30 de maio de 2008

A cidadania Kayapó

foto: Sue Cunninghan

Antigamente os Kayapó eram considerados uma tribo muito belicosa e agressiva morando no sul do Pará e norte de Mato Grosso, vagueando por um território vasto desde a margem leste do Xingu até o Tapajós. A parte oriental da tribo foi pacificada por volta de 1940, e a parte ocidental na década de 50, pelos irmãos Villas Boas. Eles guerreavam com tribos vizinhas como Karajá, Juruna, Xavante, Tapirapé, Kreen-Akorore e outras, como também ribeirinhos, seringueiros e outros no local. Eles matavam, tocavam fogo nas aldeias e vilarejos, roubavam e sequestravam. Alguns dos cativos ainda hoje estão vivos, integrados na sociedade Kayapó, casados com filhos e netos.

Além de guerrear com os não-Kayapó, eles também praticavam guerra interna, com aldeias diferentes atacando e se matando umas as outras. Hoje em dia não tem mais guerra interna, nem guerra contra outras tribos, porém eles insistem em sua natureza belicosa, pois atacam aqueles que invadem suas terras.

Takakire, chefe de posto da Funai na aldeia Pykany, às margens do rio Iriri, relatou a Haroldo Castro em 2006 que teve que passar, como guerreiro Kayapó, pela prova ritual de “bater em casa de maribondo”. “Para ser um líder, tem que ser calmo, ser honesto e ser um homem de palavra. Nossa força é manter nossa tradição, nosso conhecimento. Sangue Kayapó é puro, como se fosse um rio só”.

Nimuendaju conta:

"No começo só existia o Kayapó Katembári com sua mulher, oito filhos e outras tantas filhas. Irmãos e irmãs casavam entre si, mas não tinham filhos, e por isso seu número nunca aumentava. Vagavam pelo mundo fazendo guerra a todas as tribos que descobriam, tomando-lhes os enfeites e adotando, com estes, as festas e as cerimônias dos vencidos. Aborrecia-os, porém, serem tão poucos, e por isso pediram ao velho Katembári que criasse mais Kayapó. "Sim", respondeu este, "vou faze-lo, pois também eu estou enfadado de estar só!" Saiu só para o campo alto, onde procurou uma sucupira (Bowdichia sp.), da qual cortou os galhos. Num vaso feito de uma folha, trouxe água e com ela fez sua magia. Depois meteu um aspersório de penas de urubu-rei na água mágica, trepou com ele no topo da árvore e, gritando alto, aspergiu para todos os lados. Depois desceu e deitou ao redor da árvore, no chão, num círculo largo, folhas de caeté, sempre uma em cada lugar onde havia de ter uma choça. Feito isto, tornou a casa e disse aos filhos: "Amanhã já teremos muitos companheiros!" Esta notícia alegrou-os muito, e quando na manhã seguinte foram ao lugar onde Katembári tinha feito a sua magia, já ouviam de longe as vozes das crianças e das mulheres. Ao redor do pé de sucupira tinha surgido durante a noite uma grande aldeia de Kayapó."

O projeto da usina hidrelétrica Belo Monte no rio Xingu, reencarnação do projeto Kararaô derrubado em 1989, deveria ser definitivamente arquivado. Segundo Haroldo Castro na reportagem citada, brigar com os Kayapó é um grande equívoco, pior do que mexer em ninho de maribondo. Principalmente agora que esses guerreiros estão, mais que nunca, unidos e preparados para defender seus direitos.

Confiram o resultado do último encontro no Pará:
CARTA XINGU VIVO PARA SEMPRE

Nós, representantes das populações indígenas, ribeirinhas, extrativistas, dos agricultores e agricultoras familiares, dos moradores e moradoras da cidade, dos movimentos sociais e das organizações não-governamentais da Bacia do rio Xingu, nos reunimos no encontro Xingu Vivo para Sempre, realizado na cidade de Altamira (PA), entre os dias 19 e 23 de maio de 2008, para discutir, avaliar e denunciar as ameaças ao rio que nos pertence e ao qual pertencemos nós e reafirmar o modelo de desenvolvimento que queremos.

Nós, que somos os ancestrais habitantes da Bacia do Xingu, que navegamos seu curso e seus afluentes para nos encontrarmos; que tiramos dele os peixes que nos alimentam; que dependemos da pureza de suas águas para beber sem temer doenças; que dependemos do regime de cheias e secas para praticar nossa agricultura, colher os produtos da floresta e que reverenciamos e celebramos sua beleza e generosidade a cada dia que nasce; nós temos nossa cultura, nossa espiritualidade e nossa sobrevivência profundamente enraizadas e dependentes de sua existência.

Nós, que mantivemos protegidas as florestas e seus recursos naturais em nossos territórios, em meio à destruição que tem sangrado a Amazônia, nos sentimos afrontados em nossa dignidade e desrespeitados em nossos direitos fundamentais com a projeção, por parte do Estado Brasileiro e de grupos privados, da construção de barragens no Xingu e em seus afluentes, a exemplo da hidrelétrica de Belo Monte. Em nenhum momento nos perguntaram o que queríamos para o nosso futuro. Em nenhum momento nos ouviram sobre a construção de hidrelétricas. Nem mesmo os povos indígenas, que têm esse direito garantido em lei, foram consultados,. Mesmo assim, Belo Monte vem sendo apresentada pelo governo como fato consumado, embora sua viabilidade seja questionada.

Estamos cientes de que interromper o Xingu em sua Volta Grande causará enchentes permanentes acima da usina, deslocando milhares de famílias ribeirinhas e moradores e moradoras da cidade de Altamira, afetando a agricultura, o extrativismo e a biodiversidade, e encobrindo nossas praias. Por outro lado, o barramento praticamente secará mais de 100 quilômetros de rio, o que impossibilitará a navegação, a pesca e o uso da água por muitas comunidades, incluindo aí várias terras e comunidades indígenas.

Também estamos preocupados com a construção de Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) nos rios formadores do Xingu. Algumas já foram construídas, outras já estão autorizadas e até hoje não houve qualquer tipo de avaliação dos impactos que esse conjunto de obras causará aos 14 povos indígenas do Parque Indígena do Xingu. Essas barragens profanam seus sítios sagrados e podem acabar com os peixes dos quais se alimentam.

Assim, nós, cidadãos e cidadãs brasileiras, vimos a público comunicar à sociedade e às autoridades públicas federais, estaduais e municipais a nossa decisão de fazer valer o nosso direito e o de nossos filhos e netos a viver com dignidade, manter nossos lares e territórios, nossas culturas e formas de vida, honrando também nossos antepassados, que nos entregaram um ambiente equilibrado. Não admitiremos a construção de barragens no Xingu e seus afluentes, grandes ou pequenas, e continuaremos lutando contra o enraizamento de um modelo de desenvolvimento socialmente injusto e ambientalmente degradante, hoje representado pelo avanço da grilagem de terras públicas, pela instalação de madeireiras ilegais, pelo garimpo clandestino que mata nossos rios, pela ampliação das monoculturas e da pecuária extensiva que desmatam nossas florestas.

Nós, que conhecemos o rio em seus meandros, vimos apresentar à sociedade brasileira e exigir das autoridades públicas a implementação de nosso projeto de desenvolvimento para a região, que inclui:

A criação de um fórum de articulação dos povos da bacia que permita uma conversa permanente sobre o futuro do rio e que possa caminhar para a criação de um Comitê de Gestão de Bacia do Xingu;

A consolidação e proteção efetiva das Unidades de Conservação e Terras Indígenas bem como o ordenamento fundiário de todas as terras públicas da região da Bacia do Xingu.

A imediata criação da Reserva Extrativista do Médio Xingu.

A imediata demarcação da TI Cachoeira Seca, com o assentamento digno dos ocupantes não indígenas, bem como a retiradas dos invasores da TI Parakanã.

A implementação de medidas que efetivamente acabem com o desmatamento, com a retirada de madeira ilegal e com a grilagem de terras.

O incremento de políticas públicas que incentivem o extrativismo e a consolidação da agricultura familiar feita em bases agroecológicas e que valorizem e estimulem a comercialização dos produtos da floresta.

Efetivação de políticas públicas capazes de promover a melhoria e instalação de sistemas de tratamento de água e esgoto nos municípios.

O incremento de políticas públicas que atendam as demandas de saúde, educação, transporte, segurança, adequadas às nossas realidades.

Desenvolvimento de políticas públicas que ampliem e democratizem os meios de comunicação social.

O incremento de políticas públicas para a ampliação das experiências de recuperação de matas ciliares e de áreas degradadas pela agropecuária, extração de madeira e mineração.

Que nenhum outro dos formadores do Xingu venha a ser barrado, como já aconteceu ao rio Culuene com a implantação da PCH Paranatinga II.

Proteção efetiva do grande corredor de sóciobiodiversidade formado pelas terras indígenas e unidades de conservação do Xingu.

Nós, os que zelamos pelo nosso rio Xingu, não aceitamos a invisibilidade que nos querem impor e o tratamento desdenhoso que o poder público tem nos dispensado. Nos apresentamos ao País com a dignidade que temos, com o conhecimento que herdamos, com os ensinamentos que podemos transmitir e o respeito que exigimos.

Esse é o nosso desejo, essa é a nossa luta. Queremos o Xingu vivo para sempre.

Altamira, 23 de maio de 2008.

Assinam: Kayapó da Aldeia Kriny, Kayapó do Bacajá Xikrin, Kayapó de Las Casas, Kaiapó de Gorotire, Kayapó Kubenkrãkênh, Kayapó Moikarakó, Kayapõ Pykarãrãkre, Kayapó Kendjâm, Kayapó Kubenkàkre, Kayapó Kararaô, Kayapó Purure, Kayapó Tepore, Kayapó Nhàkin, Kayapo Bandjunkôre, Kayapó Krânhãpari, Kayapó Kawatire, Kayapó Kapot, Kayapó Metyktire, Kayapó Piaraçu, Kayapó Mekrãnoti, Kayapó Pykany, Kayapó da Aldeia Aukre, Kayapó da Aldeia Kokraimoro, Kayapo Bau, Kayapó Kikretum, Kayapó Kôkôkuêdja, Mrotidjam Xikrin, Potikrô Xikrin, Djudjekô Xikrin, Cateté Xikrin, Ôodja Xikrin, Parakanã da aldeia Apyterewa e Xingu, Akrãtikatejê, Parkatejê, Munduruku, Araweté, Kuruwaia, Xipaia, Asurini, Arara da aldeia Laranjal e Cachoeira Seca, Arara do Maia da terra Alta, Panará, Juruna do Km 17,Tembé, Kayabi, Yudja, Kuikuro, Nafukua, Kamaiurá, Kalapalo, Waurá, Trumai, Xavante, Ikpeng, Apinayé, Krahô, Associação das Mulheres Agricultoras do Assurini, Associação de Mulheres Agricultoras do Setor Gonzaga, Associação dos Moradores do Médio Xingu, Associação dos Moradores da Resex do Iriri ,Associação dos Moradores da Resex Riozinho do Anfrisio, AFP- Associação Floresta Protegida do povo Kayapó, Associação Indígena Kisedje - povo Kisedje (Parque Indígena Xingu), Associação Pró-Moradia do Parque Ipê, Associação Pró-Moradia do São Domingos, Associação Yakiô Panará - Povo Panará, Associação Yarikayu - povo Yudja (Parque Indígena Xingu), Articulação de Mulheres Paraenses, Articulação de Mulheres Brasileiras, ATIX – Associação Terra Indígena Xingu (Parque Indígena Xingu), CJP- Comissão de Justiça e Paz, Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Prelazia do Xingu, CPT- Comissão Pastoral da Terra, FAOR – Fórum da Amazônia Oriental, Federação de Assistência Social e Educacional (FASE), FETAGRI- Federação dos Trabalhadores na Agricultura Regional Altamira, Fórum de Direitos Humanos Dorothy Stang (FDHDS), Fórum Popular de Altamira, Fundação Elza Marques, Fundação Tocaia, Fundo DEMA, Grupo de Mulheres do Bairro Esperança, Grupo de Trabalho Amazônico Regional Altamira (GTA), IPAM- Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia, Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), MAB- Movimento dos Atingidos por Barragem, STTR-Altamira, Pastoral da Juventude, S.O.S. Vida, Sindicato das Domésticas de Altamira, Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Pará – SINTEPP, Movimento de Mulheres Trabalhadoras de Altamira Campo e Cidade – MMTACC, Movimento de Mulheres do Campo e Cidade do Pará - MMCC, Movimento de Mulheres do Campo e Cidade Regional Transamazônica e Xingu, Fórum de Mulheres da Amazônia Paraense, SDDH- Sociedade Paraense dos Direitos Humanos, MNDH- Movimento Nacional dos Direitos Humanos, MMM- Movimento de Mulheres Maria Maria, SOS Corpo, Instituto Feminista para a Democracia, Instituto Socioambiental – ISA, Fundação Viver Produzir e Preservar (FVPP).

Apoio: Fundação Heinrich Boell, International Rivers, Rainforest Foundation, Rainforest Noruega

Leiam em pdf: "O Caso dos Kayapó", de Jorge António Filipe Ramos. Fonte: Cedefes e Abiape

26 de maio de 2008

Declaração dos Filhos da Terra

"Ancestros - Hijos de la Tierra", desenho do artista chileno Pescador (2007)


Declaração dos Filhos da Terra: "Europa tem uma dívida histórica com o Abya Yala"

"PROPOMOS as seguintes alternativas para implementar um efetivo processo de descolonialidade do Poder, do Saber e Sentir, como base fundamental de qualquer novo “Acordo de Associação” UE-CAN, ou seja entre os descendentes de colonizadores e colonizados, e para não passar da primeira à segunda arremetida sobre nossos territórios:

Não há Integração sem Descolonialidade do Poder, Saber e Sentir

Aos povos do mundo

Aos governos dos países andinos e latino-americanos

Aos governos da União Européia

À opinião pública internacional

REUNIDOS no Ayllu do irmão Taulichusco, em Lima, Peru, 1500 irmãs e irmãos das organizações dos Povos Quechua, Aymara, Kichwa, Lafquenche, Guambiano, Toba, Colla, Poccra, Ashaninka e demais Povos Originários do Abya Yala (América), durante a II Cúpula Nacional e Foro Internacional Indígena, para analisar o contexto nacional e internacional e as perspectivas em que acontece o chamado proceso para o “Acordo de Associação União Européia e Comunidade Andina de Nações” (AA UE-CAN).

REITERAMOS que no século XV as grandes civilizações do Tawantinsuyo, Mayas, Mapuches e outras do Abya Yala, foram cortadas violentamente em seu desenvolvimento histórico autônomo, pelos exércitos feudais de Castela, impondo o genocídio, etnocídio, fanatismo católico e destruição da mãe terra através da colonização e evangelização forçada. Essa dívida histórica, de destruição ambiental, social, cultural e até espiritual, segue pendente, não foi nem reconhecida nem reparada. Seis séculos depois, os descendentes de Castela, hoje a União Européia (UE), e os filhos da Terra do Abya Yala (hoje América) nos encontramos de novo. A atitude colonial nunca terminou de extinguir-se, já que resta ainda a ferida dos Povos Arawak submetidos como Colônia na Guiana Francesa, e através das negociações do AA UE – CAN se pretende voltar a reforçar essas velhas cadeias, sob o comando das Corporações Transnacionais e seus interesses em aprofundar seu enriquecimento através de seus negócios na mineração, petróleo, madereiras, agro-combustíveis, turismo, pesca, bioprospecção e até dos serviços públicos e financeiros.

AFIRMAMOS que o contexto destas negociações é o da gravíssima crise sócio-ambiental da humanidade, produto das enfermidades e contradições congênitas da “modernidade capitalista” que nos tem levado a humanidade ao limite. A ditadura global das transnacionais (privadas o u estatais) com o aval de seus estados centrais, impôs a mercantilização de toda forma de vida e o consumismo desenfreado e suas adicções energéticas, tanto de hidrocarburos e agora de agro-combustíveis, que produzem em forma combinada, o aquecimento global e agora a fome. O AA UE-CAN não assume plenamente esta tragédia e encobre a morte que estamos sujeitos seja por contaminação, depredação, falta de água ou de alimentos, hoje convertidos em combustíveis. Assistimos a uma crise civilizatória e falta muito pouco para chegar aos fatídicos dois graus centígrados de aquecimento global onde o suicídio planetário e humano será irreversível. E os primeiros afetados, como sempre, já estamos sendo nós filhos da Terra, já que nossas comunidades não poderão sobreviver se continua o derretimento dos glaciares, inundações, secas, friagens e alterações climáticas. Fracassou a razão ocidental de “exploração da natureza” e o mundo necessita aprender o que quiseram tirar-nos: que os humanos somos filhos da terra, que ela nos cria e nós a ela.

AFIRMAMOS que essa crise na natureza vem junto com a crise do Estado Uninacional, imposto como modelo para a humanidade, pela mesma soberba eurocêntrica, e que apenas mal funciona, nos países centrais das transnacionais, mas que fracassou no resto do planeta, e muito mais nas antigas colônias. As repúblicas do Abya Yala se formaram com Estados organizados de costas e em contra de suas sociedades, o qual continua e se tem agravado hoje. As constituições se fizeram sem participação dos povos indígenas originários nem afro-descendentes. Os Estados Uninacionais e Uniculturais e seus modelos dogmáticos e hierárquicos de economia, política e religiões, fracassaram porque desconhecem e se impõem à diversidade de povos, culturas, ecossistemas, saberes e espiritualidades do Abya Yala. Nossos Estados são cada vez menos “nacionais” e “democráticos” porque se submeteram às negociatas das corporações para sugar nossos recursos naturais e humanos, e diante de nossa resistência por defender à Pachamama e nossas comunidades, diante do fracasso de seus Partidos-Estado, impõem a criminalização de nossa defesa da Vida. “Ajam e depois pensem”, ordenou o Presidente Alan García à policía, depois das dezenas de mortos por fazer ações de protesto social, expressando a descomposição e autoritarismo em que terminou o sonho e se pôs o epitafio para a lápide da ilusão do Estado Uninacional. É a hora de nossas alternativas: Estados Plurinacionais e Bem Viver/ Viver Melhor, para incorporar e proteger a imensa diversidade natural, social e cultural em que habitamos, e o AA UE-CAN tampouco pode omitir-se desta encruzilhada e pretender negociar novas cadeias de opressão com governos, partidos e políticos, que fazem o contrário ao que se comprometeram ao ser eleitos e que estão incapacitados para oferecer garantias a qualquer compromisso sobre nossos territórios, florestas, montanhas, águas ou biodiversidade, salvo a custa de novos genocídios ou etnocídios.

PROPOMOS as seguintes alternativas para implementar um efetivo processo de descolonialidade do Poder, do Saber e Sentir, como base fundamental de qualquer novo “Acordo de Associação” UE-CAN, ou seja entre os descendentes de colonizadores e colonizados, e para não passar da primeira à segunda arremetida sobre nossos territórios :

• A UE reconheça e repare a dívida histórica, ambiental, social e cultural, deixada por seus antecessores, os senhores feudais de Castela e que hoje é agravada pelas corporações transnacionais.

• Construção de Estados Plurinacionais com base comunitária, ante o fracasso no Abya Yala dos estados Uninacionais privatizadores, depredadores e criminalizadores. Os direitos coletivos são a garantia para os direitos individuais e se é possível uni-los, assim como unir a democracia comunitária, com a participativa e representativa, e a Unidade na Diversidade. Reclamar igualdade quando a diferença inferioriza, e diversidade quando a “igualdade” invisibiliza.

• Construção de sistemas sociais do “Bem Viver/Viver Melhor” (Sumaq Kawsay em Quechua ou Sumaq Qamaña em Aymara) baseados na reciprocidade entre humanos e com a mãe terra, e não no suicídio planetário da mercantilização da vida.

• Respeito a nossa proteção milenar de Territórios e da Pachamama, detendo toda invasão extrativista (mineira, hidrocarburífera, hidroelétrica, pesqueira, madereira, agrocombustíveis) que não tenha sido consultada aos filhos da terra através de nossas comunidades. Alto à catástrofe no Peru con mineradoras em cima da metade de 6000 comunidades andinas nas cabeceiras de bacias de água para a costa, e petroleiras em 70% da Amazônia e sobre mais de 1000 comunidades.

• Anulação das leis ou projetos de lei e projetos de suposta “cooperação” que pretendem parcelar, individualizar, privatizar, “reflorestar”, nossos territórios comunais, com apoio do Banco Mundial e Banco Interamericano de Desenvolvimento e Banco Europeu de Investimentos (através do IIRSA) porque essa mercantilização da Vida é a que está levando ao suicídio a humanidade.

• Aplicação da Declaração da ONU e Convênio 169-OIT sobre Direitos dos Povos Indígenas Originários, para respeitar nosso Direito Maior (diferente do eurocêntrico direito positivo) e nossos direitos coletivos (Território, Consulta, Politicas Interculturais) e nossa identidade como Povos (pré-existentes aos atuais Estados) como nossa capacidade de basear-nos em nossas raízes e irmandade com a mãe terra, para poder interatuar em forma autônoma e crítica com as sociedades do mundo. Não há interculturalidade possível sem Plurinacionalidade Comunitária, e muito menos se a educação bilingüe, segue marginal e depende das “decisões” de projetos do Banco Mundial ou similares. O Sistema de Saber reflete o sistema de Poder.

• Detenção do processo autoritário de criminalização e respostas para-militares de toda defesa de nossas comunidades, culturas e Pachamama, e que a UE comunitária não dê aval, encubra ou minimize aqui o que diz respeitar em seus países.

• Direitos humanos para nossos irmãos que foram expulsados de nossas terras pelo neoliberalismo excludente, e que para sobrevivir migraram a Europa, enriquecendo-a com seu trabalho e culturas. Não à xenofobia, racismo e discriminação laboral, social e cultural na Europa.

• Respeito ao patrimônio intelectual, natural e cultural de nossos povos, devolvendo Europa os produtos culturais que foram levados à força, e retirando de qualquer negociação o acesso a nossos recursos biogenéticos e conhecimentos tradicionais.

SOLICITAMOS que os Presidentes e delegados da UE, CAN e da América Latina (Abya Yala) praticando nos feitos a chamada “democracia participativa” recebam a uma delegação de nossos Povos e Comunidades Originários Indígenas para que lhes exponham nossas preocupações e propostas.

ANUNCIAMOS nossa declaratória de estado de alerta permanente e de mobilização em defesa dos direitos de nossos irmãos dos Povos Originários Indígenas de Bolívia e Equador e suas propostas de descolonialidade de seus Estados e de reorganizaçõnes constitucionais através de Estados Plurinacionais Comunitários e de sistemas sócio-econômicos do Bem Viver. Rechaçamos a violência racista dos oligarcas de Santa Cruz e Guayaquil e suas estratégias supostamente “regionalistas” depois que perderam o controle de governos nacionais, para manter seus privilégios como terratenentes ou testas-de-ferro de transnacionais extrativistas. Rechaçamos a violência racista na Bolívia como os que não aceitam ser governados por um Aymara, como o irmão Evo Morales, e covardemente espancam a vendedores ambulantes, só por serem Guarayos.

DEMANDAMOS respeito à Vida e à Paz nos Territórios Indígenas de Guatemala e Colômbia, por qualquer fonte de violência, venha de onde vier, e em especial a anulação do paramilitarismo apoiado pelo Estado colombiano; e igualmente, o cessar da resposta violenta do Estado chileno sobre o Povo Mapuche que defende seus bosques, águas e vidas, e que se respeitem seus direitos e dialoguem em vez de persegui-los e encarcerá-los. A UE não pode “negociar” sem deslindar claramente esses negócios da criminalização cotidiana.

CHAMAMOS às irmãs e irmãos dos povos originários indígenas do Abya Yala a mobilizar-nos para nos encontrarmos no Foro Social das Américas (Outubro de 2008 na Guatemala) e as Cúpulas Continentais no Chile (2009) de Mulheres Indígenas e depois dos Povos Indígenas do Abya Yala. Também, aprofundar nossas alianças com os movimentos originários da África, Ásia, Europa e Oceania, para desenvolver nossas propostas de Estados Plurinacionais Comunitários e Sistemas de Bem Viver, durante o Foro Social Mundial (Belém do Pará, Janeiro de 2009) em aliança com os movimentos de afro-descendentes (recordando o Amanlá, Poder ao Povo dos irmãos da África do Sul), o das mulheres, ambientalistas, sindicatos, jovens, artistas e outros do mundo, assim como com os lutadores pela renovação teórica, intelectual e acadêmica, que nos acompanharam neste encontro em Lima, como expressão do processo de descolonialidade do saber e conhecimento.

CONVOCAMOS a tirar lições dos processos de nossos irmãos da Bolívia e Equador, e a necessidade de construir novas formas de organização política autônoma de nossos Povos e Comunidades, baseadas em nossas raízes e princípios de Territorialidade, Comunidade, Identidade, Reciprocidade, e deixar de ser “degraus” para os apetites de poder venham de onde venham. Diante do desencanto e fracasso da “politicagem” criolla e eurocéntrica, é a hora da política dos filhos da terra do "Mandar Obedecendo" e de que a espiritualidade e a cultura se reencontrem com a política.

Por milhares de anos reproduzimos a Vida no mundo e hoje o capitalismo está a ponto de destrui-la.

Somos os filhos da Terra, aves de uma só asa, que necessitamos abraçar-nos para que o Condor e a Águia tornem a voar e a humanidade a sonhar e sobreviver.



Coordinadora Andina de Organizaciones Indígenas, CAOI

Confederación Nacional de Comunidades del Perú Afectadas por la Minería,

CONACAMI

Organización Nacional Indígena de Colombia, ONIC

Confederación de Pueblos de la Nacionalidad Kichwa del Ecuador, ECUARUNARI

Consejo Nacional de Ayllus y Markas del Qollasuyu, CONAMAQ

Organización Nacional de Pueblos Indígenas de Argentina,ONPIA

Identidad Lafquenche

Confederación Sindical Unica de Trabajadores Campesinos de Bolivia, CTUCSB

Confederación de Pueblos Indígenas del Oriente Boliviano, CIDOB

Confederación Campesina del Perú, CCP

Confederación Nacional Agraria, CNA

Unión de Comunidades Aymara, UNCA

Asociación Interétnica de Desarrollo de la Selva Peruana, AIDESEP

Asociación Nacional de Maestros en Educación Bilingüe del Perú, ANAMEBI

Coordinadora Nacional de Rondas Campesinas del Perú, CONARC

Coordinadoras Regionales de Comunidades Afectadas por la Minería, de

Ancash, Pasco, Huancavelica, Ayacucho, Arequipa, Tacna, Moquegua, Puno,

Apurímac, Piura

Convergencia Maya Waqib’kej de Guatemala

COPUCNA, Ayacucho

Escuela Dolores Ulcuango, Ecuador

Organización Shoshoni (Estados Unidos)

Comunidades de Sudáfrica

Comunidad Campesina de Segunda y Cajas

Comunidad Campesina de Yantla

Organización Indígena Chiquitana, OICH

Asociación Regional de Pueblos Indígenas de la Selva Central, ARPI SC

Organización Indígena de Roraima, Brasil

Com a participação solidária de:

Immanuel Wallerstein (Univ. Yale), Boaventura de Souza (Univ. Coimbra), Anibal Quijano (Univ.Binghamton), Rodrigo Montoya (Univ.San Marcos), Edgardo Lander (Universidad de Caracas), Sylvia Marcos (Univ.Morelos), María Lugones (Univ. Buenos Aires), Puente entre Culturas (Holanda), CEADES (Bolivia), Cándido Grabowski y Moema Miranda (IBASE, Brasil), Magdalena León (Foro Social de las Américas), Rafaella Bollini (ARCI, Italia), Giampero de Marzo (ASud,Ecología y Cooperación, Italia), Conselho Indigenista Misionero del Brasil, CIMI e outros

"A Terra é para quem a trabalha, cultiva e cuida", de Pescador.

Fonte: Biodiversidad en América Latina

25 de maio de 2008

Os Ashaninka e o MRTA

© David Hill / Survival

As comunidades ashaninkas peruanas alertaram às altas autoridades do país sobre a presença do Movimiento Revolucionario Túpac Amaru (MRTA) na zona de Chanchamayo e o Vale do Ene.

"Até agora esperamos a indenização de nossos descensos e a recuperação de nossas armas estragadas. Estamos dispostos a combater a essas formigas terroristas que se encontram no meio da selva", declarou o dirigente nativo Santiago Condoricon durante uma cerimônia de reconhecimento ao Quartel Geral do Exército.

Na tarde do dia 19 último a etnia ashaninka foi à sede do Ministério Público para entregar pessoalmente a denúncia para a Fiscal da Nação, Gladys Echaíz, a fim de que as fiscalizações especializadas coletem a informação correspondente.

O ministro peruano de Defesa, Ántero Flores Aráoz, detalhou que a acusação será entregue ao embaixador do Peru na União Européia, Jorge Valdez, para sua difusão.

Melatti explica que, assim como Juan Santos Atahualpa no período colonial peruano, na segunda metade do século XX alguns movimentos revolucionários daquele país procuraram refúgio e apoio na selva amazônica. O trotkista Hugo Blanco atuou na zona selvática do departamento de Cusco entre 1958 e 1962. O Ejército de Liberación Nacional (ELN) foi surpreendido em 1963 na cidade de Puerto Maldonado. Por sua vez o Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR) desenvolveu luta guerrilheira nas terras dos ashaninkas (campas) em 1965, junto aos quais encontrou tanto colaboradores quanto adversários. Os ashaninkas voltam a ser envolvidos por movimentos revolucionários na década de Oitenta: o Movimiento Revolucionario Túpac Amaru (MRTA) e o Sendero Luminoso. Este último inicia na área suas ações armadas em 1982 e seu controle atinge o ápice em 1990 em todo o rio Ene e no alto Tambo. A adesão dos ashaninkas parece ser forçada, chegando a ficarem uns dez mil sob o controle do Sendero.

A partir de 1991 os ashaninkas organizam rondas ou comitês de auto-defesa contra os guerrilheiros, com o apoio do exército peruano. Em 1989 já tinha havido um levante dos ashaninkas contra o MRTA, por terem os membros deste movimento assassinado um importante líder indígena acusado de ter entregado ao exército um comandante guerrilheiro em 1965. O "exército ashaninka" organizado nesta ocasião dá por encerradas as suas atividades quando o exército peruano toma a base mais importante do MRTA na zona. No Gran Pajonal, já em 1988 havia um "exército ashaninka" que impediu a penetração do Sendero.

Os povos Ashaninka do Brasil e do Peru realizaram em fevereiro de 2008, na aldeia Sawawo, localizada no departamento de Ucayali (Peru), na fronteira com o estado do Acre, o I Encontro de Povos Indígenas Fronteiriços do Brasil-Peru, cujos pontos acordados foram os seguintes:

1º - Dar prosseguimento aos canais de diálogo e intercâmbio de experiências aos povos indígenas e outros povos da floresta do Brasil e Peru;

2º - Colaborar na identificação e implementação de estratégias de aproveitamento produtivo sustentável dos territórios indígenas fronteiriços de maneira a garantir fontes de subsistência e de comercialização;

3º - Acompanhar no processo de manejo florestal com intercâmbio de conhecimento em ambas as partes de fronteira;

4º - Realizar ações de controle de maneira conjunta sobre as invasões de Terra Indígenas fronteiriços;

5º - Promover intercâmbio de produtos entre as comunidades indígenas de fronteira;

6º - Que às comunidades indígenas assentadas nas zonas fronteiriças fiquem restritamente guardados o respeito territorial e o espaço de ambas as partes e o uso dos recursos naturais;

7º - Fica sobre a responsabilidade das normas comunitárias de ambas as partes o controle e a autorização respectiva para o trato com os transeuntes indígenas e não indígenas;

8º - Ambos os lados se comprometem em socializar informação e identificação de índios isolados para garantir seus direitos;

9º - Concordamos que as coordenações responsáveis pelas decisões e acordos tomados pelas comunidades indígenas e as delegações presentes neste I Encontro de Povos Indígenas Fronteiriço do Brasil-Peru seja a UCIFP – União das Comunidades Indígenas Fronteiriças do Peru, pelo lado peruano e a APIWTXA - Associação Ashaninka do Rio Amônia e a OPIRJ – Organização dos povos indígena do rio Juruá, pelo lado brasileiro.

Em carta veiculada ano passado por Nicole Algranti, o líder indígena brasileiro Benki Ashaninka assim se pronunciava a respeito dos problemas atuais:

"Nossa terra está sendo destruída, queimada. Acontece por todos os lugares do Brasil. O ar está sendo tomado por fumaça, muitas pessoas ficando doentes. Ninguém está escutando a natureza gemendo. Vamos nos unir entre todas as nações para fortalecer a política de proteção ao meio ambiente. E também mostrar para o mundo o que está acontecendo. Quero dizer que eu estou muito triste de ver nosso povo sendo destruído dessa forma, desrespeitado pelos madeireiros que invadem nossas terras e fazendeiros que derrubam nossa floresta. Eu estive na linha de fronteira ontem e participei de uma reunião com as comunidades Sawawo e Novo Shawaya, no Peru, que estão sendo invadidas pelos madeireiros e traficantes, que estão se juntando para destruir as terras com retirada de madeiras. Eu encontrei nosso povo Ashaninka todo armado e partindo para guerra contra esses invasores. Tinha 100 guerreiros do exército Ashaninka armados e partindo para o confronto com estes invasores que estão em sua terra. Eu fiquei muito triste com esta cena: nosso povo se defendendo. Parece no passado, no tempo da escravidão. Cadê os nossos direitos formados para termos pelo menos um pedaço de terra para vivermos? Quero mandar uma carta para a COICA e os representantes desta América Latina, que estão nestes poderes para nos representar e cuidar de nós, indígenas. Quero também que esta carta chegue à Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, porque queremos nosso direito respeitado como humanos desta Terra, que estão com seu coração angustiado, sem saída, porque nossa vida está nesta floresta. Este é o nosso coração e o coração de nossa terra. Por este motivo estão enfrentado os invasores. Nós também vamos ajudar nosso parente, para não morrer sozinho, que também estamos sendo afetados e não temos para onde correr.Esta carta é de um guerreiro que defende o nosso povo e o nosso país. Ganhei o Prêmio de Direitos Humanos, mas não vou parar por aqui. Desculpe a minha letra, mas o sentido das palavras é o que importa para mim."

© UNICEF/HQ95-0722/Balaguer

Carichipari, uma prece a Deus


Comunidade Wounnan, de Union Balsalito, Chocó, Colômbia. O documentário discorre sobre o fascinante mundo do povo Wounnan. O ritual do Carichipari não se celebrava na comunidade há mais de dezessete anos. Produção: Telepacífico 2001. Direção: Alex Gómez

20 de maio de 2008

...ora direis ouvir estrelas...


"Os Guarani têm uma rosa-dos-ventos. Uma informação que li sobre a gênese guarani era de que no céu existiam palmeiras azuis representando os quatro deuses (os quatro pontos cardeais: norte, sul, leste, oeste) e suas quatro esposas (os pontos colaterais: nordeste, noroeste, sudeste, sudoeste) formando uma rosa-dos-ventos.
Os Guarani dizem que tudo o que existe no Céu existe também na Terra. Porque a Terra nada mais é do que um reflexo do Céu. Aí começamos a procurar algum vestígio concreto disso. Até que um dia no Paraná, em Itapejara D’Oeste, na beira do rio Chopim, encontramos essa rosa-dos-ventos! Encontramos um círculo de palmeiras. Colocamos o teodolito no meio do círculo e medimos as direções dessas palmeiras. O resultado é que deu exatamente os pontos cardeais e os pontos colaterais. Uma rosa dos ventos de palmeiras aqui na Terra!
Curioso notar que a palavra Itapejara não significa nada em guarani. No entanto, originalmente essa região se chamava Tapejara, que significa o Caminho do Senhor. E certamente uma rosa-dos-ventos é um excelente guia."

Fonte: Germano Bruno Afonso, em "A Nova Democracia"

2 de maio de 2008

Tucuxi, o boto

Pinturas de Marco Lenísio

O boto foi descoberto e estudado cientificamente por Rodrigues Ferreira, em fevereiro de 1790, e por Henry Walter Bates, um inglês que permaneceu onze anos pesquisando a flora e a fauna da região amazônica. O cetáceo é um mamífero completamente aquático, como a baleia e o golfinho, que habita os rios do Norte do Brasil. Ele possui uma cabeça grande, um bico dentado, um corpo afilado e quase desprovido de pêlos, grandes nadadeiras dianteiras (semelhantes à pá de um remo), duas mamas em posição posterior, uma cauda que finaliza em nadadeira larga e horizontal, e um sistema sonar sofisticado, localizado em uma saliência da cabeça, que emite ondas sonoras. Tais ondas o auxiliam a se orientar nas águas barrentas dos rios. O boto não possui membros posteriores e se apresenta em várias cores. Ao nascer, pesa cerca de sete quilos e, quando chega à idade adulta, pode atingir até cento e sessenta quilos.

Na Região Norte, existem várias lendas e superstições envolvendo o boto. Uma delas ressalta que ele é encantado: durante o dia, permanece nos rios, mas, ao anoitecer, transforma-se em um rapaz de pele branca, bonito, elegante, e educado como um cavalheiro. Ele sempre usa um chapéu branco (para esconder um orifício que tem no alto de sua cabeça e que serve para respirar), gosta de beber, freqüenta festas e bailes, é um exímio dançarino, e tenta conquistar as moças bonitas, preferindo aquelas que se vestem com roupas vermelhas.

Sem condições de resistir aos seus encantos, muitas jovens são levadas às margens dos igarapés e, com o belo cavalheiro, têm relações sexuais. Quando o dia amanhece, porém, o seu encanto termina: ele perde a forma humana e retorna aos rios. De acordo com a lenda, esse processo ocorre diariamente, e as jovens seduzidas logo engravidam. Sendo assim, atribui-se ao boto a culpa por defloramentos, adultérios, e nascimento de crianças cuja paternidade é desconhecida. Dizem logo: é filho do boto!

Segundo uma outra lenda, à noite, o animal se transforma em uma linda moça de cabelos longos, que sai para passear e tenta encaminhar os rapazes até os rios. Caso algum deles decida segui-la, não terá um destino promissor: com um grito de triunfo, a jovem encantada o agarrará pela cintura, e o afundará nos rios.

De acordo com as superstições correntes, moças virgens e/ou menstruadas não devem viajar de barco ou de canoa, porque serão perseguidas pelo boto: podem ser arrebatadas por ele, levadas para o fundo das águas e defloradas. Em caso de naufrágios, acredita-se que o boto socorre apenas as moças, deixando os rapazes à mercê da própria sorte. Por sua vez, dizem que é proibido matar esse animal: quem o fizer, tornar-se-á vítima de feitiço e infeliz.

Um aspecto particularmente interessante diz respeito à semelhança entre a genitália do boto e a dos seres humanos. É bem provável que, por tal razão, existam tantas lendas e superstições envolvendo esse animal e as pessoas. A pele e os órgãos sexuais do cetáceo, por exemplo, são considerados pela população do Norte como amuletos que atraem o amor. À pele do boto, cortados em pequenos pedaços, são adicionados breu branco, espinho de cuandu, espinho de curupira, catinga-de-mulata, mucura-caã, alecrim e pimenta malagueta. A mistura é colocada para secar e, a seguir, entregue a um pajé (ou curador) que a “prepara” com ervas aromáticas. Somente depois disso, o produto final é colocado à venda nos mercados públicos: o amuleto atrai a pessoa amada e dá, inclusive, boa sorte na caça e na pesca.

Os nortistas elaboram, também, um outro talismã com os órgãos sexuais do boto. Estes são torrados, reduzidos a pó, colocados em saquinhos de couro ou de pano, e vendidos como amuletos intransferíveis que, se forem manuseados por outra pessoa, perdem totalmente os seus poderes de atração. Muito valorizados, ainda, são os olhos do boto. Por outro lado, dizem que não se deve utilizar o óleo do cetáceo como combustível, em candeeiros: a pessoa que o fizer ficará cega.

Vários poetas, pintores, compositores e músicos já utilizaram o boto como objeto de inspiração. O paraense Valdemar Henrique, por exemplo, musicou uma poesia de Antônio Tavernard (poeta amazonense), e ela foi muito divulgada no País. Eis a letra da música:

"Tajapanema chorou no terreiro,
Tajapanema chorou no terreiro,
E a virgem morena fugiu pro costeiro.

Foi boto, sinhá,
Foi boto, sinhô,
Que veio tentar
E a moça levou.

Não tarda a dançar,
Aquele doutor,
Foi boto, sinhá,
Foi boto, sinhô.

Tajapanema chorou no terreiro,
Tajapanema chorou no terreiro,
Quem tem filha moça é bom vigiar.

Foi boto, sinhá,
Foi boto, sinhô,
Que veio tentar
E a moça levou.

O boto não dorme,
No fundo do rio,
Seu dom é enorme,
Quem quer que o viu,
Que diga, que informe,
Se lhe resistiu,
O boto não dorme,
No fundo do rio."

Os botos são mansos e, às vezes, proporcionam um belo espetáculo coreográfico, quando acompanham as embarcações, vindo à tona e mergulhando em seguida. No Sul do País, durante o inverno, eles são utilizados na pesca da tainha, quando os cardumes se deslocam em busca de águas calmas para desovar. De suas canoas, os pescadores batem na água e assustam as tainhas, que se espalham e nadam em busca de lugares mais rasos. Ao se mexerem no fundo dos rios, aqueles cetáceos turvam as águas e desorientam ainda mais os peixes. Nesse momento, das embarcações, as redes e as tarrafas são lançadas, voltando repletas de tainhas.

Finalmente, vale ressaltar que os professores da Região têm utilizado as lendas e superstições como motes, para proporcionar uma educação sexual aos seus alunos. Entre outros assuntos, são repassadas informações sobre gravidez precoce, doenças sexualmente transmissíveis, relações sexuais e saúde sexual. O boto representa uma das figuras mais relevantes da mitologia zoológica brasileira, tendo-se transformado, com o seu incrível poder de sedução, no próprio dom Juan do Norte do País.

Fonte: Semira Adler Vaisencher (Fundação Joaquim Nabuco)

1 de maio de 2008

Um Índio


Um índio

Um índio descerá de uma estrela colorida brilhante
De uma estrela que virá numa velocidade estonteante num claro instante
Depois de exterminada a última nação indígena
E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida
Mais avançado que a mais avançada das mais avançadas tecnologias
Virá
Impávido que nem Muhammad Ali
Virá que eu vi
Apaixonadamente como Peri
Virá que eu vi
Tranqüilo e infalível como Bruce Lee
Virá que eu vi
O aché do afoxé Filhos de Gandhi
Virá
Um índio preservado em pleno corpo físico
Em todo sólido todo gás e todo líquido
Em átomos palavras cor em gesto em cheiro em sombra em luz em som magnífico
Num ponto eqüidistante entre o Atlântico e o Pacífico
Do objeto sim resplandecente descerá o índio
E as coisas que eu sei que ele dirá não sei dizer assim de um modo explícito
Virá
Impávido que nem Muhammad Ali
Virá que eu vi
Apaixonadamente como Peri
Virá que eu vi
Tranqüilo e infalível como Bruce Lee
Virá que eu vi
O aché do afoxé Filhos de Gandhi
Virá
E aquilo que nesse momento se revelará aos povos
surpreenderá a todos não por exótico
Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto quando terá sido o óbvio.

(Caetano Veloso)

A aventura dos Doces Bárbaros começou em 1976 quando Maria Bethânia, Gilberto Gil, Gal Costa e Caetano Veloso, em comemoração a 10 anos de carreiras individuais de sucesso, formando um conjunto que se apresentaria nas principais cidades brasileiras. O filme de Tom Job Azulay lançado dois anos depois narra os shows e revela o processo criativo dos artistas através de bem humorados, mas exaustivos ensaios. Em 1978, a ditadura militar comandava (?) o Brasil com mão pesada, e a censura, com seus critérios esdrúxulos, agia em todos os meios de comunicação. Parece um passado distante.

"Era praxe ir a Brasília conversar com a censura quando se lançava um filme", diz o diretor de "Os Doces Bárbaros", Tom Job Azulay, 62, que registrou a turnê do grupo formado por Gal Costa, Maria Bethânia, Caetano Veloso e Gilberto Gil.

Segundo ele, foram cortados cerca de 10 minutos de filme (cerca de 10% do total). "Mas eu não cortei o original, só as cópias". Por isso o filme foi relançado com as cenas censuradas, que tratam da prisão de Gilberto Gil e do baterista Francisco Azevedo, o Chiquinho, por porte de maconha em Florianópolis em 1976.

Leia abaixo as frases que o governo militar julgou "impróprias" para menores de 14 anos. Com os cortes, a censura classificou o filme de "boa qualidade, livre para exportação".

# Gilberto Gil é entrevistado no quarto da clínica psiquiátrica após ser preso por porte de maconha em Florianópolis e diz: "... E por isso mesmo e por exatamente ver dessa forma, eu tenho a impressão que nada disso pode nos abalar muito, quer dizer, pode nos abalar além, digamos assim, das superfícies do corpo e da alma, porque no fundo mesmo, do espírito da gente, a gente tá forte."

# Gil: "A gente tá seguro, eu acho que o Chico (o baterista preso com Gil) também pode falar, né? eu acho que..."
Chico: "Eu tô bem seguro, fui muito bem tratado. A gente ficou muito junto da verdade e acho que isso ajudou muito a gente."
Gil: A gente tá aí, a gente não tem vergonha de nada, a gente não tem dúvida a respeito do que a gente é... A gente é isso, somos pessoas de hoje, século 20, 76, após-calispo, né?" (da letra de "Chuck Berry Fields Forever")

# Gil: "...A gente tá vivendo momentos em que se buscam uma descontração no mundo inteiro com relação a novos atos, a formação de novos padrões, de novos conceitos sobre atitude social, sobre comportamento particular, quer dizer, sobre privacidade, quer dizer, sobre respeito à vida privada das pessoas e tudo mais."

# Juiz lê as declarações de Gil para o escrivão durante o julgamento do cantor: "Abre aspas. Gostava de maconha e que seu uso não lhe fazia mal nem lhe levava a fazer o mal. Fecha aspas. Em juízo, Gilberto Gil declarou que o uso da maconha, abre aspas, o auxiliava sensivelmente na introspecção mística. Fecha aspas".

Fonte: UOL Cinema e Cogumelomoon

O trabalho do direito

Foto de Sebastião Salgado
No Brasil:

"Lei No. 9.394, de 20 de dezembro de 1996
Publicada no Diário Oficial da União, 23 dez. 1996
Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional

Artigo 78.
O Sistema de Ensino da União, com a colaboração das agências federais de fomento à cultura e de assistência aos índios, desenvolverá programas integrados de ensino e pesquisa, para oferta de educação escolar bilingüe e intercultural aos povos indígenas, com os seguintes objetivos:

I - proporcionar aos índios, suas comunidades e povos, a recuperação de suas memórias históricas; a reafirmação de suas identidades étnicas; a valorização de suas línguas e ciências;
II - garantir aos índios, suas comunidades e povos, o acesso às informações, conhecimentos técnicos e científicos da sociedade nacional e demais sociedades indígenas e não-índias.
Artigo 79.
A União apoiará técnica e financeiramente os sistemas de ensino no provimento da educação intercultural às comunidades indígenas, desenvolvendo programas integrados de ensino e pesquisa.
§ 1º. Os programas serão planejados com audiência das comunidades indígenas.
§ 2º. Os programas a que se refere este artigo, incluídos nos Planos Nacionais de Educação, terão os seguintes objetivos:

I - fortalecer as práticas sócio-culturais e a língua materna de cada comunidade indígena;
II - manter programas de formação de pessoal especializado, destinado à educação escolar nas comunidades indígenas;
III - desenvolver currículos e programas específicos, neles incluindo os conteúdos culturais correspondentes às respectivas comunidades;
IV - elaborar e publicar sistematicamente material didático específico e diferenciado."


Na prática:

A importância da inserção do trabalhador indígena no mercado do trabalho, uma das metas do Ministério Público do Trabalho, foi reforçada em 2005, após o anúncio da instalação de uma usina de álcool em Dourados (MS). À época, o Grupo Unialco anunciou que pretendia contratar mão-de-obra indígena local para os trabalhos de plantio, corte e tratos culturais de cana-de-açucar.

Em função disso, a Procuradoria Regional do Trabalho da 24ª Região e o Ofício de Dourados, juntamente com a Comissão Permanente de Investigação e Fiscalização das Condições de Trabalho em MS, Prefeitura de Dourados e a comunidade indígena, promoveram várias audiências públicas sobre o trabalho indígena urbano e rural, com o objetivo de estabelecer as diretrizes para contratação desses trabalhadores.

Em reunião realizada em Campo Grande, em fevereiro de 2006, a Unialco esclareceu que pretende contratar 250 trabalhadores, sendo apenas 50 índios. Fornecendo café-da-manhã, almoço e complemento alimentar (repositor energético), além de transporte, equipamentos de proteção individual (EPIs). Assumiu também o compromisso de respeitar a legislação trabalhista, previdenciária, de segurança e medicina do trabalho. Até agora, de acordo com a empresa, foram contratados 50 trabalhadores, mas a Usina tem a intenção de aumentar gradativamente esse número.

Atendendo determinação do MPT, a contratação dos trabalhadores indígenas será feita por contratos de equipe, pelo prazo máximo de 70 dias. Uma empresa de ônibus irá transportar os trabalhadores diariamente, sem ônus para os empregados.

Para o Procurador do Trabalho Eliaquim Queiroz, do Ofício de Dourados, a adoção dos contratos de equipe estabelecendo regras para a contratação de mão-de-obra indígena, além dos direitos trabalhistas, vai assegurar também a manutenção da vida social, costumes e tradições indígenas. E, conseqüentemente, a preservação da cultura das diversas etnias da Grande Dourados nos termos da Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

De acordo com o Termo de Compromisso firmado entre o MPT e os usineiros, o pagamento dos salários, nunca inferior ao piso da categoria, será feito em dinheiro, mediante recibo e discriminando-se todos os possíveis descontos. No entanto, Cícero Rufino Pereira, Procurador-Chefe da PRT24ª/MS, observou que "o compromisso ficou muito inferior ao que se divulgou em dezembro de 2005, quando o Grupo Unialco anunciou que pretendia contratar pelo menos 500 trabalhadores indígenas".

Fontes: Alcides Maya e Nota Dez.

A raposa e as uvas da Serra do Sol


INDIOS, ARROZEIROS, EUA E SOBERANIA

"Em carta aberta dirigida aos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), o Conselho Indigenista de Roraima (CIR) pediu a retirada de todos os não-índios da terra indígena Raposa Serra do Sol, de 1,7 milhão de hectares, em Roraima. A entidade também acusou o general Augusto Heleno, comandante militar da Amazônia, de racismo por afirmar que os índios colocam a soberania do país em risco, tendo sido publicada pelo jornal O Globo, 30-04-2008.
"A demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol não traz qualquer perigo à soberania nacional, pois conforme estabelece a Constituição federal, as terras indígenas são patrimônio da União e se destinam à posse permanente dos povos indígenas, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes", afirma o índio tuxaua Jacir José de Souza Macuxi, um dos signatários da carta.
Exibindo mapas da reserva, os líderes macuxis reunidos na sede do CIR criticaram o general Augusto Heleno por falar em fragilidade das Forças Armadas na região, onde a terra indígena Raposa Serra do Sol faz fronteira com a Venezuela e a Guiana.
Bem ao lado da terra indígena, o Exército mantém os pelotões de Normandia e Uiramutã. Então, como falar em fragilidade militar? — questionou Jacir de Souza Macuxi.
Comunidades dizem que os arrozeiros é que são os invasores. Falando em nome dos 18.992 indígenas que vivem nas 194 comunidades existentes dentro da reserva, os tuxauas macuxi, uapixana, taurepangue e ianomâmis deixam claro, em tom ameaçador, que o arrozeiro Paulo César Quartieiro, é considerado invasor de terra indígena e "nocivo e perigoso à nossa população, uma vez que o mesmo liderou atos terroristas em recente mobilização dentro de nossa terra".
Os tuxauas da Raposa Serra do Sol defendem que o decreto assinado pelo presidente Luiz Lula, em 15 de abril de 2005, homologando a terra indígena em Roraima seja mantido e que o STF, ao analisar as ações em tramitação, "respeite o que determina a Constituição do Brasil e não deixe dúvida que a terra Raposa Serra do Sol é de uso exclusivo dos povos indígenas".
O índio Júlio Souza Macuxi garantiu que não há qualquer possibilidade de os índios aceitarem uma revisão dos limites da terra indígena, liberando parte do território para os produtores de arroz, como prevê a proposta do líder do governo no Senado, Romero Jucá (PMDB-RR): Essa hipótese de aceitarmos redução da terra indígena está descartada.
Historicamente, a voz mais ouvida é a dos fazendeiros que tornam a imagem do índio como dificultador do avanço econômico de Roraima A própria Igreja, do século IXX até a década de 1970, era aliada dos fazendeiros, mas depois fez uma reflexão, a partir do Vaticano II e do Encontro de Medelín e Puebla, e percebeu que os oprimidos de Roraima eram os índios. De lá para cá, então, vem uma série de missionários italianos e portugueses com uma visão mais crítica. Eles são os responsáveis pelo processo de organização indígena aqui em Roraima.
A ditadura militar deixou inúmeros resquícios na política contemporânea A sociedade ainda está cheia de vícios do regime militar. Um exemplo disso é o que acontece em Raposa Serra do Sol, onde seis arrozeiros teimam em permanecer em terras homologadas e demarcadas como terras indígenas. Mas sua resistência é feita com coquetéis molotov, ameaças de uso de carros bomba, mentiras contadas ao povo e aos próprios índios da região, queimando pontes, criando barreiras, numa série de ações extremistas. "São somente seis arrozeiros que continuam resistindo, que não querem sair de Raposa Serra do Sol (...) esses arrozeiros têm que sair de lá, porque não fazem nada para nós", contou à Revista IHU o coordenador-geral do Conselho Indigenista de Roraima, o macuxi Dionito de Souza.
O tuxaua Moacildo da Silva Santos, equivalente a um cacique, da comunidade do Barro, localizada dentro da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, nas proximidades do distrito de Surumu, denunciou hoje à Polícia Federal atentados contra sua vida e contra a estrutura física da escola que atende os índios. A notícia é da Agência Brasil. Santos disse ter sido atingido por uma bomba caseira jogada na porta de sua casa por um motoqueiro. "A bomba me atingiu, desmaiei lá dentro e fui acordar já na nossa casa de apoio", afirmou o tuxaua, que teve ferimentos nos braços e pernas. Em entrevista à Agência Brasil, ele creditou o ataque a "pistoleiros do Paulo Quartiero, líder dos arrozeiros".
O líder indígena ressaltou que sua comunidade não trabalha com os arrozeiros, por preferir investir nas roças próprias: "Plantamos mandioca, jerimum, milho, melancia e feijão. Nós temos nossa comida e não precisamos de arrozeiro." E prometeu que se a Polícia Federal não retirar os arrozeiros da área, os índios irão para o combate: "Nós mesmos vamos fazer".
Sobre ataques que se iniciaram há alguns dias, disse que um deles teria atingido a Escola Padre José de Anchieta, onde as aulas foram interrompidas nesta semana. "A escola foi invadida, ocupada, teve portas arrombadas, conforme os depoentes, por moradores de Boa Vista liderados por Paulo César Quartiero e pelo deputado federal Márcio Junqueira [DEM-RR]. Cadeiras, armários e merenda escolar foram furtados".
Preocupante ainda é a presença militar dos EUA na região o que representa uma ameaça ao país. Segundo especialistas brasileiros, Washington estaria intentando reproduzir sua estratégia na Colômbia no resto da América do Sul, especialmente na Amazônia. "A presença militar dos EUA poderá se expandir a outros países sul-americanos para transformar a luta contra o narcotráfico numa empresa militar sul-americana, e não somente Colômbia-EUA. O plano seguramente faz parte de uma estratégia dos EUA para assegurar uma presença militar direta na região andino-amazônica e no Cone Sul, em torno do Brasil", alerta o informe.
Já em 1999, os EUA instalaram a base de Manta, no Equador, no ano seguinte assinaram o Plan Colombia e três anos depois o Plan Patriota, que permitiu aumentar a presença e a influência dos EUA no território colombiano. Em 2005, os EUA conseguiram a anistia para seus soldados no Paraguai, que durante um ano realizaram exercícios militares sem nenhum tipo de restrição. Atualmente há mais de 2000 estadounidenses – entre contratados e militares – na região.
Devemos levar em conta também que há setores militares, empresariais e políticos no Brasil que são pró-EUA e que partilham da idéia de um certo Plano Sul, iniciado em 1992, que resultou até agora na presença de 17 guarnições militares dos EUA - operacionais ou de informações - em países como Equador, Peru, Paraguai e Chile; em ilhas do Caribe, no
arquipélago das Falklands (com suporte da Grã-Bretanha) e, a partir de 2009, também na costa da África, em São Tomé e Príncipe. As localidades abrigam pessoal e centros de vigilância. O contingente, de prováveis 3 mil homens, é formado por soldados regulares e mercenários recrutados por prestadoras de serviços de segurança como a DynCorp e a Brook Inc.
O Departamento de Defesa, o Pentágono, gostaria muito de poder utilizar as bases aéreas de Boa Vista, Porto Velho e Manaus para apoiar as missões de vigilância no espaço da Amazônia. Atualmente os vôos americanos partem da base de Manta, no litoral do Equador. As instalações ficam a apenas 320 quilômetros da Colômbia. A base foi arrendada por US$ 70 milhões até 2009. O presidente socialista Rafael Correa disse, em novembro de 2007, que gostaria de negociar a saída dos militares dos EUA 'agora mesmo, antes do prazo'.
Os 400 homens e mulheres em Manta mantêm no ar de 3 a 5 jatos Boeing E-3 Sentinela, versões especializadas do modelo 707 de passageiros. Essas grandes aeronaves eletrônicas, com antenas rotativas montadas sobre a fuselagem, monitoram movimento de grupos na superfície, o tráfego de aviões utilizados por traficantes e grampeiam comunicações. A cada ano são cumpridas 1.600 missões implicando 10 mil horas no ar.
É um empreendimento complexo. Os vôos são controlados a partir de estações de radar de longo alcance montadas em Soto Cano, Honduras. Os E-3 voam protegidos por caças supersônicos F-16, do Grupo Aéreo 429, que decolam das unidades avançadas americanas montadas nas ilhas de Curaçau e Aruba, território holandês no Mar do Caribe.
Há ainda que considerar o caso da VALE que Desde que foi privatizada, em 1997, enfrenta problemas com comunidades indígenas da Amazônia, além de movimentar seus fornos para produção de ferro-gusa com carvão vegetal de 300 mil hectares de florestas derrubadas.
Assustador é a noticia de que estão em andamento vários projetos internacionais para recolher dos povos índios amostras de sangue (ou outros tecidos) e usar a informação genética. Este tipo de projeto vampiro não é um fenômeno novo. Tornou-se uma forma privilegiada de biopirataria e patenteamento de genes indígenas em muitas partes do mundo. Com as novas tecnologias disponíveis, as implicações destes projetos vão para muito além da biopirataria individual: estabelece formas de controle social - por meio da identidade genética - e de exploração comercial - por parte de empresas farmacêuticas e bioinformáticas - cada vez mais amplas e com conseqüências imprevistas para os povos índios e para a sociedade em geral.
Em escala internacional existem, entre outros, o Projeto Genográfico (da IBM e da National Geographic) e o Projeto HapMap (dos Estados Unidos e outros governos, juntamente com grandes transnacionais farmacêuticas e informáticas). No México destacam-se as atividades
coordenadas pelo Instituto Nacional de Medicina Genômica (Inmegen). Esses projetos não servem - nem servirão - em absolutamente nada para os povos indígenas, mas para os pesquisadores resultaram em publicações, créditos acadêmicos e bolsas, e às instituições a justificação para pedir a compensação de recursos públicos e, em ambos os casos, produzir informação que logo é capitalizada pela grandes empresas farmacêuticas. Em alguns casos, as amostras obtidas foram parar em "bancos genéticos" internacionais e até hoje se podem comprar pela Internet, como por exemplo no Instituto Conell dos Institutos de Saúde dos Estados Unidos, há cópias de material genético de indígenas de vários povos, a partir de 85 dólares por amostra. Algumas amostras colocadas na Internet foram patenteadas por empresas ou pesquisadores.
Essas informações não são passadas pelos meios de comunicação, porque os jornais e todos os canais de TV, têm donos que fazem parte das elites que são contrários à demarcação das áreas indígenas. Eles têm interesse especialmente na mineração, gado e cultivo de agricultura
rentável mesmo que predadora dessas áreas, como soja, eucalipto, arroz. E o que os índios conseguem fazer nas suas assembléias é rebater as elites locais de que não são um empecilho para o desenvolvimento e levam a discussão até o exterior, onde se consegue mais espaço do que nacionalmente.
Por fim, há uma tendência no Supremo Tribunal Federal que dirá que a Declaração dos Povos Indígenas da ONU, não é convenção, tratado nem tem força de lei. Trata-se de manifestação política."

Fonte: Vilemar Costa (vilemarfc@gmail.com).

Leiam também entrevista com Egon Heck, do CIMI de Roraima, no Mídia Independente.