Grafismos
Assunto vasto, que podemos começar a tratar a partir da leitura do texto "O Patrimônio Cultural Indígena", de José R. Bessa Freire:
Cerca de dez mil alemães, em sua maioria técnicos de nível médio, vivem hoje num grande conjunto habitacional, denominado de Bairro Amarelo, localizado em Hellesdorf, no norte da ex-Berlim Oriental. Moram em apartamentos de um, dois e três quartos, construídos em blocos pré-moldados de concreto, que começaram a ser erguidos em 1985. Os moradores nunca esconderam sua insatisfação com a aridez da paisagem, o aspecto melancólico e a cor biliosa dos pesados 'caixotões' de cinco ou seis andares, que abrigam atualmente 3.200 apartamentos. Eles reivindicaram mudanças, quando se iniciou, em Berlim, após a derrubada do muro, uma das maiores reformas urbanas da Europa. No ano passado, finalmente, a empresa administradora do conjunto e um instituto de política urbanística de Berlim resolveram remodelar tudo e dar uma nova identidade ao bairro, numa obra orçada em US$ 50 milhões. Consultados, os moradores decidiram que esta nova identidade deveria ter a cara da América Latina. Por isso, em janeiro do ano passado, mais de cinqüenta escritórios de arquitetura latino-americanos foram convidados a apresentar propostas para a remodelação dos espaços coletivos e das fachadas do conjunto. Ganhou um escritório de São Paulo - Brasil Arquitetura - cujo projeto prevê várias intervenções. Uma delas: ocupar as praças, nas entradas de acesso ao bairro, com esculturas de artistas brasileiros contemporâneos. A outra, que merece destaque aqui: usar desenhos indígenas nos azulejos das fachadas dos 'caixotões' de concreto.
Esta não foi a primeira vez que registrou-se um interesse desse tipo pelos desenhos indígenas. Em 1994, a empresa H. Stern lançou uma coleção de jóias com pedras preciosas - a coleção Purangaw - inspirada nos grafismos e nas formas de adornos usados pelos índios brasileiros. São 57 peças inspiradas na arte plumária, pinturas corporais, cestaria e cerâmica dos índios Bororo, Kadiweu, Kayapó, Kaingang e outros, expostas pela primeira vez em outubro de 1994 no Museu do lpiranga em São Paulo. Pulseiras nas quais vários tipos de ouro foram entrançados manualmente reproduzem o trabalho das cestarias, com seus desenhos geométricos. As jóias que imitam a cestaria dos índios Tukano foram feitas especialmente para complementar a coleção primavera/verão do estilista brasileiro Ocimar Versolato, em Paris. A estilista Cecília Nussembaun recriou a arte plumária na rigidez do metal, transformando brincos com a forma de cocares e colares de penas em obras de arte miniaturizadas.
A fabricação de jóias ou a remodelação de uma área habitacional de uma cidade européia, feitas desta forma, podem ser um ponto de partida interessante para refletirmos sobre o patrimônio das culturas indígenas e de um possível processo de recuperação deste mesmo patrimônio pela cultura brasileira contemporânea, tema deste livro. Sempre é possível, num exercício de imaginação, fazer conjecturas sobre os caminhos percorridos pelos arquitetos e pelos estilistas na busca dos desenhos indígenas e, a partir daí, sugerir alguns itens de reflexão que possam, talvez, contribuir para refinar o próprio conceito de patrimônio cultural, relacionando-o com a questão da memória e da identidade.
De saída, algumas questões prévias se impõem: Por que um povo, como o alemão, possuidor de um expressivo patrimônio artístico próprio, busca melhorar sua qualidade de vida lançando mão de elementos das culturas indígenas? Será que moradores de um bairro de qualquer cidade da América Latina ou mais especificamente da Pan-Amazônia tomariam decisão semelhante? Os arquitetos ousariam uma proposta dessa para um bairro, por exemplo, de Manaus? Por que a cara da América Latina, para os europeus, possui necessariamente traços indígenas? Essa imagem que o outro tem de nós corresponde à nossa auto-imagem? Parte do patrimônio indígena já se encontra, de fato, integrado historicamente ao patrimônio cultural latino-americano?
Tais perguntas são complementadas por outras, de ordem mais prática: Existem mesmo desenhos indígenas, com qualidades estéticas, capazes de alegrar e embelezar um conjunto habitacional em Berlim ou em outra qualquer cidade latino-americana? Onde encontrá-los? Que critérios podem ser usados para selecioná-los?
Sugiro que sigamos os passos dados pelo Instituto de Política Urbanística de Berlim na busca dos desenhos indígenas para, desta forma, tentarmos responder algumas dessas questões.
Posto que o patrimônio é freqüentemente concebido como um legado que recebemos do passado, é lícito supor que os arquitetos interessados em integrar os grafismos indígenas na paisagem urbana pensassem inicialmente em recuperar o que se produziu no passado, como aliás fizeram os estilistas. Neste caso, teriam de procurá-los ali, nos museus, onde eles estão conservados, como expressão de arte e como documento. Se agissem desta forma, encontrariam farto material.
Efetivamente, desde o século XVI, os cronistas europeus vêm registrando os desenhos utilizados pelos índios na própria pintura corporal e em diferentes tipos de suporte: na decoração de cerâmicas, nos tecidos, nas máscaras, nas cestarias, nas esculturas em madeira, e em uma série de artefatos e ornamentos. Muitas dessas peças, coletadas de forma aleatória, foram enviadas aos 'gabinetes de curiosidades', precursores dos atuais museus. Depois, a partir da segunda metade do século XVIII, viajantes e naturalistas percorreram o continente americano, pesquisaram e, de forma mais sistemática, coletaram objetos fabricados pelos índios, remetendo-os às instituições européias.
No caso particular dos grupos indígenas da Amazônia, o primeiro europeu a dar uma visão de conjunto dos povos da várzea foi o frei dominicano Gaspar de Carvajal, cronista de Orellana. Apesar de considerar os índios bárbaros, ele não consegue, no entanto, esconder seu fascínio quando vê os mantos coloridos tecidos pelos Omagua do alto Solimões ou a cerâmica Tapajós, que para ele era "coisa maravilhosa de ver", "tanto de escultura como desenhos e pinturas de todas as cores, dos mais vivos tons". (CARVAJAL: 1555, 77).
Numa aldeia Omagua, nas proximidades da atual cidade de Coari, Carvajal registra: "Encontramos muita louça dos mais variados feitios: havia talhas e cântaros enormes, de mais de vinte e cinco arrobas, e outras vasilhas pequenas, como pratos, escudelas e candieiros, tudo da melhor louça que já se viu no mundo, porque a ela nem a de Málaga se iguala. É toda vidrada e esmaltada de todas as cores, tão vivas que espantam, apresentando, além disso, desenhos e figuras tão harmoniosos, que naturalmente eles (os índios) trabalham e desenham como o romano" (CARVAJAL:1542, 47). Impressionado pela força, autenticidade e qualidade estética desses objetos, o cronista concluiu que eles eram dignos de figurar nos melhores museus da Europa. Deste modo, inaugura uma forma preconceituosa de olhar a arte indígena, estranha e contraditória, predominante ainda hoje em muitos setores da sociedade: reconhecem que o produto é sofisticado e refinado, mas classificam o produtor como selvagem e bárbaro e a sociedade que o produziu como atrasada, concebendo a arte de forma isolada, independente do artista e do conjunto de valores e tradições culturais que a mantém.
Mas a frase de Carvajal continha, num certo sentido, uma premonição: durante quinhentos anos, artefatos indígenas da Amazônia, como aliás de todo o continente americano, foram transferidos para a Europa. Desconhecemos a dimensão exata desse patrimônio, porque até hoje não foi feito um inventário exaustivo dele. As publicações de inventários de coleções são poucas e os catálogos de museus e exposições são escassos. Cabe destacar o projeto de Thekla Hartmann, que começou um levantamento de coleções etnográficas brasileiras no Brasil e no Exterior, com alguns resultados preliminares publicados. Na década passada, obtivemos indicações mais precisas dos objetos indígenas existentes em instituições portuguesas e uma primeira sistematização das coleções etnográficas brasileiras existentes em museus italianos. Mais recentemente, foi realizado um levantamento, registrando cerca de duzentas coleções etnográficas brasileiras dispersas em inúmeras instituições. A partir desses trabalhos, o Programa de Estudos dos Povos Indígenas da UERJ pretende desenvolver o projeto Guia de Coleções Etnográficas no Brasil e no Exterior. A dificuldade de sua execução reside, entre outros, no fato de que um expressivo número das peças indígenas não está sequer catalogado ou organizado, fazendo parte daquele macroconjunto descrito por Nason, que calcula em cerca de 4,5 milhões o número de artefatos insuficientemente documentados existentes em museus de todo o mundo.
De qualquer forma, se os arquitetos procurassem, nos museus, os desenhos indígenas para os azulejos, nem precisariam ir muito longe. Ali mesmo, em Berlim, no Museu Etnográfico (Museum für Völkerkunde), situado a alguns quilômetros do Bairro Amarelo, encontrariam milhares de peças, organizadas em diferentes coleções, formadas a partir de coletas feitas por naturalistas, sobretudo no século passado. Durante a Segunda Guerra Mundial, uma parte desse patrimônio foi destruída. Muitas delas, no entanto, permanecem no acervo do museu, servindo de suporte para as artes gráficas de diferentes etnias, como é o caso daquelas recolhidas em 1840 por Robert E. Schomburgk: adornos, cestos, cerâmicas e indumentárias dos Arekuna, Makuxi, Tarumã, Pauxiana, Wai-Wai e outros povos do sul da Venezuela e das Guianas, alguns deles já extintos. Os arquitetos poderiam ainda optar por peças fabricadas pelos Bakairi, Suyá, Juruna, Kamayurá e outros povos do Xingu ou pela cerâmica e trançado dos Bororo e Terena, recolhidos no século passado por Karl von den Steinen. No mesmo Museu Etnográfico de Berlim, encontrariam também parte da coleção feita no início deste século por Koch-Grünberg: máscaras, adornos plumários, brinquedos, cerâmica, trançado e utensílios diversos produzidos pelos Desana, Kubewa, Tariana, Tukano, Tuyuca e outros povos do rio Negro, que vivem também na Colômbia e Venezuela. Se os arquitetos optassem por desenhos existentes em peças arqueológicas, poderiam copiá-los da cerâmica marajoara, que o Museu de Berlim permutou com o Museu Nacional do Rio de Janeiro. Se o interesse fosse pelos desenhos de cores azul, vermelha e verde dos índios Kadiweu, o acervo do Museu de Berlim possui exemplares coletados por Guido Boggiani no final do século passado. São muitas as coleções existentes só em Berlim. No entanto, dentro da própria Alemanha, milhares e milhares de peças indígenas fazem parte dos acervos dos museus etnográficos de outras cidades como Munique, Dresden, Leipzig, Frankfurt, Hamburgo, Bremen. Neste caso, estão os artefatos Mundurucu, Mura, Parintintin, Tukano, Ticuna, Apiaká, coletados por Johann Natterer e conservados no Museu Etnográfico de Dresden ou então as centenas de peças coletadas por Spix e Martius entre os Arara, Katukina, Kulina, Juri, Mawé, Mayoruna, Miranha, Passe e tantos outros, que hoje fazem parte do acervo do Museu Etnográfico de Munique.
Em qualquer outra importante cidade européia, os arquitetos encontrariam museus com valiosas coleções de peças indígenas, de onde podiam retirar inspiração para os azulejos do conjunto habitacional de Berlim. Em Oslo, Estocolmo, Gotemburgo, Copenhague, Viena, Zurique, Paris, Londres, Lisboa, Barcelona, Madri, Roma, Florença, existem museus que são depositários de grande parte do patrimônio material das culturas indígenas da Amazônia.
Os povos que vivem na Amazônia - índios e não-índios - desconhecem a existência desse patrimônio. A população de Manaus, por exemplo, só recentemente começou a tomar contato direto com uma parte pequena, mas expressiva, dessas coleções. Em novembro de 1996, o Museu Amazônico, da Universidade do Amazonas, organizou uma mostra de 84 fotografias de algumas peças etnográficas coletadas no início do século passado pelo naturalista Johann Natterer. As peças, elaboradas por índios de 73 etnias diferentes, encontram-se no Museu Etnográfico de Viena. No ano passado, em Manaus, tivemos novamente a oportunidade de entrar em contato direto com uma pequena amostra desse patrimônio, durante a exposição Memórias da Amazônia, organizada pela Universidade de Coimbra e pelo Museu Amazônico, com o apoio do Ministério da Cultura e da Funarte. Quase 50 mil visitantes desfilaram, com uma certa reverência, diante de trezentos objetos,de extraordinária beleza, confeccionados pelos índios e coletados por Alexandre Rodrigues Ferreira no final do século XVIII nas capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá. Ele enviou a Portugal milhares de exemplares de plantas, animais, minerais e objetos fabricados pelos índios da região. Aquelas peças que escaparam da pilhagem das invasões francesas do início do século XIX encontram-se atualmente sob a guarda de diferentes instituições portuguesas. São utensílios domésticos, ornamentos, objetos rituais dos mais diferentes grupos indígenas, instrumentos de trabalho, raios, furadores, goivas, tipitis, abanos, jarros, bilhas, vasos, taças, coifas, faixas emplumadas, colares diversos, cestos, estojos, lanças cerimoniais, tangas, pulseiras, pentes, zarabatanas, bordunas, lanças, clavos, arcos e flechas, cuias ornamentadas, máscaras, vestimentas, trombetas, maracás, flautas e tantos outros objetos. Muitos deles servem de suporte para a arte gráfica.
Portanto, para os azulejos das fachadas do conjunto habitacional de Berlim, os arquitetos podiam muito bem, como planejaram inicialmente, aproveitar estampas produzidas pelos índios em tempos passados, conhecidas e admiradas em centenas de museus de Europa ou ainda em museus nacionais e regionais de países do continente americano.
No entanto, os arquitetos preferiram a arte indígena contemporânea. Decidiram sair atrás de desenhos novos, atuais, com uma série de dúvidas: Seria possível encontrá-los, depois de quinhentos anos de contato, do saqueio colonial, do trabalho compulsório, dos massacres, das missões, das invasões de terras, das estradas, dos colonos, dos garimpos, das frentes extrativistas, das hidrelétricas, dos grandes projetos? Os índios não teriam perdido suas fontes de inspiração? Em muitas sociedades indígenas, as tigelas e potes de cerâmica foram substituídos por peças de alumínio e plástico, as indumentárias e adornos tradicionais foram trocados pelo vestuário ocidental: em que medida este fato afetou a expressão artística tradicional?
Os responsáveis pela remodelação do Bairro Amarelo de Berlim decidiram, então, buscar respostas a essas perguntas, promovendo um concurso entre os índios. Este concurso, é verdade, não pode ser realizado hoje entre os Tapajós do Baixo Amazonas e os Omagua do Alto Solimões, cuja arte gráfica foi enaltecida por Carvajal há quinhentos anos, porque esses povos foram exterminados pelo colonizador. De qualquer forma, muitas outras etnias sobreviveram em todo o território pan-amazônico, continuam produzindo e a sua produção vem passando por um processo de transformações. Podemos examinar algumas delas, que tiveram suas manifestações gráficas estudadas por pesquisadores, cujos trabalhos foram publicados recentemente. Os Tikuna, por exemplo, que vivem hoje em três países amazônicos - Brasil, Colômbia e Peru -, poderiam oferecer, para os azulejos de Berlim, os seus desenhos geométricos de colorido farto, empregados em diferentes objetos, estudados por Jussara Gruber. Mesmo depois de quatrocentos anos de contato com a sociedade nacional, o desenho continua sendo uma manifestação artística que faz parte das experiências cotidianas desse povo e, mais do que isto, representa uma forma de expressão de sua identidade cultural. As transformações sofridas em alguns itens de sua produção material, como resultado do contato, não causaram danos à qualidade estética ou técnica das peças, e de nenhuma forma decretaram a morte do modo de ser Tikuna. Ao contrário. Na opinião de Gruber, a combinação de padrões tradicionais e modernos, usada pelos Tikuna na decoração, contribuiu para ampliar a temática e criar uma maior diversidade de desenhos, técnicas e cores, determinando um estilo próprio que expressa o ajustamento da etnia a uma nova situação de vida, "demonstrando, assim, a capacidade de resistência dos índios ante a situação de contato, enquanto reorganizam seus códigos culturais para enfrentar as tensões vividas no cotidiano". (GRUBER: 1992, 250).
Um processo similar vem ocorrendo com as dezenas de povos que habitam a região do alto Rio Negro, em territórios do Brasil, Venezuela e Colômbia. Berta Ribeiro, que estudou a linguagem gráfica e o significado simbólico dos desenhos de um deles, do lado brasileiro - os Desâna - destaca a sua beleza e acrescenta que "trata-se de uma iconografia que oferece informações valiosas para a compreensão da visão do mundo de populações tribais". (RIBEIRO: 1992, 51).
Em muitos rios e igarapés da Amazônia vivem artistas indígenas, cujos desenhos poderiam ornamentar os azulejos de Berlim. É o caso dos Wayana, povo de língua Karib, que habita o norte do Para, a Guiana Francesa e o Suriname. Sua iconografia e suas técnicas de pintura foram analisadas por Lúcia Van Veithem que ressaltou seu papel como "preciosos intérpretes de sua autovalorização étnica". (VAN VELTHEM: 1992, 64).
É o caso também dos índios Siona, que vivem ao longo dos rios Putumayo e Aguarico, no sul da Colômbia e norte do Equador. Aldeados pelos franciscanos há pelo menos trezentos anos, sofreram recentemente o impacto da descoberta de petróleo, a construção de estrada e a migração de milhares de colonos para a região. Sua expressão artística tradicional, estudada por Jean Langdon, consistia em motivos geométricos usados para decorar rostos, cerâmicas, lanças, coroas e outros objetos. Depois de informar que as formas artísticas tradicionais deixaram de ser produzidas com quase a mesma freqüência do passado, Langdon esclarece: "Ao compararmos a arte produzida pelos jovens Siona com a dos xamãs mais velhos, verificamos que ela perdeu seu suporte fundamental e fonte de inspiração: os rituais xamanísticos e as experiências alucinógenas. Ela perdura, entretanto, ainda que minimamente, nos objetos destinados à comercialização, como fruto de uma tradição gráfica altamente padronizada e como marca de uma identidade étnica inconfundível". (LANGDON:1992, 87).
Os desenhos produzidos pelos Xavante, um povo de língua Jê, que vive no Mato Grosso, com quase meio século de contato e cuja pintura corporal marca ainda hoje a participação do indivíduo em rituais e cerimônias, poderiam muito bem figurar nos azulejos alemães. Regina Muller, que os estudou, concluiu que "apesar das profundas transformações que os Xavante têm sofrido, a arte corporal é um dos aspectos culturais que não perderam o lugar neste novo momento de sua história, confirmando sua importância enquanto elemento constitutivo de reprodução da sociedade". (MULLER: 1992, 142).
Até mesmo os Xerente, do Tocantins, poderiam contribuir com seus traços e círculos de cores preta, vermelha e branca. Na década de 1930, eles foram descritos por Nimuendaju como paupérrimos, famintos, arruinados social e economicamente, enfim, como "uma cultura em estado de colapso" devido à prolongada história de contato com a sociedade regional. Apesar disso, o sistema de pintura corporal Xerente, estudado recentemente por Aracy Lopes da Silva e Agenor Farias, "constitui uma linguagem ativa, estritamente vinculada à estrutura social", mantendo-se ainda "como referência na definição de papéis e de relações sociais". (SILVA & FARIAS: 1992, 114).
Os círculos pretos pequenos e os traços verticais que caracterizam a pintura da cerâmica dos Asurini, da Reserva Indígena do Trocará, no rio Tocantins, poderiam também figurar nos azulejos em Berlim. Esse grupo, contatado pelo SPI em 1953, foi estudado depois por Lúcia Andrade. Ela esclarece que atualmente os Asurini não utilizam mais objetos de cerâmica, que são confeccionados apenas para a venda, sempre decorados com cores. Também a pintura corporal, uma espécie de cartão de identidade daquele que a usa, não foi esquecida ou perdida. "Não é pelo fato de não ser mais usada cotidianamente que se pode dizer que a pintura é um sistema que não mais opera. Ela é presença obrigatória nos rituais, pois nenhum indivíduo se imagina dançando sem estar devidamente pintado e ornamentado." (ANDRADE:1922, 128).
Muitos outros povos da Amazônia e de outras regiões do Brasil poderiam facilmente participar do concurso de desenho para melhorar a fachada do conjunto habitacional em Berlim: os Xikrin Kayapó do sudeste do Pará, cuja arte gráfica foi estudada por Lux Vidal; os Karajá e Javaé do rio Araguaia, pesquisados por André Amaral; os Waiãpi, do Amapá, cuja iconografia foi analisada por Dominique Gallois ou os Kadiweu, da serra do Bodoquena, ao sul do Pantanal, que mereceram a atenção de muitos estudiosos por sua refinada técnica gráfica.
Os Javaé e os Karajá usam os mesmos desenhos da pintura corporal para a decoração de cerâmicas, máscaras, cestarias, bonecas, etc. Segundo Amaral, é muito comum, em aldeia Javaé ou Karajá, as pessoas conversarem sobre novas variedades de desenhos, a partir de um motivo já conhecido, muitas vezes riscando-o na areia para ilustrarem suas idéias. "Com o contato definitivo e o convívio cotidiano com a população brasileira, o desenho passou por consideráveis mudanças especialmente se pensarmos nas adaptações realizadas para aplicação em artefatos que passaram a produzir para a venda. Ele se alterou à maneira da sociedade Karajá, altamente interessada na incorporação de novos elementos e informações e obtendo, nesse intercâmbio, o maior número de vantagens possíveis." (TORAL 1992, 206-207).
Cerca de 25 padrões distintos de desenhos dos Waiãpi, estudados por Dominique Gallois entre 1983 e 1985, permitiram que ela concluísse que "a arte iconográfica Waiãlpi representa mais um exemplo da complexa integração realizada pelas sociedades indígenas ao meio amazônico. Repercute no que há de mais sagrado para esses povos: o controle sobre a floresta, os animais e a água, elementos constantemente presentes nos desenhos". (GALLOIS: 1992, 229).
Muitas outras etnias poderiam ser citadas neste quadro rico e diversificado, ampliando as opções dos arquitetos Francisco Fanucci e Marcelo Ferraz, responsáveis pelo projeto de remodelação das fachadas do conjunto habitacional de Berlim. Mas eles acabaram optando por uma delas - os Kadiweu - cujos desenhos consistem em figuras geométricas abstratas. Segundo Darcy Ribeiro, a padronização dos modelos de pintura de corpo alcançou um grau tão alto, que os Kadiweu chegaram mesmo a desenvolver métodos de reprodução mecânica de alguns deles, através de uma espécie de carimbo, esculpido em relevo sobre madeira ou também em moldes de couro. "Um outro campo em que as artes gráficas Kadiweu alcançaram alto desenvolvimento foi a pirografia. Lançam com esta técnica os seus desenhos geométricos sobre as cabaças na decoração dos maracás usados pelos médicos-feiticeiros e nas cuias para o chimarrão. Neste caso, fazem sempre um esboço prévio, traçado a ponta de faca, queimando-o depois com um arame aquecido ao rubro." (RIBEIRO, D. 1962, 285).
Darcy Ribeiro considera que vários fatores contribuíram para baixar a qualidade de muitos artefatos Kadiweu: um deles foi o fato de organizarem a produção para o comércio; o outro, a discriminação que esses índios sofrem, levando-os a considerar tudo que lhes seja peculiar, como estigmas de inferioridade. "Mas nem tudo está perdido - diz Darcy -, pois o relativo isolamento de que gozam na reserva e, sobretudo, a mercante personalidade cultural desse povo, seu orgulho nacional ainda vivo, embora sangrando dos contatos com a civilização, lhes dá estímulo para continuar conduzindo muito do antigo patrimônio artístico." (RIBEIRO, D.: 1962, 259).
Foi, portanto, este patrimônio artístico que se incorporou à paisagem urbana de Berlim. Como a pintura Kadiweu é tarefa exclusiva da mulher, os dois arquitetos citados realizaram concurso entre as índias da aldeia Bodoquena, no Mato Grosso do Sul. Um deles conta como organizou o processo: "Mandamos para a aldeia Bodoquena um lote de papel cortado no tamanho já estabelecido, as instruções sobre as cores e canetas hidrográficas. Noventa e três índias, de 15 a 92 anos de idade, realizaram três propostas cada uma. O resultado nos agradou muito. No produto final foram preservados os traços vazados das canetas hidrocor, o gesto da pintura". (GAMA, 1998: 5).
Desenhar em papel não é uma experiência nova entre os Kadiweu. Lévi Strauss, em 1935, coletou aproximadamente quatrocentos desenhos de padrões decorativos, atraído "pelo efeito erótico que produziam nas pinturas de corpo e pela simetria que lembravam carta de baralho". Darcy Ribeiro,em 1948, também coletou mais de mil desenhos em papel. Recentemente, os arquitetos selecionaram, num primeiro momento, trezentas estampas coloridas, exclusivas, criadas pelas índias, e depois escolheram seis delas como vencedoras do concurso. No dia 19 de junho de 1998, essas estampas, transformadas em azulejos, foram inauguradas nas fachadas dos blocos do Bairro Amarelo, alegrando-o, humanizando-o, tomando-o mais belo, habitável e civilizado, facilitando a convivência e a comunicação entre os seus moradores. A aldeia Bodoquena ganhou, por este trabalho civilizatório, 20 mil marcos alemães e mais passagens e estadias de dez dias para seis índias, artistas Kadiweu, que estiveram presentes na festa de inauguração.
A reforma urbana de um conjunto habitacional de Berlim com desenhos Kadiweu evidencia os equívocos daquela concepção evolucionista ultrapassada que considera as experiências das sociedades indígenas no campo da arte e da ciência como primitivas, opostas à modernidade e, portanto, como algo que pertence à infância da humanidade, que não tem mais lugar no tempo presente. Ela serve também para exemplificar como um bem cultural pode adquirir novos usos e novas significações, se nele é investido um novo trabalho cultural. E aqui seria oportuno retomar as noções de cultura e de patrimônio cultural desenvolvidas por Eunice Durham, no seminário organizado em 1983 pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico de São Paulo. Ela chama a atenção para a carga simbólica presente nos bens materiais, enfatizando que a cultura está relacionada não apenas às obras, mas a uma certa capacidade humana de produzi-las e usufruí-las. "Nessa perspectiva, devemos tentar definir o patrimônio em função do significado que possui para a população, reconhecendo que o elemento básico na percepção do significado de um bem cultural reside no uso que dele é feito pela sociedade." (ARANTES: 1984).
O patrimônio cultural indígena da Amazônia não se limita, portanto, ao aspecto material. Existe uma dimensão da produção não-material, estritamente simbólica, evidenciada pelo uso e manejo da linguagem: a tradição oral, os mitos, os cantos, os sistemas religiosos e, sobretudo, os saberes condensados nas etnociências. O etnobiólogo Darrel Posey, que estudou as ciências dos Kayapó, concluiu que o conhecimento tradicional dos índios oferece algumas das opções mais viáveis e promissoras para uso de recursos sustentáveis nos trópicos. Segundo esse pesquisador, "se o conhecimento do índio for levado a sério pela ciência moderna e incorporado aos programas de pesquisa e desenvolvimento, os índios serão valorizados pelo que são: povos engenhosos, inteligentes e práticos que sobreviveram com sucesso por milhares de anos na Amazônia.
Essa posição cria uma 'ponte ideológica' entre culturas, que poderia permitir a participação de povos indígenas, com o respeito e a estima que merecem, na construção de um Brasil moderno." (POSEY: 1992, 43).
Com suas ciências, os povos indígenas classificaram a flora e a fauna, com rigor lógico equivalente às ciências ocidentais, atribuindo-lhes significados. Visto por este ângulo, a própria floresta amazônica, mesmo que não tenha sofrido intervenção humana direta, deixa de ser um mero dado da natureza, um patrimônio 'natural', para transformar-se em patrimônio cultural, na medida em que os povos indígenas atribuíram a ela um valor, um significado.
Neste caminho que percorremos para descrever o processo de incorporação da arte indígena à paisagem urbana de Berlim, gostaríamos de destacar quatro pontos que acreditamos tenham emergido à superfície:
1. Existe nos museus da Europa e dos países americanos uma extraordinária quantidade de bens culturais, de objetos materiais, produzidos no passado pelas sociedades indígenas da Amazônia. Esse patrimônio está mais disponível e acessível aos europeus do que aos brasileiros e aos próprios índios. Daí a discussão que foi retoma no ano passado sobre o repatriamento dessas peças e a necessidade de inventariá-las e mapeá-las.
2. Os próprios índios estão atualmente interessados em reapropriar-se deste patrimônio, com propostas claras de preservação. A COIAB - Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira - pretende construir em Manaus o Museu Intercultural das Ciências e das Artes Indígenas da Amazônia, com o apoio de uma equipe de museólogos vinculados à UERJ e de um escritório de arquitetura de Manaus, tornando possível "um repatriamento efetivo e uma circulação de objetos, considerados por muito tempo - sem ambigüidade – como 'propriedades' pelos colecionadores e curadores de museus metropolitanos". (CLIFFORD: 1991, 241).
3. O patrimônio indígena - tanto o material como o imaterial - continua sendo enriquecido hoje, num processo contínuo de transformação, de tensão provocada pela articulação entre tradição e inovação. Os índios estão permanentemente recriando a tradição, introduzindo novos sentidos e novos símbolos. Não se trata, portanto, de um patrimônio congelado, vinculado apenas ao passado da Amazônia, mas de algo vivo, ligado ao presente e ao futuro da região.
4. Na Amazônia, ao contrário do mundo andino e asteca, não herdamos construções monumentais, mas herdamos formas de construir, concepções de construção, visão de mundo. Herdamos mesmo? Bem, herdamos, se acharmos que vale a pena nos reapropriarmos deste legado. A H. Stem e os moradores alemães do Bairro Amarelo acham que vale. E nós, o que achamos?
Conheça o site PONTO SOLIDÁRIO e seu local de venda de Arte Indígena. Sugiro também a leitura, de Diego Martínez Celis, do artigo ¿De qué se ríe el petroglifo? A propósito de la interpretación de un petroglifo en el altiplano Cundiboyacense (Colombia).
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