30 de maio de 2008

A cidadania Kayapó

foto: Sue Cunninghan

Antigamente os Kayapó eram considerados uma tribo muito belicosa e agressiva morando no sul do Pará e norte de Mato Grosso, vagueando por um território vasto desde a margem leste do Xingu até o Tapajós. A parte oriental da tribo foi pacificada por volta de 1940, e a parte ocidental na década de 50, pelos irmãos Villas Boas. Eles guerreavam com tribos vizinhas como Karajá, Juruna, Xavante, Tapirapé, Kreen-Akorore e outras, como também ribeirinhos, seringueiros e outros no local. Eles matavam, tocavam fogo nas aldeias e vilarejos, roubavam e sequestravam. Alguns dos cativos ainda hoje estão vivos, integrados na sociedade Kayapó, casados com filhos e netos.

Além de guerrear com os não-Kayapó, eles também praticavam guerra interna, com aldeias diferentes atacando e se matando umas as outras. Hoje em dia não tem mais guerra interna, nem guerra contra outras tribos, porém eles insistem em sua natureza belicosa, pois atacam aqueles que invadem suas terras.

Takakire, chefe de posto da Funai na aldeia Pykany, às margens do rio Iriri, relatou a Haroldo Castro em 2006 que teve que passar, como guerreiro Kayapó, pela prova ritual de “bater em casa de maribondo”. “Para ser um líder, tem que ser calmo, ser honesto e ser um homem de palavra. Nossa força é manter nossa tradição, nosso conhecimento. Sangue Kayapó é puro, como se fosse um rio só”.

Nimuendaju conta:

"No começo só existia o Kayapó Katembári com sua mulher, oito filhos e outras tantas filhas. Irmãos e irmãs casavam entre si, mas não tinham filhos, e por isso seu número nunca aumentava. Vagavam pelo mundo fazendo guerra a todas as tribos que descobriam, tomando-lhes os enfeites e adotando, com estes, as festas e as cerimônias dos vencidos. Aborrecia-os, porém, serem tão poucos, e por isso pediram ao velho Katembári que criasse mais Kayapó. "Sim", respondeu este, "vou faze-lo, pois também eu estou enfadado de estar só!" Saiu só para o campo alto, onde procurou uma sucupira (Bowdichia sp.), da qual cortou os galhos. Num vaso feito de uma folha, trouxe água e com ela fez sua magia. Depois meteu um aspersório de penas de urubu-rei na água mágica, trepou com ele no topo da árvore e, gritando alto, aspergiu para todos os lados. Depois desceu e deitou ao redor da árvore, no chão, num círculo largo, folhas de caeté, sempre uma em cada lugar onde havia de ter uma choça. Feito isto, tornou a casa e disse aos filhos: "Amanhã já teremos muitos companheiros!" Esta notícia alegrou-os muito, e quando na manhã seguinte foram ao lugar onde Katembári tinha feito a sua magia, já ouviam de longe as vozes das crianças e das mulheres. Ao redor do pé de sucupira tinha surgido durante a noite uma grande aldeia de Kayapó."

O projeto da usina hidrelétrica Belo Monte no rio Xingu, reencarnação do projeto Kararaô derrubado em 1989, deveria ser definitivamente arquivado. Segundo Haroldo Castro na reportagem citada, brigar com os Kayapó é um grande equívoco, pior do que mexer em ninho de maribondo. Principalmente agora que esses guerreiros estão, mais que nunca, unidos e preparados para defender seus direitos.

Confiram o resultado do último encontro no Pará:
CARTA XINGU VIVO PARA SEMPRE

Nós, representantes das populações indígenas, ribeirinhas, extrativistas, dos agricultores e agricultoras familiares, dos moradores e moradoras da cidade, dos movimentos sociais e das organizações não-governamentais da Bacia do rio Xingu, nos reunimos no encontro Xingu Vivo para Sempre, realizado na cidade de Altamira (PA), entre os dias 19 e 23 de maio de 2008, para discutir, avaliar e denunciar as ameaças ao rio que nos pertence e ao qual pertencemos nós e reafirmar o modelo de desenvolvimento que queremos.

Nós, que somos os ancestrais habitantes da Bacia do Xingu, que navegamos seu curso e seus afluentes para nos encontrarmos; que tiramos dele os peixes que nos alimentam; que dependemos da pureza de suas águas para beber sem temer doenças; que dependemos do regime de cheias e secas para praticar nossa agricultura, colher os produtos da floresta e que reverenciamos e celebramos sua beleza e generosidade a cada dia que nasce; nós temos nossa cultura, nossa espiritualidade e nossa sobrevivência profundamente enraizadas e dependentes de sua existência.

Nós, que mantivemos protegidas as florestas e seus recursos naturais em nossos territórios, em meio à destruição que tem sangrado a Amazônia, nos sentimos afrontados em nossa dignidade e desrespeitados em nossos direitos fundamentais com a projeção, por parte do Estado Brasileiro e de grupos privados, da construção de barragens no Xingu e em seus afluentes, a exemplo da hidrelétrica de Belo Monte. Em nenhum momento nos perguntaram o que queríamos para o nosso futuro. Em nenhum momento nos ouviram sobre a construção de hidrelétricas. Nem mesmo os povos indígenas, que têm esse direito garantido em lei, foram consultados,. Mesmo assim, Belo Monte vem sendo apresentada pelo governo como fato consumado, embora sua viabilidade seja questionada.

Estamos cientes de que interromper o Xingu em sua Volta Grande causará enchentes permanentes acima da usina, deslocando milhares de famílias ribeirinhas e moradores e moradoras da cidade de Altamira, afetando a agricultura, o extrativismo e a biodiversidade, e encobrindo nossas praias. Por outro lado, o barramento praticamente secará mais de 100 quilômetros de rio, o que impossibilitará a navegação, a pesca e o uso da água por muitas comunidades, incluindo aí várias terras e comunidades indígenas.

Também estamos preocupados com a construção de Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) nos rios formadores do Xingu. Algumas já foram construídas, outras já estão autorizadas e até hoje não houve qualquer tipo de avaliação dos impactos que esse conjunto de obras causará aos 14 povos indígenas do Parque Indígena do Xingu. Essas barragens profanam seus sítios sagrados e podem acabar com os peixes dos quais se alimentam.

Assim, nós, cidadãos e cidadãs brasileiras, vimos a público comunicar à sociedade e às autoridades públicas federais, estaduais e municipais a nossa decisão de fazer valer o nosso direito e o de nossos filhos e netos a viver com dignidade, manter nossos lares e territórios, nossas culturas e formas de vida, honrando também nossos antepassados, que nos entregaram um ambiente equilibrado. Não admitiremos a construção de barragens no Xingu e seus afluentes, grandes ou pequenas, e continuaremos lutando contra o enraizamento de um modelo de desenvolvimento socialmente injusto e ambientalmente degradante, hoje representado pelo avanço da grilagem de terras públicas, pela instalação de madeireiras ilegais, pelo garimpo clandestino que mata nossos rios, pela ampliação das monoculturas e da pecuária extensiva que desmatam nossas florestas.

Nós, que conhecemos o rio em seus meandros, vimos apresentar à sociedade brasileira e exigir das autoridades públicas a implementação de nosso projeto de desenvolvimento para a região, que inclui:

A criação de um fórum de articulação dos povos da bacia que permita uma conversa permanente sobre o futuro do rio e que possa caminhar para a criação de um Comitê de Gestão de Bacia do Xingu;

A consolidação e proteção efetiva das Unidades de Conservação e Terras Indígenas bem como o ordenamento fundiário de todas as terras públicas da região da Bacia do Xingu.

A imediata criação da Reserva Extrativista do Médio Xingu.

A imediata demarcação da TI Cachoeira Seca, com o assentamento digno dos ocupantes não indígenas, bem como a retiradas dos invasores da TI Parakanã.

A implementação de medidas que efetivamente acabem com o desmatamento, com a retirada de madeira ilegal e com a grilagem de terras.

O incremento de políticas públicas que incentivem o extrativismo e a consolidação da agricultura familiar feita em bases agroecológicas e que valorizem e estimulem a comercialização dos produtos da floresta.

Efetivação de políticas públicas capazes de promover a melhoria e instalação de sistemas de tratamento de água e esgoto nos municípios.

O incremento de políticas públicas que atendam as demandas de saúde, educação, transporte, segurança, adequadas às nossas realidades.

Desenvolvimento de políticas públicas que ampliem e democratizem os meios de comunicação social.

O incremento de políticas públicas para a ampliação das experiências de recuperação de matas ciliares e de áreas degradadas pela agropecuária, extração de madeira e mineração.

Que nenhum outro dos formadores do Xingu venha a ser barrado, como já aconteceu ao rio Culuene com a implantação da PCH Paranatinga II.

Proteção efetiva do grande corredor de sóciobiodiversidade formado pelas terras indígenas e unidades de conservação do Xingu.

Nós, os que zelamos pelo nosso rio Xingu, não aceitamos a invisibilidade que nos querem impor e o tratamento desdenhoso que o poder público tem nos dispensado. Nos apresentamos ao País com a dignidade que temos, com o conhecimento que herdamos, com os ensinamentos que podemos transmitir e o respeito que exigimos.

Esse é o nosso desejo, essa é a nossa luta. Queremos o Xingu vivo para sempre.

Altamira, 23 de maio de 2008.

Assinam: Kayapó da Aldeia Kriny, Kayapó do Bacajá Xikrin, Kayapó de Las Casas, Kaiapó de Gorotire, Kayapó Kubenkrãkênh, Kayapó Moikarakó, Kayapõ Pykarãrãkre, Kayapó Kendjâm, Kayapó Kubenkàkre, Kayapó Kararaô, Kayapó Purure, Kayapó Tepore, Kayapó Nhàkin, Kayapo Bandjunkôre, Kayapó Krânhãpari, Kayapó Kawatire, Kayapó Kapot, Kayapó Metyktire, Kayapó Piaraçu, Kayapó Mekrãnoti, Kayapó Pykany, Kayapó da Aldeia Aukre, Kayapó da Aldeia Kokraimoro, Kayapo Bau, Kayapó Kikretum, Kayapó Kôkôkuêdja, Mrotidjam Xikrin, Potikrô Xikrin, Djudjekô Xikrin, Cateté Xikrin, Ôodja Xikrin, Parakanã da aldeia Apyterewa e Xingu, Akrãtikatejê, Parkatejê, Munduruku, Araweté, Kuruwaia, Xipaia, Asurini, Arara da aldeia Laranjal e Cachoeira Seca, Arara do Maia da terra Alta, Panará, Juruna do Km 17,Tembé, Kayabi, Yudja, Kuikuro, Nafukua, Kamaiurá, Kalapalo, Waurá, Trumai, Xavante, Ikpeng, Apinayé, Krahô, Associação das Mulheres Agricultoras do Assurini, Associação de Mulheres Agricultoras do Setor Gonzaga, Associação dos Moradores do Médio Xingu, Associação dos Moradores da Resex do Iriri ,Associação dos Moradores da Resex Riozinho do Anfrisio, AFP- Associação Floresta Protegida do povo Kayapó, Associação Indígena Kisedje - povo Kisedje (Parque Indígena Xingu), Associação Pró-Moradia do Parque Ipê, Associação Pró-Moradia do São Domingos, Associação Yakiô Panará - Povo Panará, Associação Yarikayu - povo Yudja (Parque Indígena Xingu), Articulação de Mulheres Paraenses, Articulação de Mulheres Brasileiras, ATIX – Associação Terra Indígena Xingu (Parque Indígena Xingu), CJP- Comissão de Justiça e Paz, Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Prelazia do Xingu, CPT- Comissão Pastoral da Terra, FAOR – Fórum da Amazônia Oriental, Federação de Assistência Social e Educacional (FASE), FETAGRI- Federação dos Trabalhadores na Agricultura Regional Altamira, Fórum de Direitos Humanos Dorothy Stang (FDHDS), Fórum Popular de Altamira, Fundação Elza Marques, Fundação Tocaia, Fundo DEMA, Grupo de Mulheres do Bairro Esperança, Grupo de Trabalho Amazônico Regional Altamira (GTA), IPAM- Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia, Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), MAB- Movimento dos Atingidos por Barragem, STTR-Altamira, Pastoral da Juventude, S.O.S. Vida, Sindicato das Domésticas de Altamira, Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Pará – SINTEPP, Movimento de Mulheres Trabalhadoras de Altamira Campo e Cidade – MMTACC, Movimento de Mulheres do Campo e Cidade do Pará - MMCC, Movimento de Mulheres do Campo e Cidade Regional Transamazônica e Xingu, Fórum de Mulheres da Amazônia Paraense, SDDH- Sociedade Paraense dos Direitos Humanos, MNDH- Movimento Nacional dos Direitos Humanos, MMM- Movimento de Mulheres Maria Maria, SOS Corpo, Instituto Feminista para a Democracia, Instituto Socioambiental – ISA, Fundação Viver Produzir e Preservar (FVPP).

Apoio: Fundação Heinrich Boell, International Rivers, Rainforest Foundation, Rainforest Noruega

Leiam em pdf: "O Caso dos Kayapó", de Jorge António Filipe Ramos. Fonte: Cedefes e Abiape

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