e terás de dispensar aos rios a afabilidade que darias a um irmão. Sabemos que o homem branco não compreende o nosso modo de viver. Para ele um lote de terra é igual a outro, porque ele é um forasteiro que chega na calada da noite e tira da terra tudo o que necessita. A terra não é sua irmã, mais sim sua inimiga, e depois de a conquistar, ele vai embora. Deixa para trás os túmulos de seus antepassados e nem se importa. Arrebata a terra das mãos de seus filhos e não se importa. Ficam esquecidos a sepultura de seu pai e o direito de seus filhos à herança. Ele trata sua mão - a terra, e seu irmão - o céu, como coisas que podem ser compradas, saqueadas, vendidas como ovelha ou miçanga cintilante.

Sua voracidade arruinará a terra, deixando para trás apenas um deserto: Não sei. Nossos modos diferem dos teus. A vista de tuas cidades causa tormento aos do homem vermelho. Mas talvez isto seja assim por ser o homem vermelho um selvagem que de nada entende. Não há sequer um lugar calmo nas cidades do homem branco. Não há lugar onde se possa ouvir o desabrochar da folhagem na primavera ou o tinir das asas de um inseto. Mas talvez assim seja por ser eu um selvagem que nada compreende. O barulho parece insultar os ouvidos. E que vida é aquela se um homem não pode ouvir a voz solitária do curiango ou de noite, a conversa dos sapos em volta de um brejo? Sou um homem vermelho e nada compreendo. O índio prefere o suave sussurro do vento, purificado por uma chuva do meio-dia, ou recendendo o pinheiro. O ar é precioso para o homem vermelho, porque todas as criaturas respiram em comum - os animais, as árvores, o homem. O homem branco parece não perceber o ar que respira. Como um moribundo em prolongada agonia, ele é insensível ao ar fétido. Mas se te vendermos nossa terra, terás de te lembrar que o ar é precioso para nós, que o ar reparte seu espírito com toda a vida que ele sustenta. O vento que deu ao nosso bisavô o seu primeiro sopro de vida, também recebe seu último suspiro. E se te vendermos a nossa terra, deverás mantê-la reservada, feita santuário, como um lugar em que o próprio homem branco possa ir saborear o vento, adoçado coma fragrância das flores campestres.

Assim pois, vamos considerar tua oferta para comprar a nossa terra. Se decidirmos aceitar, farei uma condição: O homem branco deve tratar os animais desta terra como se fossem seus irmãos. Sou um selvagem e desconheço que possa ser de outro jeito. Tenho visto milhares de bisões apodrecendo na pradaria, abandonados pelo homem branco que os abatia a tiros disparados do trem em movimento. Sou um selvagem e não compreendo como um fumegante cavalo de ferro possa ser mais importante do que o bisão que nós, os índios, matamos apenas para o sustento de nossa vida. O que é o homem sem os animais? Se todos os animais acabassem, o homem morreria de uma grande solidão de espírito. Porque tudo quanto acontece aos animais logo acontece ao homem. Tudo está relacionado entre si. Deves ensinar a teus filhos que o chão debaixo de teus pés são as cinzas de nossos antepassados. Para que tenham respeito ao país, conta a teus filhos que a riqueza da terra são as vidas da parentela nossa. Ensina a teus filhos o que temos ensinado aos nossos: que a terra é nossa mãe. Tudo quanto fere a terra fere os filhos da terra. Se os homens cospem no chão, cospem sobre eles próprios. De uma coisa sabemos: a terra não pertence ao homem, é o homem que pertence à terra. Disto temos certeza. Todas as coisas estão interligadas, como o sangue que une uma família. Tudo está relacionado entre si. Tudo quanto agride a terra, agride os filhos da terra. Não foi o homem quem teceu a trama de vida: ele é meramente um fio da mesma. Tudo que ele fizer à trama, a si próprio fará.

Mas nós vamos considerar a vossa oferta e ir para a reserva que destinais ao meu povo. Viveremos à parte e em paz. Que nos importa o lugar onde passarem os o resto dos nossos dias? Já não serão muitos. Ainda algumas horas, alguns invernos e não restará qualquer dos filhos das grandes tribos que viveram outrora nestas terras, ou que vagueiam ainda nas florestas. Nenhum estará cá para chorar as sepulturas de um povo tão poderoso e tão cheio de esperança como o vosso. Mas porque chorar o fim do meu povo? As tribos são constituídas por homens e nada mais. E os homens vão e vêm como as vagas do mar.

Nem o próprio homem branco pode escapar ao destino comum. Apesar de tudo talvez sejamos irmãos, veremos. Mas, nós sabemos uma coisa, que o homem branco talvez venha a descobrir um dia, o nosso Deus é o mesmo Deus. Ele é o Deus dos homens e a Sua misericórdia é a mesma para o homem de pele vermelha e para o homem branco. A terra é preciosa aos olhos de Deus e quem ofende a terra cobre o seu criador de desprezo. O homem branco perecerá também e, quem sabe, antes de outras tribos. Continuem a macular o vosso leito e irão sufocar nos vossos desperdícios.

Mas na vossa perdição brilhareis em chamas ofuscantes acendidas pelo poder de Deus que vos conduziu e que, por desígnios só por Ele conhecidos, vos deu poder sobre estas terras e sobre o homem de pele vermelha. Este destino é para nós um mistério. Não o compreendemos quando os búfalos são massacrados, os cavalos selvagens subjugados, os recantos secretos das florestas ficam impregnados do odor de muitos homens e as colinas desfiguradas pelos fios falantes. Onde está a floresta virgem? Desapareceu. Onde está a águia? Morreu. Qual o significado de abandonar os pôneis e a caça? É parar de viver e começar a vegetar.

É nestas condições que vamos considerar a oferta da compra das nossas terras. E se aceitarmos será apenas para ficarmos seguros de recebermos a reserva que nos prometeram. Talvez aí possamos acabar os nossos dias e quando o último homem de pele vermelha tiver desaparecido desta terra, e a sua recordação não for mais do que a sombra de uma núvem deslizando na pradaria, estes lugares e estas florestas abrigarão ainda os espíritos do meu povo. Assim se vendermos as nossas terras amai-as como as temos amado e cuidai delas como nós cuidámos. E com toda a vossa força e o vosso poder conservem-na para os teus filhos e amem-na como Deus nos ama a todos.

Sabemos uma coisa: o nosso Deus é o mesmo Deus. Ele ama esta terra. O próprio homem branco não pode fugir ao mesmo destino. Talvez sejamos irmãos, veremos."

Kickisomlo ("Princesa Angeline"), filha do Chefe Seattle, fotografada cerca de 1890.

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