31 de outubro de 2007

Iamulumulu e o primeiro pajé

Família kayapó: pintura de Deuseni Félix

Savuru era um espírito que possuía duas esposas. A pedido dos irmãos Sol e Lua, que as cobiçavam, as ariranhas o mataram, ficando sua esposa mais velha com o sol e a outra com a lua. Seguiram então os casais em direção à aldeia de Kanutsipei. Durante o caminho, os irmãos encontraram dificuldades e necessitaram da ajuda de outros espíritos: Iumulumulu lhes curou a impotência, Ierêp fez com que neles nascesse o ciúme das esposas e, uma vez cansados, pediram a Uiaó algo que os fizessem adormecer. No dia seguinte, dispostos, retomaram a caminhada. Chegando ao local pretendido, estavam sedentos e pediram água a Kanutsipei.

A água, porém, estava suja. O irmão Lua, tomando a forma de um beija-flor, voou rapidamente à procura de boa água. Ao voltar contou-lhes que o espírito os enganara, mantendo escondidos muitos potes com a mais pura água. Contrariados, os casais retornaram a sua aldeia, contando a todos o que ocorrera. O Sol e a Lua uniram-se a vários espíritos, Vanivani, Iananá, Kanaratê, os zunidores Hori-hori, invocando também os espíritos das águas que habitavam a copa do Jatobá. Chamaram ainda as máscaras Jakui-katu, Mearatsim, Ivat, Jakuiaép e Tauari. Reunidos, dançaram e resolveram voltar à aldeia de Kanutsipei para tomarem posse de sua água, quebrando todos os potes, conduzindo-a a outras regiões. Mearatsim, o primeiro a chegar, cantou para espantar o dono do local.

Chegaram então os outros espíritos, à medida que os potes foram quebrados, formou-se ali uma grande lagoa, de onde cada um dos espíritos criou um rio. Assim, o Sol criou o Rio Ronuro; Vani-vani formou o Rio Maritsauá; Kanaratê, o Paranajuva; Tracajá, o Kuluene e Iananá, um afluente do Ronuro. A formação dos rios não agradou ao Sol, pois todos corriam para o Morena, a região sagrada dos espíritos. Iniciou-se ali uma grande confusão, em meio à qual a Lua foi engolida por um grande peixe. O Sol, desesperado, saiu à procura do irmão, no ventre dos peixes que encontrava. Chegou a capturar o Tucunaré, o Matrinxã, o Pirarara e a Piranha. Mas havia sido o Jacunaum que a engolira, informou o Acará. E ambos, unidos, partiram à caça do peixe.

Pediram a Tapera (andorinha do campo) que lhes conseguisse um grande anzol, ocultando-o num charuto. O Acará nadou à procura de Jacunaum, oferecendo-lhe fumo. Desta maneira, o Sol conseguiu fisgá-lo. Entretanto, dentro do peixe, restavam apenas os ossos de seu irmão. Desejando ardentemente que a Lua revivesse, o Sol arrumou no chão seu esqueleto, cobrindo-o com as folhas perfumadas do Enemeóp. Aos poucos, como por encanto, a carne foi surgindo, revestindo os ossos até formar um novo corpo. Faltava-lhe ainda a vida. O Sol então introduziu um mosquitinho em sua narina, provocando-lhe um espirro, que a fez finalmente despertar. Assim foram criados os rios e, a partir daí, iniciou-se a prática da pajelança, tendo sido o Sol o primeiro pajé.

A andorinha do campo: Phaeoprogne tapera

30 de outubro de 2007

Os olhos de Aguiry

Paullinia cupana

"Aguiry era um alegre indiozinho, que alimentava-se somente de frutas. Todos os dias saía pela floresta à procura delas, trazendo-as num cesto para distribuí-Ias entre seus amigos. Certo dia, Aguiry perdeu-se na mata por afastar-se demais da aldeia. Jurupari, o demônio das trevas, vagava pela floresta. Tinha corpo de morcego, bico de coruja e também alimentava-se de frutas. Ao encontrar o índio ao lado do cesto, não hesitou em atacá-lo. Os índios encontram-no morto ao lado do cesto vazio. Tupã, o Deus do Bem, ordenou que retirassem os olhos da criança e os plantassem sob uma grande árvore seca. Seus amigos deveriam regar o local com lágrimas, até que ali brotasse uma nova planta, da qual nasceria o fruto que conteria a essência de todos os outros, deixando mais fortes e mais felizes aqueles que dele comessem. A planta que brotou dos olhos de Aguiry possui as sementes em forma de olhos, recebendo o nome de guaraná."

Fonte: Adaptação do livro: "Lendas e Mitos dos Índios Brasileiros", FTD Editora - Waldemar de Andrade e Silva. Visite também "The Guaraná Home Page".

Miranhas

Foto de W. Hardenburg, 1912

Em 9 de agosto de 2007 se cumpriram 100 anos desde que o jornalista colombiano Benjamín Saldaña Roca denunciou os chamados "crimes do Putumayo", onde índios de diferentes etnias da região foram escravizados e torturados pelos empresários capitalistas da extração do caucho. Uma dessas tribos, a dos Miranhas, também habita o Brasil, e a respeito dela escreve Priscila Faulhaber:

"O termo Miranha foi empregado na sociedade colonial, como um classificador genérico, que englobaria tribos inimigas, cuja linguagem não seria mutuamente comprensível. A língua Miranha é considerada uma variante muito próxima da língua Bora, que faz parte de um conjunto de línguas estreitamente aparentadas entre si, o qual, por sua vez, integra-se à família à qual pertence a língua Uitoto. A língua Miranha não é utilizada de modo corrente entre os Miranha brasileiros, cuja comunicação é estabelecida em português, ainda que se encontrem no Brasil antigos falantes desta língua e seus descendentes. Eles sabem que existem, na Colômbia, grupos Miranha que mantêm a comunicação em língua Miranha. No Brasil, alimentam um antigo interesse de intercâmbio com os Miranha colombianos, afirmando que desejariam "trazer de lá um professor que pudesse ensinar a língua Miranha" na escola. No entanto, como os conflitos fronteiriços são constitutivos das nacionalidades de brasileiro e colombiano a nível local, acentua-se o caráter contrastivo das identidades de Miranha brasileiro e Miranha colombiano, e isto cria dificuldades para que este tipo de intercâmbio, que não é bem visto pela FUNAI e outros atores locais, venha a se concretizar.

(...) A presença Miranha passou a ser mais sistematicamente observada a partir dos viajantes naturalistas. Nos relatos desses viajantes, os tuxauas (chefes ou "principais") Miranha ficaram conhecidos por vender aos comerciantes de Tefé escravos de "tribos" inimigas e também os seus próprios filhos. Os escravos eram adquiridos para servir como mão-de-obra às famílias de Tefé, e as mulheres, em geral, eram transformadas em concubinas. Os Miranha participavam, assim, das relações mercantis da sociedade colonial, inclusive da "venda de escravos", freqüentemente trocados por ferramentas de trabalho.

Eles, porém, mantinham seu território tradicional, visto como "terra de ninguém", disputada pelos Estados coloniais, como notou Martius no relato de sua viagem de 1820 até a cachoeira de Araraquara, no alto rio Japurá, ou Caquetá, no atual território colombiano. Os Miranha que Martius ali encontrou viviam no que parecia ser seu hábitat tradicional fazia muito tempo. Aos olhos do naturalista, as tribos próximas viviam em constante estado de guerra, e marcavam-se com traços distintivos, pelos quais se reconheciam, ao encontrar-se a sós ou em bandos, em suas caçadas. Segundo Martius, os Miranha desfiguravam o rosto furando as narinas e nela enfiando cilindros de pau ou conchas. Como resultado teriam como traço distintivo o alargamento das narinas. O "trocano", grande tambor talhado em um só tronco de madeira, era utilizado como instrumento de comunicação à distância.

O naturalista destacou o seu costume de comer os inimigos mortos em guerra. Mas começavam a dar preferência a vender os prisioneiros, como lhe revelou um chefe conhecido e temido, não só entre os Miranha, mas em toda área, por sua coragem de escravizar inimigos tanto dentro de sua própria tribo quanto nas vizinhas e pela capacidade de negociá-los com os brancos. Sua supremacia teria sido conquistada neste comércio com os brancos, que ele controlava em nome de todos, e fazia valer entre os companheiros de sua tribo. Por esta habilidade, conforme Martius, os Miranha a ele inconscientemente se submetiam, tornando-se seus "servos e súditos" por "indolência, orgulho e egoismo". Sem esta habilidade do chefe para o trato com os brancos, que adquirira assim alguns hábitos destes últimos, pareceu-lhe cada um querer governar a si mesmo. Martius estranhou que aceitassem esta forma de "representação comercial", julgando ele que ali estaria ausente a "noção de soberania".

Sobreviventes da expansão comercial, a exploração da borracha atingiu duramente os Miranha. Koch-Grünberg, no início do século XX, quando visitou o Japurá e o Apaporis, descreveu aldeias abandonadas por medo dos colombianos, nas quais se noticiava que muitos Miranha tinham sido mortos no seu território tradicional, o rio Cahuinari, no divisor de águas entre o Caquetá e o Putumayo; região disputada então entre Colômbia e Peru. A violência e o terror se difundiram pela Amazônia. Muitos Miranha foram transportados pelo Japurá, para rios como Purus, Juruá, Jutaí, para trabalhar na extração da borracha.

O genocídio cometido pela Casa Arana, companhia gomífera peruana cujos principais acionistas viviam na Inglaterra, foi largamente denunciado na imprensa da época, e documentado pela etnologia. Foram registrados, todavia, atos de resistência Miranha, os quais podem ser cotejados com a sua memória social. O percurso Miranha pelo Japurá é lembrado, em depoimentos de testemunhas indígenas e seus descendentes, como uma fuga dos "colombianos matadores de índios". Segundo estudos colombianos atuais, a rede dos exploradores da mão de obra indígena perpassava todo o campo político colombiano, tendo sido o próprio presidente da Colômbia, Rafael Reyes (1904-1909), acusado de "traição à Pátria" em um processo criminal contra caucheiros colombianos, que com ele travavam ligações e que teriam "arrendado" território considerado colombiano à companhia peruana. Operações mercantis também envolveram o Brasil, conforme registrou-se em documentos consulares depositados no Arquivo Histórico do Itamaraty, no Rio de Janeiro.

Pairava sobre o governo brasileiro a acusação de que era conivente com o "tráfico", ou transporte clandestino, de índios Miranha para o trabalho escravo nos seringais brasileiros. Apesar de denúncias, na Colômbia, de participação do governo brasileiro em negócios escusos, as relações diplomáticas do Peru e da Colômbia com o Brasil eram amistosas, sobretudo pelo acesso ao Atlântico através do rio Amazonas, aberto à navegação internacional desde 1873.

Em 1929, o SPI reconheceu as terras indígenas Méria e Miratu, e demarcou a primeira. Este ato constituía um contra-discurso face às denuncias de que comerciantes "traficavam" escravos Miranha, e à demanda, por parte de colombianos, de seu "repatriamento". Os marcos da fronteira Brasil-Colômbia foram firmados em 1936, menos de uma década depois do reconhecimento dos territórios Miranha. O Estado brasileiro demonstrava reconhecer os direitos de cidadania daqueles que haviam sido transportados para o território brasileiro. No rio Japurá, citado freqüentemente como passagem para negócios não regularizados, o estado do Amazonas limitava-se a subvencionar uma linha regular de navegação a vapor até o porto do Jubará, que era o ponto final do comércio legalizado. (...)"

Os Miranha são freqüentemente citados nos textos do missionário e etnólogo Tastevin, que explorou a região no início do século XX. Recentemente, a importância dos Miranha para a história indígena no Brasil foi destacada por Arnaud (1974) e, no Caquetá, estudada por americanistas europeus (destacando-se Guyot) e colombianos (Pineda Camacho). Desde 1981, Priscila Faulhaber vem se dedicando ao estudo de problemas relacionados a este povo, tema de sua dissertação de mestrado e um dos focos de sua tese de doutorado, ambas publicadas (1987 e 1998), elaborando trabalhos antropológicos tanto de caráter teórico como destinados a uma divulgação mais ampla. Para ler o seu texto completo clique aqui.

Para se ler: "La Casa Arana en el Putumayo - El Caucho y el Proceso Esclavista", de Roberto Pineda Camacho, e sobre a situação atual "El territorio Miraña del parque Cahuinarí: historia de los mirañas, el parque nacional, investigaciones realizadas, el plan de manejo y temas prioritarios de investigación", em formato pdf. Fontes de Informação: Priscila Faulhaber - Museu Paraense Emílio Goeldi - priscila@museu-goeldi.br

29 de outubro de 2007

O lento extermínio da Nação Toba

A maioria dos internos no hospital público do povoado de Castelli, no Chaco argentino, são tobas em estado de total desnutrição e com outras doenças vinculadas à pobreza.

Os tobas são um dos poucos grupos indígenas que restam na Argentina e, segundo grupos de direitos humanos, se encontram em situação de desastre humanitário. Vivem no chamado Bosque de El Impenetrable, o lugar mais pobre na região mais pobre do país: a província de Chaco, no nordeste argentino. Eles não parecem pensar tanto nas eleições presidenciais do 28 de outubro, e sim em como sobreviver um dia a mais em meio ao abandono.

Mais de 10.000 tobas vivem dispersos em El Impenetrable, uma floresta que já não faz honra a seu nome porque a talha indiscriminada de árvores e o avanço da agricultura abriram grandes feridas em sua vegetação cerrada. Como foi perdida a rica flora e fauna do lugar, os indígenas ficaram sem seus meios de sustento: a recolha de frutos e a caça.

"O desastre se produz quando começa a penetração, quando entram máquinas para talhar matas de quebrachos centenários e abrir espaços para cultivar a soja, hoje um grande negócio para a Argentina", disse à BBC Mundo o escritor chaquenho Mempo Giardinelli.
"E para onde vão os indígenas? O que fazem com suas tradições? São abandonados. Aparecem assim comunidades completamente despojadas de seu habitat".

A BBC viajou ao povoado de Castelli, às portas de El Impenetrable. Lá um hospital público abriga a dezenas de tobas extremamente magros, recostados em camas sujas dentro de salas infestadas por moscas. Os adultos têm o olhar perdido, parecem esperar a morte. Os recém-nascidos, com olhos arregalados, choram desconsolados.

A maioria dos tobas hospitalizados sofrem de desnutrição e doenças associadas à extrema pobreza, como a tuberculose e o mal de Chagas.

Ricardo García, que se recupera de uma pneumonia, conta: "Falta alimento em minha casa, às vezes passamos uma semana sem comer".

Nos últimos meses se reportaram mais de uma dúzia de tobas mortos por desnutrição, algo que comoveu a um país que se orgulha de crescer a um ritmo anual de até 8%. Entretanto, o ministro da Saúde de Chaco, Ricardo Mayol, deu à BBC Mundo outra versão sobre a causa dos falecimentos. Para ele, os indígenas morreram "por serem portadores de doenças terminais como câncer, afecções metabólicas, acidentes cérebro-vasculares, apesar de também estarem desnutridos".

"Nós estamos trabalhando para assistir aos tobas. Mas os falecidos eram, em geral, pacientes que para nós resultava muito difícil manter sob a proteção estatal, porque se negavam ou migravam".

Grupos de direitos humanos se mostraram em desacordo com Mayol, afirmando que não se pode desconhecer que a desnutrição está na base do padecimento dos tobas e que deve se fazer mais para chegar às comunidades indígenas e atendê-las.

Depois de visitar o hospital de Castelli, entramos nos sertões da floresta de El Impenetrable. Acompanhou-nos Rolando Núñez, do Centro de Estudos Nelson Mandela, uma organização de direitos humanos que distribui alimentos aos tobas.

"Estas famílias vivem em condições de profunda pobreza e fome permanente. Para nós é uma situação de desastre humanitário ou de genocídio étnico", comentou Núñez à BBC Mundo.

Leiam a reportagem completa (em espanhol) em "Los más pobres entre los pobres - La Otra Argentina que vota", de Max Seitz.

Fonte: BBC Mundo. Tradução pelo autor do blog para esta publicação sem fins comerciais.

27 de outubro de 2007

As Cataratas que surgiram do Amor

Arte de Owen Franken

Distribuída em várias aldeias, às margens do sereno Rio Iguaçu, a tribo Jê formava uma poderosa Nação Indígena. Desde 1882 os Jê da Região Sul foram denominados genericamente por Telêmaco Borba (o mais importante estudioso e defensor dos indígenas no século passado) por "kaingangs" ("kaa" = mato; "ingang" = morador). Tinham como deuses Tupã, O Deus do Bem e M'Boy, seu filho rebelde, o Deus do Mal. Era este o causador das doenças, tempestades, das pagas nas plantações, além dos ataques de animais ferozes e das demais tribos inimigas. A fim de se protegerem do Deus do Mal, em todas as primaveras, os Caiangangs a ele ofereciam uma bela jovem como esposa, ficando esta impedida para sempre de amar alguém. Apesar do sacrifício, esta escolha era para ela um privilégio, motivo de honra e orgulho. Naípi, filha de um grande cacique, conhecida em todos os cantos por sua beleza, foi desta vez a eleita.

Feliz, aguardava com ansiedade o dia de tornar-se esposa do temido Deus. Iniciaram-se assim os preparativos da grande festa. Convidados chegavam de todas as aldeias para conhecê-la. Entre eles estava Tarobá, valentes guerreiros, famosos e respeitados por suas vitórias. Ocorreu que, talvez pela vontade do bom Deus Tupã, Tarobá e Naípi vieram a se apaixonar, passando a manter encontros secretos às margens do rio. Sem ser notado, M'Boy acompanhava os acontecimentos, aumentando a sua fúria a cada dia. Na véspera da consagração, os jovens encontraram-se novamente às margens do rio. Tarobá preparou uma canoa para fugirem no dia seguinte, enquanto todos adormeciam, fatigados com as danças e festejos e sob efeito das bebidas fermentadas.

Iniciaram a fuga e, já à boa distância do local M'Boy concretizou sua vingança. Lançou seu poderoso corpo no espaço em forma de uma enorme serpente, mergulhando violentamente nas tranqüilas águas e abrindo uma cratera no fundo do rio Iguaçu. Formaram-se assim as cataratas, que tragaram a frágil canoa. Tarobá foi transformado em uma palmeira no alto das quedas e Naípi em uma pedra nas profundezas de suas águas. Do alto, o jovem apaixonado contempla sua amada, sem poder tocá-la. Restando-lhe apenas murmurar seu amor quando a brisa lhe sacode a fronde.

Em todas as primaveras lança suas flores para Naípi, através das águas, como prova de seu amor. A jovem está sempre banhada por um véu de águas claras e frescas, que lhe amenizam o calor de seus sentimentos. Ainda hoje, M'Boy permanece escondido numa gruta escura, vigiando atentamente os jovens apaixonados. Ouve-se dizer que, quando o arco-íris une a palmeira à pedra, pode-se vislumbrar uma luz que dá forma aos dois amantes, podendo-se ouvir murmúrios de amor e lamento.

Fonte: Escola Vesper (Estudo Orientado) e Página do Gaúcho. Conheçam também o site Portal Kaingang e uma versão para a mesma lenda contada por Sandra Baldessin. Em francês se pode ler um interessante artigo do antropólogo Robert Crépeau, " Les Chamans et leurs pouvoirs", sobre o xamanismo kaingang.

No Brasil, o monitoramento sobre as aldeias

Aldeia Hunikuin no Acre

O Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia (Censipam) anunciou no último dia 18 o lançamento de um novo sistema de dados sobre terras indígenas e áreas de conservação da Amazônia. Batizado de Programa de Monitoramento de Áreas Especiais (ProAe), o aplicativo desenvolvido pelo Censipam de Porto Velho (RO) contém dados sobre desmatamento ou da ação do homem sobre o meio ambiente, entre outros, mesmo que se tratem de pequenas intervenções. Poderão ter acesso às informações órgãos que tenham atuação na Amazônia, como secretarias de Meio Ambiente municipais ou estadual, Defesa Civil, Ministério Público, Polícia Federal, prefeituras e universidades.

De acordo com o diretor-geral do Censipam, Marcelo de Carvalho Lopes, a base de dados do ProAe possui imagens de satélite, atualizadas regularmente, incluindo cartas-imagem compactadas, informações temáticas georeferenciadas, além de dados estatísticos sobre desmatamento. Os dados, explicou, serão fornecidos em Cds. "Nosso objetivo é que tenhamos um alto grau de detalhes para que possamos compartilhar isso com outros órgãos estaduais, com atribuição de repressão ao desmatamento, como Ibama, polícias ambientais e Polícia Federal. Os dados permitirão que esses órgãos estruturem operações a partir das informações recebidas, identificando o incremento de ações ilícitas de desmatamento", destacou.

A versão do sistema lançada nesta quinta inclui análises de áreas no Acre, em Rondônia e Mato Grosso. E para garantir maior abrangência da região amazônica, outros técnicos do Censipam participam de treinamentos para padronização das normas de organização dos dados de outros estados. Com isso, até o primeiro semestre de 2008, os resultados uniformizados da Amazônia inteira estarão disponíveis. "Só em Rondônia estão sendo monitorados mais de 9,2 milhões de hectares de unidades de conservação estaduais, federais e terras indígenas. O objetivo não é monitorar todas as áreas, mas que se tenha um grau elevado de detalhes as áreas monitoradas", informou Lopes.

Ele explicou ainda que o sistema deverá fornecer, "em um segundo momento, informações sobre campos de pouso, movimento aéreo e mineração ilícita nesses três estados e, a partir de 2008, em toda a Amazônia Brasileira".

Fonte: Agência Brasil.

Como até julho de 2008, instâncias governamentais brasileiras planejam garantir a conexão em 220 pontos de presença para comunidades indígenas em todo o país acessarem a internet, é de se esperar que em breve jovens indígenas venham a ser capacitados para gerenciarem as áreas de suas aldeias utilizando esta moderna tecnologia, que também pode ser de grande valia na constituição de projetos de desenvolvimento sustentável ensejados por suas comunidades. Por outro lado, como vemos que poucos estudantes indígenas vêm se interessando pela área de contabilidade e administração, é bom lembrar que isso mantém uma tutela sobre os índios por parte dos chamados "homens civilizados", e esta tutela permanente só terminará quando as nações ameríndias puderem deixar de se preocupar apenas com o básico de sua sobrevivência e passarem a estabelecer projetos de longo prazo para as novas gerações. Esta a minha sincera expectativa: que a tecnologia fomentada venha de encontro às necessidades dos povos indígenas brasileiros, e não contra a biodiversidade de suas aldeias.

Conheçam como referencial uma página sobre o Projeto Pinkaiti, que vem sendo desenvolvido pela Conservation International junto aos Kayapó. A Smithsonian Magazine publicou em março de 2007 o artigo "Rain Forest Rebel", de Joshua Hammer, tratando sobre a experiência dos índios Suruí na utilização da moderna tecnologia de monitoramento, e pode-se ler também de Alan Boyle a reportagem "Amazon Indians go hi-tech to map their land". Vejam em slideshow os mapas trabalhados pelos índios (sobre o Tumucumaque) em Amazon Team.

26 de outubro de 2007

Indígenas do México à mercê do capitalismo

Guerrilheiro em Chiapas banhando o filho na natureza

Os povos ameríndios perdem seus recursos naturais frente à iniciativa privada. Sem proteção jurídica, as comunidades originárias da atual República do México são despojadas por transnacionais. “Incorporar plenamente os povos indígenas ao desenvolvimento econômico, social e cultural do país”, estipula o PND2007-2012, propondo fomentar o aproveitamento do patrimônio natural das comunidades, intensificando projetos produtivos. “Se trata de conservar e capitalizar os ativos naturais dos povoados e das comunidades indígenas para impulsar seu desenvolvimento econômico”. Entretanto, sem uma lei indígena que garanta plenamente o direito de acesso ao aproveitamento da riqueza ambiental, esta seguirá concentrando-se na iniciativa privada.

No informe do Centro de Direitos Humanos Miguel Agustín Pro Juárez (Centro Prodh), sobre a situação dos direitos indígenas durante os seis anos de governo de Vicente Fox, sua autora Magdalena Gómez analisa seis leis que legalizam a usurpação dos recursos naturales. O maior problema está nas recentes legislações do país que “desferem seu golpe, já não apenas contra a autonomia dos povos indígenas, mas sim contra sua própria existência, ao assentar as bases para que sejam privados dos territórios que ainda desfrutam”, diz a especialista.

Aponta Gómez que durante esse período se legislou no sentido imposto pelas grandes empresas transnacionais, cujos negócios giram em torno da biodiversidad, sob o amparo da ONU, a Organização para a Agricultura e a Alimentação (FAO), o Programa para o Meio Ambiente (PNUMA), a Organização Mundial de Comércio (OMC), a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) e os Bancos Mundial (BM) e Interamericano de Desenvolvimento (BID).

Para a defensora existe uma contradição entre o Convênio 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e o Convênio de Diversidade Biológica (CDB): “O primeiro estabelece condições para a vigência dos direitos dos povos indígenas, mas o segundo abre a porta à exploração e aproveitamento dos recursos biodiversos que se encontram em territórios de povos indígenas”.

Entre as leis que enumera a advogada, está a Lei de Biodiversidade de Organismos Geneticamente Modificados, mais conhecida como Lei Monsanto, aprovada em 14 de dezembro de 2004. “A lei garante os interesses dos monopólios da indústria biotecnológica da qual Monsanto é líder e permite a distribuição e liberação ao ambiente de organismos transgênicos com severos riscos para a soberania alimentar, a saúde humana e a biodiversidade”, expõe.

Define o Convênio de Diversidade Biológica, subscrito pelo México em 1992, como “o guarda-chuva que em nome da diversidade e da sustentabilidade introduziu uma postura conservacionista e propensa ai fomento de capital, invés de combinar o fator cultural e social com o ambiente”.

No mesmo informe, Silvia Ribero classifica o Programa de Certificación de Derechos Ejidales y Comunales (Procede e Procecom) e o Programa por Servicios Ambientales y los Ordenamientos Territoriales de Nuestros Pueblos, como “estratégias direcionadas à fragmentação e privatização dos territórios e a destruição da organização comunal”. Destaca também a Lei Nacional de Águas, reformada em 2004, que permite a venda ou concessão de fontes de água, e também a Lei Federal de Acesso e Aproveitamento dos Recursos Genéticos. Esta última, diz, “legaliza a biopirataria e estabelece canais para que as empresas monopolizem plantas, insetos, microorganismos e outros componentes de biodiversidade. A manobra é mais perversa ao introduzir como ‘direito’ que as comunidades avaliem a venda da biodiversidade justificando o monopólio de bens coletivos, que além do mais não estão à venda”.

A respeito, María del Carmen Carmona Lara, expert em direito ambiental do Instituto de Pesquisas Jurídicas da Universidade Nacional do México (UNAM), assinala: “Se consideramos o que estabelece a Lei de Vida Silvestre, a comunidade indígena ou agrária têm direito preferencial sobre os recursos nos lugares onde habitam, sobre o valor do recurso genético”. A expert propõe que se nacionalizem os recursos genéticos para evitar que transnacionais os registrem e obtenham sua patente, e que se regule a erosão genética para evitar sua degradação: “Os indígenas estão em desvantagem em tecnologia e desconhecimento de sua riqueza genética que agora possui um valor no mercado e é aproveitada pelas grandes transnacionais que se disfarçam em projetos de desenvolvimento sustentável”. Lembra o caso do milho perene da Serra de Manatlán, Jalisco, extraído por pesquisadores nacionais em convênio com uma universidade canadense que patenteou sua raiz genética e agora é vendido aos mexicanos; e o acontecido com a agave azul no momento em que o país solicitou o reconhecimento de origem ante a OMC.

Enfatiza que na Lei de Desenvolvimento Sustentável, todo o território nacional é florestal e só por exceção se outorgam concessões e licenças para o aproveitamento destes recursos. Ao mesmo tempo, na Lei de Equilíbrio Ecológico e Proteção ao Ambiente, se outorgam certos direitos de participação, mas “dizem que eles podem participar em uma consulta pública, mas não se traduz a seus idiomas a convocatória ou as declaratórias de áreas naturais protegidas e estão violando seu direito de acesso à informação”.

No México, os indígenas são proprietários de mais de 80 por cento dos ecossistemas em bom estado de conservação, que representa mais da metade do território nacional sob o domínio de 30 mil grupos indígenas. De 149 áreas naturais protegidas, 93 se encontram em 171 municípios indígenas, consideradas como lugares sagrados, ceremoniais e de importância arqueológica.

As principais áreas naturais protegidas com presença indígena são: Pantanos de Centla, Tabasco, Montes Azules, Chiapas, Sian Ka’an, Quintana Roo, Sierra del Pinacate, o Grande Deserto de Altar e a Ilha Tiburón, em Sonora e o Alto Golfo de California.

Setenta por cento dos recursos petroleiros mexicanos são extraídos de jazidas localizadas em municípios com forte presença indígena. Na exploração de jazidas minerais, os municípios indígenas de Guazapares e Urique aportam a décima parte da produção estatal de ouro, enquanto que Huajicori, Nayarit, aporta 98 por cento do total de chumbo, 97 por cento de cobre e 68 por cento de ouro.

Sessenta por cento das 109 milhões de hectares de extensão arborizada, está em regiões indígenas e quase a terceira parte da população indígena mora em zonas florestais. A Comissão Nacional para o Conhecimento e Uso da Biodiversidade (Conabio) afirma que nas regiões indígenas se detectaram 103 espécies endêmicas. De 925 espécies animais registradas, segundo categorias especiais, 620 vivem em regiões indígenas; 155 estão em perigo de extinção, 295 ameaçadas, 25 contam com proteção especial e 145 são consideradas raras.

De acordo com o PND, a metade das florestas úmidas e dos bosques de altura, e a quarta parte das matas temperados estão em territórios indígenas. Além disso, nas partes altas das bacias onde habitam se capta 22 por cento da água do país. “Isto mostra a importância dessas comunidades e dos territórios que ocupam para a conservação da biodiversidade e o aporte de serviços ambientais”, argumenta o PND.


Publicado originalmente em CONTRALINEA, Julho de 2007, ano 5, n. 83. Para conhecer e estar em contato com a realidade em evolução no território guerrilheiro de Chiapas, acesse: http://chiapas.indymedia.org

Razões do autor

Arte do artista gráfico Jonathan Yuen, de Singapura

Após alguns dias sem escrever, acho que está fazendo falta um posicionamento de minha parte como responsável pelo blog. "Autor" enquanto responsável pela contextualização dos posts, pois na maioria dos casos me sinto como um deglutidor, mastigador ou reciclador das matérias aqui veiculadas, eu na verdade, após a grande realização que significou a aprovação no dia 13 de setembro último da Declaração Internacional dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas, senti vontade de encerrar este blog. Considerando o ímpeto inicial que me fez começar a escrever neste blog, achei que essa etapa da missão estava concluída e o volume de informações materializado pelo blog já ser bem grande para servir como referencial tanto para estudantes ameríndios como para os demais interessados na temática. Entretanto, um mês depois de haver parado, não tive como deixar de continuar a utilizar este veículo de comunicação pessoal para continuar registrando a luta dos povos ameríndios pelo reconhecimento de seus direitos, sobretudo porque nosso assunto aqui é sobremodo a questão das relações interculturais vigentes e de como transformá-las tendo como base o mundo e a compreensão de mundo em processo de reformulação na atualidade.

O blog continuará, portanto, vivo e atuante, assim espero, mesmo se em um mês ou outro não acontecer a mesma assiduidade da minha parte: e peço aos amigos leitores venham a ser também colaboradores, sempre que houver algum assunto ou tema que lhes pareça interessante abordar, ou conteúdo que desejem tratar comigo com mais detalhe, por favor não deixem de me escrever para meu mail pessoal em alcanave@gmail.com - se eu estiver me conectando (às vezes posso estar pelos sertões) estarei respondendo prontamente. Meu obrigado a todos vocês!...

25 de outubro de 2007

O mundo de Kuyuri

Foto de Günther Protásio Frikel (1912-1974)

A origem do mundo para os Tiriyó corresponde à própria origem do espaço e do tempo, para além há o indizível, associado à escuridão, ao silêncio e à falta de movimento. Kuyuri é o primeiro ser que existiu, ainda sem forma, apenas com existência. Dizem que Kuyuri não tinha cara nem de homem, nem de bicho, não tinha forma porque não foi feito por ninguém, ele simplesmente 'brotou', ahtao, da mistura que deu origem ao início dos tempos: pena ahtao, época definida como onde e quando a vida brotava 'sem pedir', por si própria.

Enquanto tal é que o nome desta primeira entidade chamada Kuyuri designa o ser dotado de uma luz, surgida onde antes havia apenas a escuridão; de fala mágica, onde antes havia só o silêncio; e de um fluido fértil, que antes era inerte.

O mundo primevo de Kuyuri é descrito como uma paisagem terrestre clara, circundada por um meio aquático, e envolta pela escuridão. Neste mundo, Kuyuri vivia sozinho, tinha a palavra, mas não tinha com quem conversar; enxergava mas não via ninguém. Seu mundo era só espaço, sem tempo, porque nada acontecia. Ele era capaz de criar por meio de sua palavra mágica e de sua luz, vendo diante de si o que nomeava.
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Eis que não querendo mais ser único, Kuyuri, fruto de uma mistura primordial, precisava agora fazer sua própria mistura para deixar de ser sozinho. Não bastava mais dar vida pela palavra, era preciso moldar a vida pela forma e, então, diferenciar-se para finalmente deixar de ser só. Kuyuri, que era homem, queria fazer uma mulher. Foi então que, realizou a segunda mistura primordial, a partir de dois tipos de matérias concebidas como inertes, quando isoladas entre si, tais como o barro, takuren, e o breu, warunu.
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O barro de tipo takuren é a matéria que Kuyuri extrai do interior de seu mundo claro e vazio de mais vida como a sua, para misturar com o breu, escuridão que extrai do exterior. Eis que, misturada com takuren, esta escuridão ganha qualidades próprias, transformando-se no espesso e denso fluido vital sangüíneo denominado munu. Tornado sangue, seu fluido espiritual que era sem cheiro, ipoinna, ganha aroma próprio, podendo tornar-se agradável e desejável, tüpoinye, ou desagradável e indesejável, tüpoküne.
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Diz-se que o fluido espiritual de Kuyuri era incolor, koronna, e tornou-se vermelho, tamire, que é definido como a cor da vitalidade. E diz-se que o conteúdo fértil de Kuyuri era sem forma e sem envoltório, e que, misturado ao barro e à escuridão, toma forma de 'fio', formando assim a 'corda da vida', warumunu, cujos protótipos são, para os homens tiriyó, o waruma (arumã) e a fibra de kurawa (curauá).
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Daí se origina toda uma simbólica vinculada aos princípios masculino e feminino. A começar pela forma que Kuyuri moldou a partir daquela mistura de barro com breu, evocando uma estreita associação entre as vasilhas de argila em geral, denominadas ëri, e a mulher, wëri, não apenas a humana, mas as fêmeas em geral, com forma corpórea e 'sangue por dentro'. Diz-se que Kuyuri fez a sua primeira mulher de argila, ërino, mas ela era muito frágil. Quando ela se partiu, ele viu que tinha sangue dentro. E que, portanto, a tentativa de Kuyuri não tinha sido em vão: a forma era frágil, mas o conteúdo era vital.
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A partir daí, onde antes tinha apenas espaço instaurou-se o tempo e, com ele, o movimento da vida. Os caminhos do fluido espiritual kupü se espalharam e os lugares do sangue munu se proliferaram ao longo do espaço e do tempo em que o espírito vital pü começou a percorrer, produzindo incessantemente a sua própria continuidade.
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Cada nova criatura de Kuyuri é, tal como comparam os Tiriyó, como se fosse um braço seu, porque de cada uma delas depende a continuidade de seu espírito. Sob este mesmo princípio, compreende-se que, se a continuidade do espírito de Kuyuri depende de suas criaturas, a continuidade do espírito destas, depende, por sua vez, de um processo de re-criação sem fim semelhante ao inaugurado por Kuyuri. Desde quando, querendo deixar de ser só, misturou o barro takuren com a escuridão warunu, dando origem ao sangue, para que seu espírito pudesse ser transportado de criatura em criatura, e, assim, continuado, humanos e animais são concebidos como Oto, 'corpos animados'. Porém, diferenciam-se no que diz respeito à utilização da linguagem que permite a uns e não a outros auto referenciarem-se como um oto que é wütoto, ou seja, gente. Diferenciam-se portanto quanto a sua condição no mundo, ficando a condição humana reservada aos seres capazes de se auto-referirem enquanto sujeitos continuadores do espírito de Kuyuri, que vivem coletivamente 'como gente', wütoto me.
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(...) O mundo deixou de ser, por assim dizer, um mundo estacionado no espaço e no tempo a partir de quando Kuyuri concebeu a forma corpórea feminina como um invólucro, ëri com sangue, munu feito para receber o espírito contido no fluido fértil masculino, kuru, e para produzir, emukupünu ou, simplesmente muku, que é a designação abreviada para filho(a).
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Desde então, a cada filho que nasce, seja homem ou mulher, cabe aos pais ensiná-lo a saber como se tornar capaz de continuar o espírito de Kuyuri, e, desde então a ordem primeva, em que o mundo dividia-se em um conjunto de espécies feitas para alimentarem e outras para serem alimentadas, não passou senão a dizer respeito a uma matriz explicativa da linguagem pela qual Kuyuri se comunica com seu mundo. Porque de lá para cá, a memória tiriyó foi sendo densamente povoada de histórias de seres que foram eleitos como pëeto (ajudantes, continuadores) e que, não se mostrando capazes de retribuir Kuyuri com a continuação de seu espírito foram transformados em pëera, e de seres que chegaram a mostrar-se pëera, cometendo erros de conduta, revelando-se incapazes em algumas situações, mas que aprenderam a tornar-se pëeto, e, assim, transformaram-se em eleitos e bem sucedidos continuadores do espírito dele.
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(...) Na exígua literatura sobre cosmologia tiriyó, Yaraware é descrito como um humano imerso no desenrolar da vida, tal como ela começou a ser vivida no princípio dos tempos. E, com efeito, a partir das informações que obtive junto aos Tiriyó, Yaraware é descrito como uma espécie de Kuyuri mundano, que personificava, na terra, as potencialidades do espírito masculino de Kuyuri, ao lado de sua esposa Urutura, que revelava, em sua existência, o espírito feminino, tal como ele existiu desde quando a mulher ainda não tinha forma corpórea, era apenas espírito.
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Um espírito e outro, masculino e feminino, surgem concebidos como dotados de potências inversas, porém complementares: a fala do espírito feminino não é associada à luz, como é a fala do espírito masculino, mas à escuridão. E veremos que a partir desta diferença de base os Tiriyó explicam boa parte dos desdobramentos que seu mundo tomou, desde quando, querendo deixar de ser sozinho, Kuyuri misturou o barro takuren com o breu warunu para que pudesse não ser mais único e, como tal, infecundo. Desta mistura e da forma moldada a partir dela, deriva aquela estreita associação mencionada acima, entre as vasilhas de argila em geral, denominadas ëri e a mulher, wëri.
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A relação entre ëri e wëri, 'recipiente' e 'mulher' assemelha-se àquela entre oto e wütoto, 'animal' e 'homem (humano)', e me parece estar associada à diferença entre o ser que é dotado de vida animada, tal como se concebe que seja a argila, ëri, assim como o animal, oto, 'com sangue por dentro', e o ser que, além de 'sangue por dentro', pode se auto-referir, através da linguagem, ou ser referido por outrem como sujeito de uma vida animada.
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A respeito desta época definida como pena ahtao, a memória tiriyó é prolífica em narrativas que tratam de encontros primevos, não mais simplesmente entre matéria e não-matéria, como quando a vida brotava, sem pedir das misturas primordiais, mas entre diferentes tipos de gentes que, sendo dotados de fala, visão e movimento, concebiam-se indistintamente 'como humanos', vivendo num mundo inteiramente relacional e comunicativo, causacional e transformacional, que não estava dado diante dos olhos de quem o via, ele era, ou deixava de ser aquilo em que o desenrolar das relações entre os seres o transformava.
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Se a lua nunca se encontra no céu, com o sol, wei, é porque um dia competiram entre si, viajando em canoas celestes, para ver quem conseguia iluminar mais o mundo. Tendo perdido a competição para o sol, desde então, a lua evita encontrá-lo, e só aparece quando ele já se foi. O sol é concebido como um ser de Kuyuri, que preserva a continuidade de seu espírito e que, enquanto tal, é associado às qualidades do espírito masculino. E a lua, ao contrário, é associada à escuridão, e às qualidades do espírito feminino, que, em sua origem, provém daquele breu do qual Kuyuri precisou para criar novos seres e então continuar seu espírito.
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O patamar em que a lua se encontra é descrito como a morada das almas que, na terra, incorporaram, em si, os defeitos do espírito feminino. Por sua vez, o patamar celeste em que o sol se encontra, é descrito como o mais distante que existe em relação à lua, num lugar onde é sempre dia e onde as potências do espírito masculino de Kuyuri se realizam plenamente, sem necessidade de relação com potências contrárias. Lá, então, o mundo é só fertilidade, fala mágica e luz. Nada precisa ser feito, está tudo pronto ao desfrute de quem soube cultivar em si, e continuar em seus descendentes, o espírito de Kuyuri.
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Porém, o que as narrativas tiriyó revelam é que, no princípio dos tempos, a humanidade foi se distanciando muito deste lugar paradisíaco, e que, conforme o espírito humano contagiava-se mais com a potência contrastiva do espírito feminino, mais obstáculos foram surgindo nos caminhos, estrategicamente povoados de anacondas e outros tantos seres monstruosos que se encarregam de controlar a entrada de espíritos nefastos naquele lugar.
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E o desenrolar do convívio de Yaraware com Urutura, enquanto casal, ilustra bem as origens deste distanciamento cada vez maior entre a terra e o céu. Apé Tiriyó contou-me a respeito das desavenças entre ambos, causadas pelo comportamento glutão de Urutura e de sua mãe, sogra de Yaraware, que sistematicamente comiam toda comida que ele levava para casa, antes mesmo que ele pudesse servir-se. Insatisfeito com o comportamento descomedido do espírito feminino de Urutura e de sua sogra, Yaraware queria controlar as manifestações nefastas deste espírito, e desenvolver as qualidades do espírito masculino em todas as suas criaturas, fossem elas homens ou mulheres. Para tanto, usando a mesma linguagem de Kuyuri concebeu seus presentes e seus anti-presentes.
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Transformado em lagarto, ërukë, Yaraware, passou a representar uma eterna ameaça para as manifestações do espírito feminino, que deve ser cuidado e cuidar-se para não ser atacado. Tornando-se o tamütupë dos lagartos, os fez apreciadores do cheiro do sangue humano, ao mesmo tempo em que indigestos aos humanos. Com sua capacidade de metamorfosear-se, Yaraware-lagarto deu morada a seus ipëri-lagartos no patamar subterrâneo, nonowae, de onde saem de tempos em tempos, atrás dos 'presentes' que seu tamu coloca ao seu dispor. Para tanto, possuem a capacidade de, metamorfoseando-se, atacarem suas vítimas por todos os lugares possíveis onde elas possam encontrar-se. É então, sendo tamu dos lagartos, que Yaraware encontra como ser um 'anti-tamu' dos humanos, ou seja como 'não levar o sangue adiante' daquelas criaturas que considera pëera e que, como tal, proliferando-se, ameaçam a sua humanidade.
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Assim, na floresta, toma forma de anta (tëhpaime), nas proximidades das moradias dos humanos transforma-se em gente (ehkui), com aparência de homem sedutor, ou de mulher sedutora, se a vítima for masculina; e, nos rios, toma forma de peixe (amahta).
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Antes, porém, desta transformação e de sua ida para o céu, usando a parte interna do waruma, denominada wakuru, Yaraware deu corpo à mandioca wüi, tubérculo concebido como o alimento por exelência de quem é wütoto e, portanto, de quem é humano.
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Neste sentido, se as visitas dos lagartos aos humanos constituem-se em seu 'anti-presente', ekëriyatühpë, às manifestações impróprias do espírito feminino, a cassava e o conhecimento de seu cultivo constitui-se no 'presente', ekaramahpë, que concedeu às suas criaturas terrestres para que elas pudessem viver como seus pëeto, ou seja, 'como seus braços capazes e bonitos', e para que pudessem continuar seu espírito na terra.
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Depois que foi para o céu, Yaraware passou a eleger, dentre os tamu de cada uma das ramificações de seu espírito continuado na terra, aqueles a quem se denomina püi'yai, que são os pajés, concebidos tendo 'espíritos auxilires', a quem ensinou a 'magia das roças'. Magia esta que envolve o conhecimento dos cantos mágicos ëremi, que são concebidos com um fio vital que sai da voz, omi, de quem o pronuncia e que se conecta amplamente aos seus destinos, conforme o conteúdo e o vigor com que é pronunciado. Envolve também as danças watü, por meio das quais deve-se, literalmente, 'fazer corda' com as 'mãos amarradas em corda', ëinyawa, em torno das plantações para que o 'fio vital', contido nos cantos entoados pelos cantadores entre dentro delas.
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Este aprendizado envolve, ainda, o manuseio pelo püi'yai das pedras kuri, consideradas pedras doadoras de fertilidade, que são enterradas no meio da roça, normalmente numa pequena elevação, onde se cruzam seus principais caminhos. Estas pedras são colocadas aos pares, uma masculina, outra feminina, com certa distância, uma da outra. E é durante este enterramento que se deve dançar e recitar os cantos cerimoniais.
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Deste empenho em 'fazer o espírito continuar' que caracteriza o espírito masculino, faz parte o controle das manifestações contrárias, concebidas como próprias do espírito feminino, reveladas em homens e mulheres, nas tantas condutas impróprias que são potencialmente capazes de cometer e, no caso específico das mulheres, na fragilidade da forma corpórea feminina que, ciclicamente, deixa 'vazar' o sangue menstrual. Neste sentido, a ameaça dos anti-presentes personificados nos lagartos e em suas metamorfosesé compreendida como uma forma encontrada por Yaraware de conduzir o espírito humano a este controle.
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Daí que as potências humanas que ali foram introduzidas por Yaraware precisem ser ativadas através dos processamentos que devem torná-la própria para o consumo, pois compreende-se que consumi-la pura ipoinna, seria como consumir-se a si mesmo, num processo de autofagia e de auto-evenenamento. Como alimento cotidiano, em forma de caldo de caldo fervido, tukupi, de bebida com baixo teor de fermentação, sakura, e em forma de beiju, uru, concebe-se que os derivados da mandioca contêm em si o 'espírito que dá vida e sabedoria', kapühpë, a quem o consome. Espírito este que reside no céu, kaputao, e que desce à terra em forma de chuva, que é enviada na época em que Yaraware, concebido como o 'dono da mandioca', wüi entu, aparece no céu em forma de estrela (Orion), no início de dezembro, para anunciar o início das chuvas que irão expandir as raízes da mandiocas cultivadas nas roças tiriyó. (...)

Fonte do texto: Artigo de Denise Fajardo Grupioni (fajardo@usp.br), antropóloga, doutora em Antropologia Social pela FFLCH-USP, publicado em Maio de 2005 no site Sócio-Ambiental.

17 de outubro de 2007

Prêmio Culturas Indígenas 2007

Dança Tapuia, pintura de Albert Eckhout (cerca de 1640)

Abertas as inscrições para o PRÊMIO CULTURAS INDÍGENAS 2007 – Edição Xicão Xukuru:

O Prêmio Culturas Indígenas foi criado pelo Ministério da Cultura, em parceria com a Associação Guarani Tenonde Porã, a partir de indicação do Grupo de Trabalho para as Culturas Indígenas. O reconhecimento e o fortalecimento das expressões culturais e da identidade dos povos indígenas é o principal objetivo deste Prêmio.
Poderão ser inscritas iniciativas indígenas de valorização cultural que já foram realizadas ou parcialmente concluídas e também novas iniciativas pensadas e aprovadas pela comunidade que necessitem de recursos para serem executadas.

Quem pode se inscrever?
Todas as comunidades indígenas no Brasil, representadas por uma liderança escolhida pela comunidade, ou por uma organização indígena que represente a comunidade.
Não serão aceitas iniciativas individuais, mas apenas iniciativas de caráter comunitário. Cada comunidade pode inscrever quantas iniciativas quiser, mas apenas uma delas poderá ser premiada.

Premiação
Serão concedidos 100 prêmios no valor de R$ 24.000,00, atendendo a diversidade étnica e regional dos povos indígenas do Brasil.

Como fazer a inscrição?
O manual de orientações e o formulário de inscrição estão disponíveis no site www.premioculturasindigenas.org.
A inscrição é feita através dos Correios e o formulário de inscrição pode ser respondido oralmente, à mão por escrito, digitado em computador ou pela internet.
O prazo de inscrições é de 10 de outubro de 2007 a 07 de janeiro de 2007.
Para tirar dúvidas ou obter outras informações entrar em contato com a equipe do Prêmio Culturas Indígenas através do telefone 0800 774 02 40

Consulte também o site:
www.premioculturasindigenas.org
ou envie e-mail para: 2007@premioculturasindígenas.org

Direitos internacionais

Bruce “Dois Cães” Bozsum, cacique Mohegan, entrega um cachimbo da paz esculpido à mão para a Rainha Elizabeth II, na cerimônia na Catedral de Southwark (foto: Kelvin Gane)

Os Mohegans são uma tribo ameríndia atualmente baseada no estado norte-americano de Connecticut, cujo líder ou “sachem,” Mahomet Weyonomon, viajou a Londres em 1735 para pedir ao Rei King George II para suspender a invasão dos colonos ingleses na sua área tribal. Desgraçadamente, Mahomet morreu de varíola em Londres em 1736 sem ter podido apresentar sua petição ao Rei. Por ser um estrangeiro, ele não teve permissão de ser sepultado em qualquer dos cemitérios da Cidade de Londres, então foi foi enterrado em uma sepultura anônima no jardim da Catedral de Southwark. Em novembro de 2006, uma cerimônia em Londres celebrou a vida de Mahomet, dedicando-lhe uma pedra memorial de granito rosa trazido das terras Mohegan em Connecticut, desenhada pelo escultor Peter Randall-Paige. A cerimônia incluiu danças rituais pelos Mohegans que entregaram à Rainha Elizabeth uma cópia da petição original de Mahomet.

Entretanto, a recente aprovação da Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas na ONU teve voto contrário dos países chamados "wasp" (white, anglo-saxon and protestant: branco, anglo-saxão e protestante): Estados Unidos, Canadá, Austrália, Nova Zelândia e Reino Unido. Por fim vitoriosas, delegações de uma dezena de países americanos festejaram no 11 de outubro de 2007, nas imponentes ruínas pré-colombianas de Tiwanacu, em um planalto boliviano, O presidente boliviano Evo Morales e a guatemalteca prêmio Nobel da Paz Rigoberta Menchú lideraram a celebração, durante a qual os índios apresentaram oferendas de agradecimentos ao sol e à Pachamama (mãe terra), considerados deuses das tradições andinas. A visita a Tiwanacu, a 70 km a oeste de La Paz, aconteceu no segundo dos três dias de celebrações organizadas pelo governo de Morales, que quer converter em lei a declaração a favor dos indígenas aprovada no mês passado pelas Nações Unidas. "Este é o início da verdadeira luta dos povos indígenas", disse Menchú, ao homenagear os líderes que lutaram no passado pelo reconhecimento aos direitos dos habitantes originais da América.

A respeito, podemos ler no recente artigo de Adriano Moreira, "Os Direitos dos Indígenas":

"(...) Mantém-se como referência incontornável do drama desses indígenas a história da extinção, praticamente total, dos peles-vermelhas que ocupavam o território dos actuais Estados Unidos da América. A mensagem que os iroqueses enviaram ao Congresso, e de que Tocqueville deixou registo inapagável, diz o seguinte: "Pela vontade do nosso Pai Celeste que governa o Universo, a raça dos índios da América tornou-se pequena; a raça branca tornou-se grande e famosa. Quando os vossos antepassados chegaram às nossas margens, o homem vermelho era forte e, ainda que ignorante e selvagem, recebeu-os com bondade e permitiu-lhes repousar os seus pés entorpecidos sobre a terra firme... o índio era então o senhor, e o homem branco o suplicante. Hoje, tudo mudou: a força do homem vermelho tornou-se fraqueza... as tribos do Norte, tão faladas outrora entre nós pelo seu poderio, quase já desapareceram. Tal foi o destino do homem vermelho da América. Eis-nos aqui os últimos da nossa raça: é-nos também necessário desaparecer?" (...) A resposta não diz apenas respeito aos iroqueses, porque a sua voz assumira o lamento dos indígenas de todo o continente, e dos que se encontram na mesma ameaçadora contingência em todas as latitudes: a resposta assume que "povos indígenas sofreram injustiças históricas como resultado, inter alia, da colonização com expropriação das suas terras, territórios e recursos, impedindo-os assim de exercer, em particular, o seu direito ao desenvolvimento de acordo com as suas necessidades e interesses". Finalmente temos uma resposta à petição dos iroqueses, prometendo aos sobrantes que não terão necessidade de morrer, que cada indígena terá direito à nacionalidade, que cada grupo terá o direito de viver em liberdade, paz e segurança, um processo que apela a muitas dezenas de soberanias. É impossível deixar de sublinhar que entre os poucos países que recusaram o voto à declaração está o destinatário da petição dos iroqueses, do qual se espera o impulso construtivo do arrependimento activo, e o exemplo que tranquilize a inquietação das soberanias mais jovens sobre a integridade das fronteiras. Não se trata de separatismos, trata-se de integração."

Representação alegórica da "America" como deusa nativa

A esse respeito, os versos da poetisa ameríndia Joy Harjo-Creek vêm a calhar:

"Remember"

Remember the sky that you were born under know each of the star's stories.

Remember the sun's birth at dawn, that is the strongest point of time.

Remember sundown and the giving away to night.

Remember your birth, how your mother struggled to give you form and breath. You are evidence of her life, and her mother's, and hers.

Remember your father, his hands cradling your mother's flesh, and maybe her heart, too and maybe not.

He is your life, also.

Remember the earth whose skin you are. Red earth, yellow earth, white earth, brown earth, black earth, we are earth.

Remember the plants, trees, animal life who all have their tribes, ,their families, their histories, too.

Talk to them, listen to them.
They are live poems.

Remember the wind. Remember her voice. She knows the origin of this universe.

Remember that you are all people and that all people are you.

Remember you are this universe and that this universe is you.

Remember all is in motion, is growing, is you.

Remember language comes from this.

Remember the dance that language is, that life is.

Remember to remember.

Rigoberta Menchú e Evo Morales em La Paz

Leiam também: Jamestown: Commemorating 400 years of English Genocide & Colonization

16 de outubro de 2007

O caminho das estrelas


Decorreram quase 500 anos desde a invasão espanhola e o Qosqo (nome quíchua da cidade de Cusco), cérebro e coração do poderoso Tawantinsuyu, ainda guarda fragmentos valiosos do conhecimento astronômico que desenvolveu de maneira original e autônoma, com um nível poucas vezes alcançado por outros povos, e que não pode ser totalmente extirpado pelo poder colonial em seus mais de 300 anos de cruel e férreo domínio.

Uma cosmovisão que integrava a natureza com a humanidade, o trabalho com o serviço, a fraternidade com a vida, marcaram a diferença e estabeleceram a pauta para considerar o Hanan Pacha (o céu ou espaço sideral) como o reflexo de sua vida cotidiana e nele a visão-deificação dos seres de seu entorno. Por essa causa construíram templos e adoratórios (wakas) para seus deuses do céu: Inti, Killa, Ch’aska, K’uichi, Illapa, etc. e olharam as estrelas e as manchas escuras da Via Láctea ou Mayu (rio) celestial para neles identificar a suas divindades protetoras que lhes dariam o amparo e a segurança para seus animais e cultivos diante das constantes ameaças da dura climatologia andina. As Lhamas celestiais, o Lluthu (perdiz), o Hamp’atu (sapo), o Mach’aqway (serpiente), o Atoq (zorro), o Kuntur,etc. que podem, atualmente, observar-se neste cenário, dão testemunho disso.

Constelações como a Qollqa (As Plêiades) e as estrelas mais brilhantes como Willka Wara (Sirio), Choqechinchay (Antares), etc.; o conhecimento dos solstícios e equinócios, agregados à observação sistemática do Sol e da Lua mediante o uso de sukanqas e saywas (pilares e colunas) propiciaram as ferramentas necessárias para obter um calendáio perfeito que garantisse um conhecimento sistemático dos ciclos agrícola e pecuário, o ritual religioso, e assegurar deste modo o bem-estar do povo.

A arquitetura e o desenvolvimento urbano não foram alheios a esta disciplina. Sabemos que a distribuição geográfica de seu acidentado território e o desenho de suas cidades seguiram um ordenamento astronômico baseado em eixos intercardeais perfeitamente sincronizados com posições astrais e da Via Láctea.

A direcionalidade dos K’ijllus (ruas), dos Ceques (linhas) assim como do Hatun Ñan e outros caminhos principais seguiram também uma ordem astral estabelecida.

Somos herdeiros de uma maravilhosa herança astronômica e o resgate deste admirável patrimônio cultural vivo, é tarefa permanente do PLANETARIUM CUSCO.

Sabemos que o que fica no conhecimento popular como mitos e lendas, e em alguns casos como observações fragmentadas, são somente pedaços que restaram disseminados em muitos lugares dos Andes e aos quais se deve seguir recopilando e pesquisando para recompor aquele grande conhecimento que lhe serviu de poderoso suporte ao desenvolvimento de uma das culturas mais importantes do planeta: A Cultura INKA.

Leiam também: Qhapaq Nhan - A Rota da Sabedoria, de Javier Lajo.