10 de julho de 2007

O chefe indígena

foto: Carlos Caju da Silva / Jeanette Johansen da Silva.

Cacique Takumã é o principal pajé na tribo dos Kamayurá, do Xingu. Aqui ele foi fotografado num dia normal em sua aldeia com seu cigarro feito especialmente para pajés.

Em função de que a tribo estima que tal homem é digno de ser um chefe? No fim das contas, somente em função de sua competência "técnica": dons oratórios, habilidade como caçador, capacidade de coordenar as atividades guerreiras, ofensivas ou defensivas. E, de forma alguma a sociedade deixa o chefe ir além desse limite técnico, ela jamais deixa uma superioridade técnica se transformar em autoridade política. O chefe está a serviço da sociedade, é a sociedade em si mesma - verdadeiro lugar do poder - que exerce como tal sua autoridade sobre o chefe. É por isso que é impossível para o chefe alterar essa relação em seu proveito, colocar a sociedade a seu próprio serviço, exercer sobre a tribo o que denominamos poder: a sociedade nunca tolerará que seu chefe se transforme em déspota. Grande vigilância. de certo modo, a que a tribo submete o chefe, prisioneiro em um espaço do qual ela não o deixa sair. É possível que um chefe deseje ser chefe? Que ele queira substituir o serviço e o interesse do grupo pela realização do seu próprio desejo? Que a satisfação do seu interesse pessoal ultrapasse a submissão ao projeto coletivo? Em virtude do estreito controle a que a sociedade - por sua natureza de sociedade primitiva e não, é claro, por cuidado consciente e deliberado de vigilância - submete, como todo o resto, a prática do líder, raros são os casos de chefes colocados em situação de transgredir a lei primitiva: tu não és mais que os outros. Raros certamente, mas não inexistentes: acontece às vezes que um chefe queira bancar o chefe, e não por cálculo maquiavélico, mas antes porque definitivamente ele não tem escolha, não pode fazer de outro modo. Expliquemo-nos. Em regra geral, um chefe não tenta (ele nem mesmo sonha) subverter a relação normal (conforme às normas) que mantém com seu grupo, subversão que, de servidor da tribo, faria dele o senhor. Essa relação normal, o grande cacique Alaykin, chefe guerreiro de uma tribo Abipione do Chaco argentino, a definiu perfeitamente na resposta que deu a um oficial espanhol que queria convencê-lo a levar sua tribo a uma guerra que ela não desejava: "Os Abipiones, por um costume recebido de seus ancestrais, fazem tudo de acordo com sua vontade e não de acordo com a do seu cacique. Cabe a mim dirigi-los, mas eu não poderia prejudicar nenhum dos meus sem prejudicar a mim mesmo; se eu utilizasse as ordens ou a força com meus companheiros, logo eles me dariam as costas. Prefiro ser amado e não temido por eles” E, não duvidemos, a maior parte dos chefes indígenas teria sustentado o mesmo discurso. (Pierre Clastres)

A figura que serviria de inspiração a Clastres é a do chefe indígena (figura certamente genérica), autoridade que não detém poder algum, prisioneiro do grupo. Mesmo dotado de privilégios como a poliginia (casamento com mais de uma mulher), esse chefe está submetido a uma série de obrigações que pressupõem certas habilidades, dentre as quais, as mais importantes são a generosidade e o dom da oratória.

O chefe indígena é, em suma, aquele que pode dar e sabe falar. Essa sua fala reúne os homens ao seu redor sem, no entanto, mostrar-se eficaz para cooptá-los. Em suma, é uma fala vazia, pois não tem poder de mando, mantém o chefe numa posição de poder que é de fato aparente. O argumento de Pierre Clastres vai mais longe. Não se trata simplesmente de afirmar que o chefe indígena não detém o poder, pois, para o autor, a sociedade indígena (ou "primitiva", como ele prefere chamar de modo algo antiquado e que hoje poderia soar como "antropologicamente incorreto") não é estranha ao poder. O chefe não detém o poder porque é impedido pela própria sociedade, essa sim a detentora de um certo poder, que não consegue, no entanto, constituir-se como esfera política separada - ou seja, como Estado. O poder ali permanece difuso.

Essa tese fora formulada por Clastres quando ele tinha apenas 28 anos e divulgada em um artigo intitulado "Troca e poder: filosofia da chefia ameríndia" - segundo capítulo da presente coletânea. Nessa época, ele ainda era um estudante de filosofia e se preparava para iniciar suas pesquisas de campo em sociedades indígenas sul-americanas, como os Guayaki, Guarani e Chulupi - todos do Chaco Paraguaio -, os Yanomami da Venezuela e os migrantes Guaranis mbyá das redondezas da cidade de São Paulo.

(...) Em uma outra coletânea, Arqueologia da violência: pesquisas em antropologia política, ele rememora o filósofo do século XVII Etienne de La Boétie, que vê a razão da subordinação do homem como um ato de vontade. As sociedades ameríndias, para Clastres, são aquelas que recusam a subordinação - por isso, controlam o seu chefe, que não impõe leis nem executa sanções. Isso não reflete sociedades desorganizadas, fragmentadas, como muito se pensou. Pelo contrário, revela um alto nível de organização a tal ponto de tornar inviável o aparecimento de um Estado. Essa escolha pela liberdade é o que Clastres quer sublinhar nas paisagens que percorreu e, assim, formular uma lição para o Ocidente, em que a dominação encontra-se por toda parte.

Sobre Clastres: nasceu em Paris em 1934. Foi diretor de pesquisa no Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS, Paris) e membro do Laboratoire d´Anthropologie Sociale do Collège de France. Realizou pesquisas de campo na América do Sul entre os índios Guayaki, Guarani e Yanomami. Publicou Crônica dos índios Guayaki [1972], A sociedade contra o Estado [1974], e A fala sagrada - mitos e cantos sagrados dos índios Guarani [1974]. Sua morte prematura, em um acidente de carro em 1977, interrompeu a conclusão de textos que mais tarde seriam reunidos no livro Arqueologia da violência - ensaios de antropologia política [1980].

Fonte: Jornalistas Ambientais Noruegueses e Resenha sobre "Pesquisas de Antropologia Política". Um ensaio muito interessante que proponho para ser lido para complementar o debate é: El Americano Interior , de Claudio Antonio Páleka.

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