31 de agosto de 2007

Amazônia Brasileira e a Mulher Beija-flor

O ministro da Justiça fuma cigarro oferecido pelos xamãs indígenas no Parque Indígena do Xingu.
Agosto de 2007. Foto: Beth Begonha / ABr


Minha querida amiga jornalista e radialista Beth Begonha, da Rádio Nacional da Amazônia, não apenas fotografou o Ministro da Justiça Tarso Genro em sua recente viagem ao Xingu como entrevistou-o para a Agência Brasil a fim de saber da situação da Fundação Nacional do Índio, a FUNAI, órgão daquele Ministério:

Em entrevista a Beth Begonha, enviada especial da Rádio Nacional da Amazônia ao Parque Indígena do Xingu, Tarso disse que defender as terras indígenas é garantir o cumprimento da Constituição Federal, que determina o respeito aos direitos desses povos. O ministro da Justiça, que esteve no Xingu (...) como convidado para assistir à cerimônia do Kuarup, na aldeia dos índios Yawalapiti (a cada ano, o ritual acontece em uma ou algumas das diversas aldeias das 14 etnias da parte sul do parque, o chamado Alto Xingu), afirmou que a Polícia Federal está disposta a usar a força para garantir esses direitos. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
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Rádio Nacional da Amazônia: Há intenção, por parte do Ministério da Justiça, de fortalecer a Funai?
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Ministro Tarso Genro: A Funai tem que passar e já está passando por uma completa reestruturação. As políticas públicas que passam por dentro da Funai são extremamente importantes, não só para nós respeitarmos os indígenas, que são os primeiros donos dessa terra Brasil, como também se referem ao futuro do nosso país. Da relação harmoniosa dos indígenas com a sociedade moderna e com a natureza, somada ao respeito aos direitos constitucionais que foram consagrados na Carta de 88, é que nós vamos ter uma nação verdadeiramente coesa e democrática; não há possibilidade que se tenha isso sem que os direitos fundamentais desses grupos étnicos sejam respeitados. E a Funai não estava aparelhada para cumprir essa missão. Sem entrar no mérito da administração anterior, porque não me cabe avaliá-la, mas todas as modificações que foram feitas, entre elas a reestruturação do quadro e o aparelhamento técnico que está sendo feito agora vão melhorar muito o desempenho da Funai e portanto, o do governo brasileiro no cumprimento de seus compromissos com esses nossos brasileiros originais.
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RNA: Existe previsão de concurso público, plano de carreira e melhoria de salários para os servidores da Funai?
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Tarso: Esta é uma questão que já está sendo tratada pelo presidente da Funai com a equipe técnica do Ministério do Planejamento. Não sou eu quem decide sobre a estrutura técnica dos quadros e sobre sua remuneração, mas é mais do que evidente que algumas modificações deverão ser feitas. Não só o quadro deve ser reestruturado tecnicamente, mas a Funai tem que acompanhar os direitos do servidor público no que se refere à reorganização do plano de carreira e a remuneração apropriada.
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RNA: Qual a importância das terras indígenas e dos povos que vivem nessas regiões?
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Tarso: É uma questão chave, porque a forma através da qual o território da nação se organiza é a forma com que seus habitantes ocupam esse território, portanto as formas de propriedade são formas de ocupação. A forma de manutenção da propriedade imemorial dos indígenas é uma maneira de constituição harmônica do território, não só do ponto de vista étnico e social, mas também do ponto de vista da defesa da biodiversidade, da defesa das suas riquezas e da manutenção dessa pluralidade étnica.
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RNA: Muitos povos indígenas enfrentam problemas em suas terras como conflitos com madeireiros e garimpeiros. Qual é a disponibilidade da Polícia Federal para atender esses povos indígenas?
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Tarso: É de parceria total. A Polícia Federal é a polícia da União e desenvolve atividades inclusive preventivas em relação a essas questões. É claro que o crescimento econômico do país às vezes se dá de forma desordenada, de forma irracional e ofensiva aos direitos dos indígenas consagrados na Constituição. Por isso, à medida que nós tivermos que usar recursos judiciais para isso, nós usaremos, e à medida que tivermos que usar força do Estado, que detém o monopólio da força, também o faremos. E estaremos fazendo nada menos que cumprir a Constituição, protegendo as terras indígenas de invasões dessa natureza.
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foto de Beth Begonha na Aldeia Yawalapiti

Escrevendo na Revista da Funai sobre "Os índios e a mídia", Beth fala sobre o seu trabalho na rádio que, através do carisma de sua voz e de suas colocações pessoais, faz dela uma verdadeira celebridade das matas com o codinome "Beth Beija-flor":
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Tudo que sei sobre os povos indígenas, aprendi com eles. Quando iniciei o projeto do Amazônia Brasileira, programa que apresento e produzo na Rádio Nacional da Amazônia, tinha muito claro em minha mente os objetivos que deveríamos atingir como espaço de mídia: integrar os vários povos que vivem na Amazônia, com sua diversidade cultural e suas questões específicas, promovendo o conhecimento e a interação entre essas populações. Isso incluía também as comunidades indígenas. Desde sempre esse espaço foi pensado para ser ocupado pelos índios, e não por alguém que falasse por eles.
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Não foi tarefa difícil, devo confessar, pela receptividade dessas comunidades, pelo desejo que tinham e têm de serem vistos e ouvidos. A maior dificuldade era minha, pois, apesar de trabalhar em comunicação há 25 anos, inclusive na Amazônia, não tinha qualquer conhecimento sobre os índios nem um modelo de programa na mídia que pudesse seguir.
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Muito do que me ocorre sobre indígenas na TV e no rádio é extremamente alegórico e, em grande parte, se não explicitamente negativo, carregado de desconhecimento. O despreparo dos comunicadores é evidente. Nem tudo é maldade e preconceito. Na verdade, creio que o problema maior é mesmo o desconhecimento, a ignorância, no sentido literal.
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Não é à toa que muitos ouvintes escrevem dizendo que o Amazônia Brasileira é uma escola. Para mim também tem sido. Por esse espaço aberto, quase experimental, tem passado não só lideranças conhecidas, como Ailton Krenak e Marcos Terena, mas também pessoas anônimas, habitantes das aldeias, ouvintes do programa, que nos escrevem, telefonam e mandam e-mails, como o professor Waranaku Aweti, que, em viagem a Belém, procurou-me como ouvinte e acabou convidado do programa. Foi quando conhecemos os Aweti do Parque do Xingu.
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Lembro-me quando toda a Amazônia se emocionou com o canto de Kakotchele Krahô. Falávamos sobre o festival de sementes desse povo, considerado um dos mais antigos do planeta, quando, de repente, ele disse: “Posso cantar o canto da ema? O meu povo é o ‘povo da ema’!” Que beleza, que força! Os ouvintes escreveram comentando, ficamos todos felizes pela oportunidade de nos conhecermos. Ah, e uma das músicas mais pedidas no Amazônia Brasileira é O encanto do beija-flor, com o pajé Benki Ashaninka. Um verdadeiro hit!
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A sociedade brasileira precisa descobrir os povos indígenas. Conhecer as “pessoas” indígenas, homens e mulheres, brasileiros como nós, com suas virtudes e seus defeitos, suas dificuldades e seu saber. O papel da mídia é essencial nessa tarefa. E se a mídia, por interesse, mostra aquilo que o povo quer ver, que seja feito o convite a toda essa gente brasileira, tão acolhedora com os estrangeiros de toda parte do mundo, para que acolha, se interesse, conheça e reconheça os nossos povos do Brasil.
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Concluindo, uma foto de Beth com os Aweti no Xingu e um poema feito por um amigo índio para a musa das ondas da Amazônia Brasileira:


Talvez seja ela a perfeita síntese entre mundos e perspectivas. Síntese não é uma boa palavra, porque não se trata de fazer um só de muitos, mas de, revelando os muitos, transitar por eles, entre eles, virando outros a cada vez (e não sendo sempre o mesmo) (e não sendo sempre - necessariamente - humanos, e não sendo sempre os mesmos olhos). Ela transita entre esses mundos (mulher, animal; branco, índio(s); digital, analógico/ lógico, ilógico, alter-lógico) como um elo perdido. sua beleza está fora do alcance de qualquer visão estática, e só se mostra em movimento, em, seu movimento próprio. Afinal, ela é um beija-flor, o único que pára no ar, mas só alguns sabem e vêem quanto movimento isso requer! Por isso os olhos dela se movem sempre, de um lugar a outro, assumindo novos pontos de vista e, por isso, novos corpos, novas cores, novas vozes, sempre um novo pensar e agir. por isso os olhos dela são doces e generosos, de tanto ver. Por isso os olhos dela são grandes e sorriem. Como não amá-la?

Para escutar: Amazônia Brasileira
Rádio Nacional da Amazônia OC
8:00 às 10:00 hs
Horário de Brasília
amazoniabrasileira@radiobras.gov.br
beijaflordaamazonia@gmail.com

Estrelas e Unidades de Tempo

Toda a cosmografia Tupi no que se refere aos fenômenos cosmológicos era baseada na observação empírica das variações das estações, dos ventos, das chuvas, etc. As estrelas Urubu, Surã, Iapuicã e as constelações Simbiare-rajeiboare e Seichujurá, por exemplo, indicavam a vinda das chuvas.
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A principal unidade de tempo dos Tupinambás eram as lunações. Por meio de lunações conseguiam uma unidade de tempo correspondente ao nosso mês. Thevet nos informa que as perguntas sobre a idade, os acontecimentos tribais, tudo era respondido por seu intermédio: - “há tantas luas eu nasci....”
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A eficiência do sistema total de demarcação do tempo Tupinambá, pode ser apreciada em relação com o nosso. Abbeville, que fez tal comparações, chegou a conclusões interessantes:
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1) O movimento do Sol de um trópico ao outro e vice-versa, dava-lhes uma noção de tempo correspondente ao ano europeu.
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2) A delimitação das épocas de chuvas e de ventos ou do tempo dos cajus, dava-lhes uma noção de tempo correspondente ao mês europeu.
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3) Os movimentos da estrela "seichu", que aparecia antes das chuvas para desaparecer em seguida, davam-lhes um conhecimento empírico do interstício, ou seja, do tempo decorrido de um ano a outro.
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4) Pela correlação entre as fases da lua e dos movimentos das águas, obtinham uma nova noção de tempo.
Para exemplificar toda esta teoria, escolhemos um sacrifício ritual, onde pode-se visualizar mais facilmente a regularidade destes fenômenos naturais.
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O prisioneiro deveria ser conservado com vida por algum tempo. Neste caso, precisavam determinar a data da execução em quatro ou cinco luas, "verbi-gratia". Colocavam então, em seu pescoço um colar constituído com um número correspondente de certos frutos redondos. Outras vezes, o número de luas era computado por intermédio de pequenos colares, também colocados no pescoço do prisioneiro. Cada lua que passava tiravam uma conta do colar ou um pequeno colar do pescoço. Quando chegavam a última unidade, o prisioneiro deveria ser executado e todos os preparativos fundamentais para as festas e cerimônias se achavam prontos.
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A guerra contra seus inimigos também eram marcadas com antecedência regular. Neste caso, podiam referir-se a certo número de luas. Mas se utilizavam também de outro processo. Como era conhecida a época da colheita de certos produtos agrícolas ou época da desova dos peixes, escolhiam uma delas como ponto de referência. Para esse fim escolhiam o milho, por exemplo ou então o caju. Na época do amadurecimento do milho ou no tempo do caju, realizavam o ataque.
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Segundo informação cedida pelo indianista João Américo Peret: "Eles marcam reuniões sem o Calendário Gregoriano, e chegam no prazo combinado".
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Os Karajá contam:
Maybã (é tempo de milho verde), corresponde a Janeiro;
Baebara (o rio parou de encher) mês de Fevereiro;
Tubyraçó (começou a vazante) mês de Março;
We-ra (já tem praia de fora) Abril;
Rarado--uebto (as árvores têm flores que alimentam os animais) Maio;
Rarado-sí (as árvores têm frutos) Junho;
Kotu-sí (o tracajá põe ovos) Julho;
Bederá (começaram as queimadas para fazer roçado) Agosto;
Kotuni-sí (as tartaruga já põem ovos) Setembro;
Baé-bã dereká (iniciaram as chuvas e o rio começa a encher) Outubro;
Kotuni-reioré (as tartarugas estão nascendo) Novembro;
Baorá (o rio está enchendo) Dezembro.
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A constelação do Tinguaçu (ave conhecida também como capitão-de-saíra)

Outros índios contam o tempo: pelo verão, inverno, outono e primavera; nos quartos da lua; quando começa a florir o Ipê (pau d´arco), o pequizeiro; quando certos frutos amadurecem; no repiquete (cabeça d´água em que o rio enche e vasa em seguida); na enchente e na vazante; em quantos dormir (noites), quando o sol estiver nesta posição.”
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Algumas tribos, como a dos guaranis, conheciam duas estações: do Sol (coaraci-ara) e das chuvas (almana-ara). Os caingangues, no Sul do Brasil, contavam até dez dias passados ou futuros, usando os dez dedos das mãos. "Ningké" significa "mão" e "ten" quer dizer "com". Reunidos esses ordinais com a palavra Sol, obtinham os dias da semana, e com a palavra Lua, as semanas.
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Dias caingangues
1 - pir
2 - lenglé
3 - tektong
4 - vaitkanklá
5 - petigare
6 - ningkéntenyrn
7 - ningkéntenyrnlenglé
8 - ningkéntengrutektong
9 - ningkéntyrukenkta
10 - ningkévaitklitp
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Segundo o blog Monomito, as constelações dos tupis-guaranis diferem das concepções das sociedades exteriores ocidentais principalmente em três aspectos:

Primeiro, as principais constelações ocidentais registradas pelos povos antigos são aquelas que interceptam o caminho imaginário que chamamos de eclíptica, por onde aparentemente passa o Sol, e próximo do qual encontramos a Lua e os planetas. Essas constelações são chamadas zodiacais. As principais constelações indígenas estão localizadas na Via Láctea (Tapi’i Rape), a faixa esbranquiçada que atravessa o céu, onde as estrelas e as nebulosas aparecem em maior quantidade, facilmente visível à noite. A Via Láctea é conhecida como Caminho da Anta ou como a Morada dos Deuses pela maioria das etnias dos tupis-guaranis.

Os desenhos das constelações ocidentais são feitos pela união de estrelas. Mas, para os tupis-guaranis, as constelações são constituídas pela união de estrelas e, também, pelas manchas claras e escuras da Via Láctea, sendo mais fáceis de imaginar. Muitas vezes, apenas as manchas claras ou escuras, sem estrelas, formam uma constelação. Os guaranis chamam a Grande Nuvem de Magalhães de Bebedouro da Anta (Tapi’i Huguá) e a Pequena Nuvem de Magalhães de Bebedouro do Porco-do-Mato (Coxi Huguá).

O terceiro aspecto que diferencia as constelações Tupis-Guaranis das ocidentais está relacionado ao número delas conhecido pelos indígenas. A União Astronômica Internacional (UAI) utiliza um total de 88 constelações, distribuídas nos dois hemisférios terrestres, enquanto certos grupos indígenas já nos mostraram mais de 100 constelações, vistas de sua região de observação. Quando indagados sobre quantas constelações existem, os pajés dizem que tudo que existe no céu existe também na Terra, que nada mais seria do que uma cópia imperfeita do céu. Assim, cada animal terrestre tem seu correspondente celeste, em forma de constelação.

O físico e astrônomo Carlos Alfredo Argüello conta da sua preocupação em mapear o céu dos índios, e em criar situações onde os mais jovens se interessem pelo saber dos anciões, que está se perdendo:
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"Quando introduzimos um conhecimento novo, muitas vezes estamos matando uma parte da cultura que vigia antes. É uma espécie de massacre cultural dos índios", argumenta. Certa vez, exemplifica, levou um índio tapirapé ao Planetário de Campinas. Lá, queria que seu amigo o fizesse ver a constelação da Onça, que existe na cultura tapirapé e, ao mesmo tempo, pretendia mostrar-lhe a constelação do Escorpião. Como nenhum dos dois foi capaz de ter a visão do outro, Argüello lançou mão de um recurso do planetário, onde a constelação aparecia desenhada, com linhas ligando as estrelas. Dessa vez, então, o índio viu a do Escorpião. Tempos depois, pediu novamente ao índio que lhe mostrasse a constelação da Onça, ao que o índio respondeu: "Desde aquela vez, nunca mais consegui ver a Onça". "Este foi o dia em que o escorpião matou a onça", conta, com tristeza, Argüello.
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O físico e arqueo-astrônomo Germano Bruno Affonso, professor aposentado da Universidade Federal do Paraná, é um dos mais premiados cientistas nacionais, e nos relata mais sobre a cosmografia indígena no Brasil:

Os Guarani têm uma rosa-dos-ventos. Uma informação que li sobre a gênese guarani era de que no céu existiam palmeiras azuis representando os quatro deuses (os quatro pontos cardeais: norte, sul, leste, oeste) e suas quatro esposas (os pontos colaterais: nordeste, noroeste, sudeste, sudoeste) formando uma rosa-dos-ventos. Os Guarani dizem que tudo o que existe no Céu existe também na Terra. Porque a Terra nada mais é do que um reflexo do Céu. Aí começamos a procurar algum vestígio concreto disso. Até que um dia no Paraná, em Itapejara D’Oeste, na beira do rio Chopim, encontramos essa rosa-dos-ventos! Encontramos um círculo de palmeiras. Colocamos o teodolito no meio do círculo e medimos as direções dessas palmeiras. O resultado é que deu exatamente os pontos cardeais e os pontos colaterais. Uma rosa dos ventos de palmeiras aqui na Terra! Curioso notar que a palavra Itapejara não significa nada em guarani. No entanto, originalmente essa região se chamava Tapejara, que significa o Caminho do Senhor. E certamente uma rosa-dos-ventos é um excelente guia.

Baixe em pdf o texto "As Constelações Indígenas Brasileiras", de Germano Bruno Affonso, e leia também "Astronomia Afro-Indígena". Também é interessante e pertinente conhecer "O uso do fogo: o manejo indígena e a piromania da monocultura", de Mauro Leonel. Lançado por Germano Afonso, o cd-rom "Arqueoastronomia brasileira" apresenta histórias sobre dez constelações indígenas, sobre a Lua, o Sol e Vênus (que adquirem inúmeros significados na cultura indígena), e o resgate de mitos, entre outros. O cd-rom pode ser adquirido por R$ 25 junto ao professor Germano Afonso pelo mail afonso@fisica.ufpr.br

Fonte: Cara do Brasil . Bibliografia consultada: "Organização Social dos Tupinambás" , de Florestan Fernandes (1949).

30 de agosto de 2007

Narby e a Inteligência Natural

Beings of the Vegetation , por Pablo Amaringo - em Gallery of Usko-Ayar

Palestra dada pelo antropólogo Jeremy Narby, autor do livro Cosmic Serpent : DNA and the origins of knowledge, juntamente com a banda Young Gods, em 03/07/04, durante o Forum Cultural Mundial, em São Paulo:

Boa noite. Sou um antropólogo; isso significa, estudo pessoas. Em 1984 me embrenhei na Amazônia peruana, novato, direto dos subúrbios e da biblioteca. Não possuía nenhuma experiência prévia a respeito da floresta tropical ou de seus habitantes indígenas. Voltando no tempo, especialistas afirmavam que para se desenvolver a Amazônia, você deveria eliminar da floresta seus habitantes indígenas e derrubá-la, no intuito de explorar seus recursos naturais . Eles afirmavam que os índios não sabiam como utilizar os recursos racionalmente, e confiscar suas terras era economicamente justificável. Como um jovem antropólogo, eu queria estudar como o povo ashaninca vivia no meio da Amazônia peruana e utilizavam a floresta, no intuito de demonstrar que eles utilizavam seus recursos racionalmente, e, portanto, mereciam e tinham o direito sobre sua própria terra. O objetivo era contradizer os bancos de desenvolvimentos internacionais e tentar promover uma mudança na política. O povo ashaninca com o qual eu convivi, acolheram e demonstraram-me o que eles sabem a respeito da floresta. Torna-se notório que a Amazônia peruana é o local no mundo com maior diversidade biológica. É o epicentro da biodiversidade mundial. Ela possui mais espécies de mamíferos, árvores, répteis, anfíbios e pássaros do que qualquer local de tamanho similar. Quando você anda pela floresta, você observa a mescla de espécies. Na Amazônia peruana, os cientistas acharam mais (a música inicia) espécies de formigas em uma única árvore do que em todas as ilhas britânicas; mais espécies de árvores em um simples hectare do que em toda a Europa; mais espécies de pássaros em um único vale do que em toda a América do Norte. É uma concentração de biodiversidade, um local onde a vida é mais ativa e fértil, e você pode sorvê-la, o ar é almiscareiro, tal qual uma estufa.
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Surpreendentemente, o ashaninca que me acompanhou pela floresta possuía os nomes de quase todas as plantas, e atribuiu usos para metade delas. Eles utilizam plantas como alimento, materiais de construção, cosméticos, tingimento e medicação. Rapidamente, percebi que eles possuem quase um conhecimento enciclopédico das propriedades das plantas. Eles conhecem plantas que aceleram a cicatrização de ferimentos, curam diarréia, ou curam dores crônicas de costas. Eu mesmo utilizei esses medicamentos quando necessários, somente para certificar-me que eles funcionavam. Logo, comecei a perguntar aos meus consultores ashanincas como eles sabiam a respeito das plantas. Suas respostas foram enigmáticas. Disseram que o conhecimento a respeito das plantas emana das próprias plantas, e os “ayahuasqueros”, tabaqueiros ou xamãs, tomam uma infusão de planta alucinógena chamada ayahuasca, ou comem tabaco concentrado, e falam em suas visões com as essências, os espíritos, que são comuns a todas as formas de vida e são fontes de informações. Eles dizem que a natureza é inteligente e fala com as pessoas por meio de visões e sonhos.
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Bem, eu não levei muito a sério o que essas pessoas estavam me contando. Não podia ser verdade, pois considerando que há informação verídica em suas alucinações, tem-se a definição de psicoses. Era uma impossibilidade epistemológica. Além do mais, isso contradizia o ponto central da minha pesquisa, demonstrar que essas pessoas utilizavam seus recursos racionalmente.
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Contudo, uma noite, após quatro meses nesta aldeia, eu estava nas proximidades da vila bebendo chá de mandioca com alguns homens e questionando a respeito da origem dos conhecimentos sobre plantas, quando um deles disse: “Irmão Jeremias, se você quiser descobrir a resposta para sua pergunta, você deve beber ayahuasca, se você quiser, eu poderei mostrar-lhe algum dia”. Ele a chamou de televisão da floresta, ela permite que uma pessoa veja imagens e aprenda coisas.
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Eu cresci na Suíça, onde o LSD é uma molécula indígena, portanto, eu já provei-o várias vezes, e pensei que sabia tudo sobre coisas desse tipo. Logo, disse sim. Algumas noites mais tarde, me encontrei com este “ayahuasquero” no tablado de uma casa silenciosa, rodeada pelos sons da floresta. Ele administrou a ayahuasca, que é uma infusão amarga, então, após um longo silêncio, ele começou a cantar na escuridão, refrões de sons incompreensíveis e melodias levemente dissonantes. Imagens apareceram na minha mente, e rapidamente me encontrei rodeado por enormes serpentes fluorescentes de 13 metros de comprimento por um metro de altura, realmente arrepiante, que começaram a conversar comigo por meio de uma linguagem mental, contando-me coisas consideradas dolorosas a meu respeito. Elas disseram, você é apenas uma existência humana, uma sensível existência humana. Eu pude ver, olhando para elas, que estavam certas , que minha perspectiva materialista possuía limites, iniciando pela pressuposição de que meus olhos mostravam-me coisas que não existiam. E, pude ver que minha visão de mundo possuía uma arrogância abismal, fazendo-me cair para frente de joelhos. Então, tive que vomitar – em ashaninca, a palavra ayahuasca é kamárampi, do verbo kamarank, vomitar. A palavra também significa cobra. Logo, me levantei, caminhei sobre as cobras fluorescentes, e vomitei colorido, então me encontrei na escuridão, e transpus meu corpo acima do planeta, que não era azul, sim branco, e coberto de gelo. Mas, assim que o xamã mudou sua canção, eu retornei ao meu corpo, e vi centenas de milhares de imagens, como veias de uma mão humana que lembravam imagens de sulcos de uma folha verde; elas pareciam iguais. Havia muitas imagens, era difícil lembrar-me de todas elas. Era como estar dentro de uma máquina de lavar.
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No dia seguinte, tentei falar dessa experiência. Por um lado, ela confirmou o que meus amigos ashanincas disseram. Você pode ingerir a ayahuasca sob a orientação de um praticante treinado e aprender coisas. Eu aprendi que eu era insignificante e de alguma forma, fazia parte da natureza. Eu olhei para a folha verde e em seguida para a pele da minha mão, e descobri que éramos feitos da mesma matéria. A experiência acima de tudo foi um antídoto à contemplação antropocêntrica da antropologia. Isso demonstrou que as noções aparentemente fantasiosas dos meus amigos ashaninca correspondem a algo poderoso, que passou diante da minha própria compreensão da realidade. Foi maravilhoso. Como eu poderia falar para meus colegas a respeito disso e ser levado à sério por eles? Experiências subjetivas de alucinógenos nativos não eram conhecidas no âmbito das carreiras antropológicas, portanto, me acovardei. Voltei as costas para este mistério e continuei minha pesquisa a respeito do uso dos recursos ashanincas, mais um ano, então retornei à universidade, escrevi minha dissertação e tornei-me um doutor em antropologia.
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Os europeus chegaram à América há 500 anos atrás e começaram a despovoar as terras. Segundo avançadas estimativas conservadoras de historiadores europeus, quarenta milhões de indígenas morreram, do Alaska à Patagônia, à medida que os europeus apoderavam-se do continente.
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Alguns afirmam que este genocídio não foi deliberado, e culpam as doenças contagiosas. Contudo, isso ignora os fatos da história. Europeus massacraram populações inteiras. Gonzalo de Oviedo, o historiador oficial da Coroa Espanhola, disse que ele viu mais mortes cruéis que as estrelas no céu. Ele nomeou esses homens de “despovoadores”. Os europeus reduziram países inteiros à escravidão e trabalho, que levou seus habitantes à morte. Conquistar a montanha de prata, Potosi, no Império Inca. Essa prata da montanha originou e impulsionou o capitalismo, mas quatro entre cinco trabalhadores morreram após um ano de trabalho forçado em Potosi. Nas proximidades das minas de mercúrio de Huancavelica, a expectativa média de vida do trabalhador era de três semanas. Historiadores estimam que mais de oito milhões de pessoas morreram nessas minas.
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Essa implacável conquista estendeu-se até o século 20. Nos anos 60 e 70, na Amazônia, os índios eram definidos como “obstáculos pré-históricos ao progresso”, e eles foram massacrados. Na Amazônia brasileira, 56 tribos foram varridas da face da terra, somente no século 20. Foram 56 sociedades, línguas, formas de pensamentos transformados em fumaça. Costumavam ser sete milhões de indígenas na Amazônia, agora restou somente menos de um milhão.
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O que podemos fazer com essa história? Não é sua culpa, não é minha, mas estamos montados nela esta noite.
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E acredite ou não, a religião cristã com sua forma missionária evangélica continua a destruir as crenças dos índios amazônicos. Eu recentemente visitei muitas regiões amazônicas, nas quais os últimos xamãs foram levados à morte pelos próprios indígenas, por sugestão missionária. Muitos séculos após a inquisição, as pessoas afirmam agirem em nome de Cristo, e continuam a erradicar o xamanismo.
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O mundo industrial ameaça a diversidade biológica. Ele também ameaça a diversidade humana. Das 6.000 línguas ainda faladas, metade não está sendo ensinada às crianças. A cada duas semanas, uma língua desaparece juntamente com os mais idosos de uma tribo. Lingüistas estimam que 3.000 línguas desaparecerão durante este século, o que representa metade das palavras no mundo. Uma língua é mais do que um conjunto de palavras; é uma forma de compreender o mundo. O que está em perigo é o repertório da humanidade, por negociar com os desafios desconhecidos do futuro. Tomados juntos, as culturas deste mundo representam um vasto reservatório de conhecimento contendo as memórias de todos os mais velhos, curandeiros, guerreiros, fazendeiros, pescadores, parteiras, poetas e visionários. Essa é a expressão plena da experiência humana. A sociedade industrial possui somente 200 anos. Como uma simples cultura, com tão frívola história, possui todas as chaves para a sobrevivência das nossas espécies?
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Os europeus não inventaram a civilização. Os chineses possuíam a porcelana quando os europeus ainda viviam na lama. Os hindus e os maias inventaram a matemática, a qual os árabes aprimoraram. Agora é nossa responsabilidade cuidar da diversidade humana com carinho, aproximar-se de outras formas de conhecimento e realização, compartilhar nossa contemplação e experiência de outras culturas.
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O ashaninca ensinou-me muitas coisas, algumas das quais levaram anos para tornar-se compreensíveis. Contudo, uma coisa que eles conseguiram ensinar-me rapidamente foi a idéia de que a prática é a forma mais avançada da teoria. Em suas concepções, se uma idéia é boa, você pode colocá-la em prática. De outro modo, é somente pura teoria, em outras palavras não vale muito. Isso me encoraja a aplicar o que aprendi. Em 1989, consegui um emprego em uma ONG suíça que promovia os direitos territoriais dos índios na Amazônia. Até então, este trabalho levou a garantir cerca de 4 milhões de hectares às comunidades indígenas, que é uma área equivalente à 1% da floresta amazônica. Isso também me permitiu visitar pessoas de muitas sociedades indígenas, não somente os ashanincas, mas os aguaruna, shipibo, shawi entre outros. E durante estas viagens, pude perguntar como eles aprenderam a respeito das plantas. Todos eles deram-me prontamente a mesma resposta: o conhecimento à respeito das plantas vem dos ayahuasqueros e tabaqueiros, que ingerem suas misturas de plantas e falam em suas visões com as essências comuns a todas as formas de vida. Você compreendeu? Sim, compreendi. Mas o que significa?

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Isso foi um mistério: aqui as pessoas vivem na maior localidade de diversidade biológica no planeta; seus conhecimentos empíricos a respeito das plantas são agora amplamente reconhecidos pela ciência e indústria; eles ainda afirmam que a maior parte deste conhecimento surge das alucinações de seus xamãs. O que isso poderia significar?
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Em 1992, fui à Conferência da Terra, no Rio, e descobri que todos falavam a respeito de conhecimentos de botânica dos povos indígenas, mas ninguém falava da origem alucinatória de parte deste conhecimento, como os povos indígenas a debatiam. Então, decidi aprofundar-me na questão.

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Após meses de leitura e reflexão, comecei a enxergar coerência nas práticas xamãnicas mundiais. Todos os xamãs trabalham em estados de transe que alcançam de distintas formas, não necessariamente por meio de plantas alucinógenas.Todos os xamãs os acompanham por uma música. Primeiramente, em especial, os xamãs realizam as músicas, tanto cantadas ou por meio de instrumentos. Os xamãs ao redor do mundo associam as essências, ou espíritos, a uma forma que os historiadores de religião chamam de axis mundi, o eixo do mundo, que está formatado tal qual uma escada trançada , ou duas vinhas entrelaçadas , ou uma escada em espiral , as quais eles as descrevem como sendo extremamente longas, tão longas que unem o céu à terra.

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Procurando compreender essas noções a partir de um ponto de vista racional, achei correspondentes diretos com a biologia contemporânea. O DNA, uma molécula informacional no centro de cada célula, a estrutura e a função que foram descobertas em um laboratório inglês há 51 anos atrás; essa se faz comum a todas as existências humanas, e está formatada precisamente tal qual uma escada trançada. Esta forma explica a função da molécula. Está configurada como dois cordões complementares envolto um ao redor do outro, o que pode protegê-los e permitir cópias exatas de si mesmos. Este formato permite que ocorra o armazenamento de informações e um mecanismo de duplicação. A molécula de DNA numa célula humana possui 10 átomos de largura e 2 metros de comprimento. Isso é um bilhão de vezes maior que sua largura. É como se um dedo mínimo fosse prolongado de Londres a Los Angeles. Se você pudesse estender seu DNA e colocá-los em linha reta, ele se estenderia por 200 bilhões de quilômetros, o que equivale a 70 viagens de ida e volta entre Saturno e o Sol, e o suficiente para dar a volta ao redor da terra 5 milhões de vezes.
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Um DNA não é apenas uma montagem de átomos, não somente um ácido deoxiribonucleico, mas sim um tipo de texto; os biólogos o estão seqüenciando tal qual. Afirmar que o DNA é apenas uma química, seria o mesmo que afirmar que os trabalhos de Machado de Assis são apenas tinta sobre o papel. Trata-se de uma afirmação verídica, contudo não se afirma tanto.

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O DNA transmite sua informação ao resto das demais células, por meio de um sistema de codificação que é surpreendentemente similar aos códigos humanos, no quais os registros individuais são significativos. As quatro moléculas que compõem os degraus da escada de DNA, e as quais os cientistas atribuíram uma letra (A, G, C e T) , não significam nada individualmente, elas devem ser combinadas em tríades para que façam sentido. O código genético contém 64 palavras de letra-tríade, todas quais possuem significado, incluindo pontuação, travessão e ponto. Estranhamente este sistema de codificação fora considerado como prova de uma inteligência, até a descoberta do código genético nos anos 60; até então , considerava-se que somente os humanos utilizavam códigos nos quais os sinais são significativos. Porém descobriu-se que todas as células no mundo utilizam tal código. Há uma unidade simbólica significativa em toda natureza.

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Para conceber ciência e xamanismo conjuntamente, tive que enxergar inteligência na natureza, um conceito que os xamãs a muito sugeriram, e que os biólogos confirmaram em seus recentes estudos, até mesmo dos mais simples organismos.
Tome o mofo do limo Physarum policephalum. Esta acéfala criatura unicelular amorfa normalmente comporta-se como uma massa cintilante de muco que move-se sobre, e engolfa sua comida – não se trata exatamente de um candidato premiado por conquista intelectual. Mas esse mofo é capaz de, consistentemente, resolver labirintos. É um organismo unicelular peculiar que pode crescer ao tamanho de uma mão humana e pode unir-se, em caso de separação. Quando pedaços de mofo são colocados em um labirinto, o limo espalha-se e forma um organismo simples que preenche os corredores do labirinto. Mas quando a comida está posicionada no início e no fim do labirinto, o mofo afasta-se da bordas e encolhe seu corpo em formato de um tubo, o caminho mais curto entre as fontes de comida. Ele resolvera o labirinto desta forma, todas as vezes que fora testado.
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Uma visão comum desta inteligência requer um cérebro. E cérebros são compostos por células. Mas neste caso, uma simples célula comporta-se como se tivera um cérebro.

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No seu significado original, a palavra inteligência refere-se à escolha (inter-legere) , e implica na capacidade de tomar uma decisão.

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As células em nossos corpos constantemente tomam decisões, respondendo a uma variedade de fatores elétricos, químicos e táteis, por isso crescem e diferenciam-se de modo coordenado. As células se comunicam umas com as outras de maneiras consideradas notáveis, que incluem cascatas em dominó de proteínas e uma larga variedade de sinais com significados tais quais “mantenha-se viva”, “mate-se”, “libere esta molécula que você tem armazenado”, “divida”, “não divida”. Qualquer célula recebe centenas de sinais de uma única vez e deve integrá-los e decidir o que fazer.

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Os cientistas descobriram que as formigas podem cultivar hortas de cogumelos com antibióticos; abelhas podem lidar com conceitos abstratos possuindo um cérebro do tamanho de uma semente de grama; corvos podem utilizar-se de ações padronizadas de furto; golfinhos podem reconhecerem-se em espelhos; e papagaios podem dizer o que querem. O velho dogma leva os cientistas enxergarem as existências naturais como objetos desprovidos de intenção, que Jacques Monod chamou de “a pedra angular do método científico”, não preenche mais os requisitos da informação. Além do mais, há claros sinais de inteligência em todos os níveis da natureza, e os conceitos dos xamãs indígenas podem lançar luz sobre isso.

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Até mesmo os vegetais não são estúpidos. Os xamãs amazônicos a muito consideram certas plantas como “professores”. Agora, mesmo os cientistas estão começando a reconhecer que as plantas se movem e reagem ao mundo com inteligência. Por exemplo, uma planta parasita chamada cuscuta move-se ao redor de si, e ao redor de outras plantas e avalia sua qualidade nutricional. Botânicos descobriram que a cuscuta avalia corretamente o momento exato de comer, e de mover-se; estas estratégias de pilhagem possuem as mesmas exatidões matemáticas dos animais pilhadores. Mas a cuscuta computa a escolha certa entre alternativas próximas, sem o benefício de um cérebro.
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Os xamãs utilizam suas mentes para aprender a respeito do mundo. Eles possuem técnicas distintas para modificar suas consciências. Afirmam que podem comunicar-se com outras espécies utilizando uma linguagem indireta e densamente metafórica. Os espíritos da natureza, eles afirmam, são fundamentalmente ambíguos, gostam e desgostam, e não podem ser reduzidos a uma simples descrição; isso justifica a metamorfose ser a única maneira correta para nomeá-los.

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A comunicação com inteligências ambíguas da natureza leva ao conhecimento e poder, que são por si só ambíguos, duplo-facetado, e com uma face negra. E deveria ser dito que não basta beber ayahuasca para entender o mundo, pois a ayahuasca é um poderoso alucinógeno, e sua ingestão por parte de usuários casuais envolvem riscos. Por exemplo, pode modificar sua visão de mundo se o que você vê não é o que buscava. Por isso, tomem cuidado.

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Na Amazônia, os povos indígenas dizem que nós temos semelhanças com as plantas e animais. Na cosmologia amazônica, humanidade é uma condição que se refere a todas as existências que habitam o mundo. Não há distinção fundamental entre humanos e outras espécies. Amazônicos pensam que é possível comunicar-se com outras espécies no reino das visões. Eles afirmam que os xamãs podem transformar-se em animais por meio de certas músicas. Os xamãs são transformistas. Suas almas podem abandonar seus corpos, afirmam, e entrar nos corpos dos jaguares, por exemplo. Os xamãs tornam-se jaguares em suas crenças.

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Esta capacidade de transformação é indicativo da semelhança que conecta os humanos ao resto da natureza. A ciência agora confirma que a semelhança humana com a natureza é literalmente verdadeira. A muito tempo atrás , eu tive uma bactéria por herança. As moléculas do meu corpo são cópias das cópias das cópias, voltando no tempo muitos bilhões de anos, de moléculas de DNA contidas em bactérias . Cogumelos, minhocas, girafas e pessoas possuem sobre-transposição de seqüências de DNA. Cinqüenta por cento dos genes contidos em uma banana possuem equivalentes no genoma humano. O que não significa que vocês sejam meio-bananas. Com chimpanzés, a similaridade genética é de 99%. A biologia molecular como um todo é uma demonstração da nossa semelhança para com as demais espécies. Os povos animistas e xamãnicos do mundo têm sido destacados por esse parentesco por milênios, enquanto a biologia contemporânea apenas começou a descobrir sua manifestação física.

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A biologia agora tremúla o duplo helix como sua bandeira, o símbolo de novas curas. Mas este mote é o mais antigo símbolo da vida e cura no mundo. A escada transada, duas serpentes entrelaçadas, o axis mundi, o símbolo dos xamãs nos cinco continentes por milênios.

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A despeito destas convergências, a ciência e o conhecimento indígena distinguem-se. Ao redor do mundo, a população indígenas encontra-se em precárias condições . Na Amazônia, eles obtiveram títulos de terra de extensos territórios, porém, construções de estradas, colonização, derrubadas, extração de petróleo, e a tentação do mercado continuam a assombrá-los. Jovens indígenas amplamente encaram a natureza como uma mentalidade de mercado, rompendo com o entendimento espiritual das plantas e animais. Há um tempo não muito distante, em muitas sociedades indígenas, os xamãs habituavam-se a negociar em suas visões pela liberação da caça com o “dono dos animais”, uma entidade disse desaprovar a caça excessiva e predatória. Mas, hoje em algumas partes da Amazônia, jovens caçadores indígenas têm levado grandes mamíferos à extinção em resposta à demanda de carnes raras nas cidades próximas. Suas aspirações de mercado são tão legitimas como as de qualquer um. Porém, surgir com alternativas se faz necessário, pois, a natureza deve ser preservada em sua diversidade.
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Em áreas de grande biodiversidade tais quais a Amazônia Ocidental, a conservação da natureza requer uma mescla da ciência e do conhecimento indígena. Mas trabalhar na linha de duas formas de conhecimento não é fácil. Há diferenças metodológicas, conceituais, filosóficas, tecnológicas e financeiras entre os dois campos. Para os indígenas e os cientistas conversarem entre si, se faz necessário o desenvolvimento de embasamentos conceituais comuns.

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Uma base comum para o conhecimento humano poderia acomodar muitas formas de saber, e permitir que as mesmas sejam comparadas e utilizadas juntamente. Essa base comum poderia harmonizar controle e respeito, microscópios e consciências modificadas, textos científicos e especialistas orais, complicação e espírito, desprendimento e emoção.

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Aprender a trabalhar com conhecimento indígena é como aprender uma segunda língua. Bicognitivismo, como bilingüismo, é difícil, mas vale, pois leva a outra forma de enxergar o mundo.

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Se a natureza é inteligente, e somos parte da natureza, por que somos tão estúpidos? Porque somos uma espécie jovem. Nós, Homo sapiens sapiens, com nossa fronte chata e queixo pontiagudo, temos aproximadamente 150.000 anos, segundo os registros de fósseis e análises de DNA. São somente 7.000 gerações biológicas, que está próximo a nada para uma espécie. Existiram outros hominídeos antes de nós, os neandertais, por exemplo, com seus crânios de formato oval, frontes afundadas e queixos, e corpos atarracados. Nossas espécies co-habitaram a terra com os neandertais por mais de 100 mil anos. Como nós, os neandertais semearam seu desaparecimento, fizeram instrumentos musicais e produziram eficientes apetrechos de caça. Mas eles não sobreviveram. Nossos ancestrais fizeram sofisticadas armadilhas e desenvolveram instrumentos precisos, não somente de pedra e madeira, mas também de ossos e cifres. Eles transformaram ossos em agulhas, o que permitiu que costurassem roupas, enquanto os neandertais provavelmente careciam da capacidade de fazerem roupas. Isso explica por que eles não sobreviveram à longa era glacial que ocorreu há 100.000 anos. Nossa grande força é a nossa capacidade de adaptação a todos os tipos de circunstâncias. Os descendentes de um pequeno grupo de humanos que deixou a África cerca de 100.000 anos atrás, espalhou-se pelo mundo e o povoou. Do Ártico ao deserto da Austrália e florestas da Amazônia; eles aprenderam à explorar as plantas e animais em cada novo meio que entravam. Os humanos possuem um histórico de longa depredação ecológica perpretada. Espécies que eram fáceis de caçar tenderam à desaparecer rapidamente, após a chegada dos humanos em determinada área. O registro fóssil indica isso claramente em lugares como Madagascar, Nova Zelândia e Austrália. Como leões e lobos, os humanos são predadores sociais. Os leões e lobos possuem presas e garras, nós temos engenhosos conceitos que pomos em prática. Somos uma espécie invasora. Nossa formidável capacidade de adaptação nos torna os mais perigosos dos predadores.

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Bem, temos cabeças grandes. Nossos cérebros triplicaram em volume durante os últimos três milhões de anos. Os primeiros primatas bípedes que foram os precursores da humanidade possuíam cérebros com um terço do tamanho do nosso. Desde então, os cérebros hominídeos não pararam de crescer. Porém, a posição bípede e erecta significava que a pélvis humana deveria estreitar-se, do topo do nosso dorso até a base da coluna entre nossas pernas. Surge o questionamento: como se pode dar a luz à crianças com cérebros grandes ao passo que se possui uma pélvis estreita? Sendo esperto e bípede é uma charada anatômica. As mulheres do mundo pagaram esse preço: nossas espécies possuíram as maiores taxas de mortalidade maternal durante o parto. Jovens humanos requerem muitos anos de ensinamento, educação e compaixão para que seus cérebros alcancem potência total. Os humanos possuem de longe os mais longos períodos de infância e adolescência; os pais humanos mantêm compaixão por mais tempo, em comparação aos pais de outras espécies. Somos formidáveis predadores e temos grandes capacidades de compaixão. Combinamos os contrários; somos criaturas contraditórias.
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Quinze mil anos atrás, nossos ancestrais pintaram na caverna de Lascaux. Foram somente 7000 gerações atrás. Eles não possuíam eletricidade ou qualquer coisa que possuímos hoje. E agora, olhe para nós. Ainda somos a mesma espécie, com a fronte chata e queixo pontiagudo, sem pelos ou rabos primatas, mas agora, equipados de tecnologia e apontando para o cosmos.

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Nossa espécie possui uma trajetória vertiginosa. Para onde estamos direcionados? Qualquer resposta é especulativa. Mas um olhar no gráfico demonstra que estamos em uma fase intermediária. Estamos condenados a mantermo-nos evoluindo, contudo, com o risco de desaparecer. 99,9% de todas as espécies que existiram na terra já desapareceram. Com referência aos dinossauros, que viveram milhões de anos. Nós mesmos nos podamos. Mas se fazemos as coisas certas, somos capazes de nos transformarmos, em semente de biosfera, capazes de transmitir vida. Temos ainda uma jovem ciência tecnológica que nos permite manipular o DNA, e deixar o planeta fisicamente. Ainda possuímos o velho conhecimento, que considera a vida como sendo sagrada, uma chama a ser defendida. Combinar esses dois pólos, conhecimento tecnológico e velho conhecimento, ciência e xamanismo, parece ser necessário para a sobrevivência de nossa espécie.


Fonte: Trabalho Sujo e Rizoma. Leia entrevista de Narby no Ordem Implicada (também em outros idiomas).

A Serpente Cósmica em arte popular do Benin, África

Inovação Social

São do universo indígena 28% das iniciativas sociais inovadoras finalistas do concurso "Experiências em Inovação Social" da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) e a Fundação Kellogg. Após um rigoroso processo de seleção, estes 36 finalistas se destacam entre 2.600 inscrições provenientes de quase todos os países da Região.

Suas atividades são muito diversas, mas têm um denominador comum: a capacidade de se associarem para superar a pobreza e recobrar sua identidade cultural. Buscam uma participação crescente como cidadãos com direitos econômicos, sociais e culturais e como povos, com direitos coletivos.

Seus projetos se destacam devido à criatividade e inovação. São propostas que se apóiam na participação comunitária e podem ser replicadas em outros lugares com baixo custo, facilidade de operação e resultados. Em outras palavras, utilizam estratégias eficientes para melhorar sua qualidade de vida.

Entre 8% e 10 % da população total do continente é indígena, com mais de 400 grupos lingüísticos diferentes. São os mais pobres, têm menor acesso à saúde, educação, serviços básicos e água potável, as condições de vida mais precárias e escasso reconhecimento cultural.

* Decididos a revalorizar sua identidade e a mudar a imagem que a comunidade branca tem deles - associando-os à indigência e marginalidade -, as comunidades de Salta, Jujuy, Formosa, El Chaco e Santa Fé, na Argentina, armaram uma rede de comunicações. Hoje, 135 emissoras transmitem suas notícias, colhidas por correspondentes que vivem nas localidades. (Contato: Jorge Frías, E-mail: coordinacionrci@arnet.com.ar ; Tel.: (54) 3722-421600).

* Em uma reserva da Amazônia peruana, uma comunidade se associa a uma ONG cria um modelo de desenvolvimento sustentável que protege uma zona vulnerável e assegura a geração de renda de seus habitantes. (Contato: Javier Noriega, pronaturaleza@pronaturaleza.org . Tel: (51 65) 23-50-53).

* Uma comunidade de mulheres quechuas criou, com a ajuda de uma freira, uma empresa de tecidos feitos à mão com qualidade de exportação . Hoje vendem sua produção nos Estados Unidos e pensam em ingressar no mercado japonês. (Contato: Victoria Quispe, cip_victoria@yahoo.es ; Tel.: (51 51) 327589 e 322224).

* Uma cooperativa reúne 140 pequenos produtores descendentes de povos originários da Quebrada de Humahuaca, Jujuy, Argentina, para recuperar cultivos andinos. Hoje eles vendem mais de 40 variedades de batatas e diversos tipos de milho. (Contato: javierrodriguez@cauqueva.com.ar , Tel.: (54) 388 499 7185).

* No planalto peruano, um grupo de famílias de recursos escassos desenvolveu, com o apoio de uma ONG, uma tecnologia própria para cultivar trutas a mais de 4.000m de altura , possibilitando o complemento de sua renda. (Contato: Pedro Ramos Jara, iniquillach@hotmail.com , Tel: (51 51) 503690).

* No planalto boliviano, 777 famílias trabalham juntas para erradicar de suas terras uma erva venenosa que mata o gado e invade os cultivos, obrigando-as a emigrar para as cidades. (Contacto: Giannpierre Fiorilo, teléfono (591) 2 528 1288, giannpierre@yahoo.com mailto:giannpierre@yahoo.com).

* O Conselho Geral de Caciques Williche de Chiloé, ilha no sul do Chile, desenvolveu com as autoridades um modelo de gestão compartilhada de saúde que incorpora a cosmovisão indígena e os conhecimentos de medicina ancestrais à saúde moderna. (Contato: Manuel Muñoz Millalonco, ccchilwe@telsur.cl , Tel.: (56 65) 532-660 e 532-661).

* No departamento colombiano de Tolima, se aplica o modelo bicultural de medicina tradicional para os povos pijao e paéz. Eles incentivam as hortas de ervas medicinais, os medicamentos populares e o atendimento médico com a cosmovisão indígena.( Contato: cesarculma@hotmail.com , Tel.: (5798) 2625085).

* No estado do Amazonas, Brasil, uma ONG trabalha com os índios hupdäh, com um modelo de atendimento de saúde e educação que inclui o desenvolvimento de um alfabeto hup, o ensino da leitura e escrita, bem como a formação de agentes de saúde indígenas capazes de dar atendimento básico a enfermidades não conhecidas pela medicina da etnia. (Contato: Marina Machado, sslim@uol.com.br ; Tel.: (55 11) 5539-2968 e 5539-3803).

* Mulheres voluntárias da própria comunidade quechua capacitadas para auxiliar no problema da violência familiar e apoiar as vítimas no processo de denúncia e acompanhamento, trabalham em Cuzco. Elas se unem à comunidade a fim de promover uma mudança para uma vida melhor, envolvendo filhos, esposos, polícia, juizes e professores. (Contato: Rocío Franco, rfranco@idl.org.pe ; Tel.: (51 1) 422-0244).

Maiores informações sobre este concurso em espanhol, inglês, francês e português, bem como material multimídia, na página da CEPAL na internet. Contato: innovación.social@cepal.org . Telefones: (562) 210-2148/2451/2263.

Manënima

Miguel Hilario-Manënima, membro do povo indígena amazônico Shipibo-Konibo do Peru obteve o grau acadêmico de Ph.D. - equivalente ao Doutorado - da Universidade de Stanford, Estados Unidos.

Manënina é a primeira pessoa de sua etnia e talvez também a primeira pessoa indígena amazônica na América Latina em alcançar uma tão alta distinção acadêmica. Ele nasceu em uma canoa quando seus pais viajavam de uma aldeia a outra na Amazônia peruana. Quando era jovem aprendeu a caçar com seu pai e seu avô. Nessa zona organizações missionárias norte-americanas protestantes efetuavam obras de apoio às comunidades indígenas desde os anos quarenta. Miguel tinha doze anos quando teve informação acerca da cultura ocidental ao observar uma foto do contorno de Nova Iorque, em uma revista National Geographic, levada pelos missionários.

Manënima (nome que quer dizer "viajeiro") deixou sua aldeia para aprender espanhol e assistir ao colégio secundário na cidade amazônica de Pucallpa no Peru. Depois de formar-se aos 16 anos viajou a Lima onde sobreviveu comendo restos de alimentos de restaurantes noturnos. Então, um casal de missionários americanos lhe proporcionou trabalho e o ajudou para que estudasse no Seminário Teológico Andino. Posteriormente, conseguiu ganhar uma bolsa para estudar nas Missões e o idioma inglês no Texas, e serviu em alcances humanitários na Romênia, Alemanha e México.

Em 1993 Miguel Hilario viajou para a Califórnia para continuar sua educação, realizando discursos e conferências sobre sua vida e os problemas que enfrentam atualmente as populações indígenas na América Latina. Em 1998, Miguel Hilario-Manënima foi protagonista de manchetes internacionais quando se converteu no primeiro ameríndio admitido à Universidade de Oxford como estudante visitante. Estudou política e economia patrocinado pelo Rotary Club Internacional e o Mansfield College. Obteve um BA em Política e Economia latino-americanas na Universidade Pública de California, Sonoma e tem dois mestrados em Letras da Universidade de Stanford, em Estudos latino-americanos e Ciências Antropológicas.

Leia no San Francisco Chronicle: "Miguel's Mission - A Shipibo-Conibo Indian from the Amazon emerges at Stanfordin pursuit of an education to help his tribe" por Jennie Fitzhugh.

``If we can learn that we indeed have rights, regardless of our ethnic backgrounds, then we will be able to demand our rights at the national level in Peru as well as the international level.''

AMAZONIAN MUSIC: Para adquirir o cd de Miguel Hilario-Manenima, ``Hope,'' envie $15 ao Peruvian Amazon Indian Institute, 1006 Madrone Lane, Petaluma, CA 94952. Contacte o Instituto em (707) 769-3069 ou www.amazontribes.org.

29 de agosto de 2007

Paradoxos

Pintura do acreano Chico da Silva
(Alto Tejo/AC, 1910 - Fortaleza/CE, 1985)


"Inventada pela Europa como um mundo ao lado, a América teve sempre essa tendência, voluntária ou involuntária, de ser a paródia da Europa. Como toda a antiga colónia, a América é necessária à Europa como um espelho. Que o espelho adquira uma perturbadora autonomia, tornando-se deformante, que devolva uma imagem ao mesmo tempo familiar e estranha, é esse o risco ou a fatalidade de toda a procriação ilegítima. O desforço do filho não consiste em ruminar indefinidamente o ressentimento relativo à sua origem, mas em reivindicar a herança e gozá-la livremente, em fazê-la prosperar, acarreando para ela preciosas diferenças linguísticas e culturais."

Stokowski e a música popular brasileira

A Columbia Records lançou as gravações de Stokowski feitas no navio S.S. Uruguay no inicio de 1942 sob o título Native Brazilian Music. Das quarenta músicas gravadas, apenas dezessete viram a luz do dia, em dois álbuns, cada um contendo quatro discos 78-RPM. As notas na contracapa anunciavam:
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Aqui neste álbum da Columbia Records você tem a música autêntica do Brasil... tocada primorosamente por músicos nativos... selecionada e gravada sob a supervisão pessoal de Leopold Stokowski.
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Estas gravações significantes foram feitas durante a turnê do Maestro Stokowski pela América do Sul com a All-American Orchestra. Nas várias paradas da turnê, Dr. Stokowski ouviu a música nativa popular e folclórica do modo como é interpretada pelos músicos de nossos estados Bons Vizinhos. Para a gravação ele escolheu o que achava ser melhor e o mais típico.
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Os planos para estes discos foram feitos quando foram acertados os primeiros acordos para se gravar, exclusivamente na Columbia Masterworks, a All-American Orchestra sob Leopoldo Stokowski. O aclamado solo de flauta de Pixinguinha em “Urubu Malandro” foi uma das muitas perdas. Mas o truncamento não era o único defeito dos álbuns. Apenas seis dos dezessete títulos das músicas escaparam a mutilação na etiqueta dos discos. Dos nomes dos compositores, meros três foram escritos corretamente. Já os intérpretes, eles foram ignorados em sua maioria. No Volume Dois, a ordem das músicas foi trocada. E considerando o zelo de Stokowski pela “mais legítima música nativa brasileira”, as descrições das composições são inadequadas de um modo desapontador.
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Mesmo com todos esses problemas, esses discos merecem o respeito por serem uma das primeiras mostras de música brasileira gravadas. Essa foi primeira gravação de Cartola, encontra-se na faixa 13.
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Para realizar o download das mp3, clique em: Native Brazilian Music - Leopold Stokowski
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Faixas:
Native Brazilian Music, Vol. 1 (C-83)
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1. Macumba de Oxóssi (Donga/José Espinguela)
Zé Espinguela e Grupo do Pai Alufá
Uma macumba em louvor de Oxóssi, orixá da floresta e da caça, sincretizado como São Sebastião no Rio de Janeiro, e como São Jorge na Bahia. Pequenas frases de pergunta e resposta em Yoruba, cantadas por solista masculino e coro feminino acompanhados por uma batucada potente (possivelmente no. 6 na lista de 40 músicas).
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2. Macumba de Iansã (Donga/José Espinguela)
Zé Espinguela e Grupo do Pai Alufá
Uma macumba em louvor de Iansã, orixá feminino da espada de fogo, sincretizada como Santa Bárbara. Solista masculino e coro feminino acompanhados de batucada (não-identificado na lista de 40 músicas).
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3. Ranchinho Desfeito (Donga/De Castro e Souza/David Nasser)
Mauro César
Um Samba-canção simples, cantado no estilo vocal de Orlando Silva e acompanhado pelo conjunto regional de Donga e a excelente flauta de Pixinguinha (no. 25 na lista de 40 músicas).
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4. Caboclo do Mato (Getúlio Marinho da Silva “Amor”)
João da Bahiana e Janir Martins
Corima contendo frases curtas de perguntas masculinas e respostas femininas, improvisos de flauta por Pixinguinha, e o famoso pandeiro de João (no. 14 na lista de 40 músicas).
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5. Seu Mané Luiz (Donga)
José Gonçalves (aka Zé da Zilda) e Janir Martins
Samba humorístico em um dueto de casal, acompanhado pelo regional de Donga com solo de flauta de Pixinguinha e percussão (no. 1 na lista de 40 músicas).
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6. Bambo do Bambu (Donga)
Jararaca e Ratinho
Embolada tipicamente rápida, trava-língua, acompanhada por um regional com o violão de Laurindo de Almeida (no. 17 na lista de 40 músicas).
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7. Sapo no Saco (Jararaca)
Jararaca e Ratinho
Uma clássica embolada veloz, cantada em dueto e acompanhada por um regional, esta foi uma das poucas músicas contidas nos álbuns da Columbia que foram gravadas anteriormente (no. 5 na lista de 40 músicas).
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8. Que Quere Que Quê (João da Bahiana/Donga/ Pixinguinha)
João da Bahiana e Janir Martins
Macumba carnavalesca contendo perguntas masculinas e respostas femininas, com o pandeiro de João e os improvisos de Pixinguinha na flauta. Previamente gravada em 1932 como “Que Querê” com autoria atribuída aos três músicos, esta música provavelmente foi composta apenas por João (no. 15 na lista de 40 músicas).
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Native Brazilian Music, Vol. 2 (C-84)
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1. Zé Barbino (Pixinguinha/Jararaca)
Pixinguinha e Jararaca
Um maracatu com metais e percussão intercalados por duos vocais masculinos. Uma gravação rara de Pixinguinha cantando (no. 20 na lista de 40 músicas).
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2. Tocando pra Você (Luiz Americano)
Luiz Americano
Um choro de três partes [estrutura a-b-a-c-a] com solo de clarineta acompanhado por um regional (no. 11 na lista de 40 músicas).
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3. Passarinho Bateu Asas (Donga)
José Gonçalves (aka Zé da Zilda)
Samba com solo masculino e refrão cantado por um casal, acompanhados pela flauta de Pixinguinha e o regional de Donga. Esta famosa composição havia sido gravada por Francisco Alves em 1928 (no. 4 na lista de 40 músicas).
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4. Pelo Telefone (Donga/Mauro de Almeida)
José Gonçalves (aka Zé da Zilda)
O famoso samba, com solo masculino e coro feminino, a flauta brilhante de Pixinguinha, e o regional de Donga (no. 16 na lista de 40 músicas).
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5. Quem Me Vê Sorrir (Cartola/Carlos Cachaça)
Cartola e coro da Mangueira
Outro clássico do samba cantado por Cartola com as vozes agudas das pastoras da Mangueira, com grunhidos expressivos, Aluísio Dias no violão, e a potente batucada dos percussionistas da Mangueira (no. 24 na lista de 40 músicas).
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6. Teiru/Nozani-Ná (Traditional/Heitor Villa-Lobos)
Quarteto do Coral Orfeão Villa-Lobos
Dois cantos ameríndios, entoadas devagar e deliberadamente por quatro professores do Orfeão Villa-Lobos. “Teiru” é um canto fúnebre para a morte de um cacique, recolhido por Roquete Pinto em 1912. Em 1926, Villa-Lobos tornou-o o segundo de seus Três Poemas Indígenas. “Nozani-Ná” está incluída nas Canções Típicas Brasileiras (1919) de Villa-Lobos. (nos. 39 e 40 na lista de 40 músicas).
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7. Cantiga de Festa (Donga/José Espinguela)
Zé Espinguela e Grupo do Pai Alufá
Corima contendo solo masculino e coro feminino, batucada e palmas (no. 7 na lista de 40 músicas).
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8. Canidé Ioune (Traditional/Heitor Villa-Lobos)
Quarteto do Coral Orfeão Villa-Lobos
Este canto ameríndio, recolhido pelo viajante Jean de Léry em 1553, é o primeiro dos Três Poemas Indígenas, de Villa-Lobos, publicado em 1926. É cantado por quatro professores do Orfeão Villa-Lobos (no. 38 na lista de 40 músicas).
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*capas e mais informações em: http://daniellathompson.com/Texts/Stokowski/Cacando_Stokowski.htm
Fonte: Som Barato

28 de agosto de 2007

Koch-Grünberg nas trilhas de Makunaíma

fotos de Koch-Grünberg

As primeiras coleções expressivas de música brasileira gravada em campo são de 1908 a 1913, feitas pelos antropólogos Wilhelm Kissenberth (1878 - 1944) e Theodor Koch-Grünberg (1872 - 1924), respectivamente, que realizaram pesquisas e coleta de cultura material indígena para o museu de Antropologia de Berlim (Königliches Völkerkundemuseum zu Berlin). Embora tenha feito gravações de música entre os Kaiapó e Karajá, e além de ter reunido uma valiosa coleção de máscaras de dança, a coleção de cilindros de cera do fonógrafo de Kissenberth passou praticamente despercebida na reserva do museu até bem recente. Já outro emissário do museu de Berlim, Theodor Koch-Grünberg, esteve no Brasil por quatro viagens de pesquisa, em 1899, de 1903 a 1905, de 1911 a 1913 e em 1924. Diferente de seu colega Kissenberth, Koch-Grünberg publicou o resultado de suas pesquisas, manteve contato com outros pesquisadores e empenhou-se em realizar o máximo de gravações possível com o fonógrafo, preparado especialmente para a segunda viagem por Erich M. Von Hornbostel.
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Entre o material que Koch-Grünberg coletou no Norte da Amazonia brasileira, encontra-se um grande numero de instrumentos musicais além das gravações que fez entre os índios Makuxi, Taulipan, Tukano, Desana e Yecuanan. Como não era capaz de avaliar todo o material musical indígena, solicitou a Hornbostel que se encarregasse da análise de instrumentos e da transcrição das gravações. O trabalho conjunto elaborado a partir da idéia de Koch-Grünberg, correspondia ao ideal, tal como havia sido formulado por Hornbostel e que dava prioridade à coleta de gravações sonoras mesmo por não musicólogos.
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O primeiro trabalho publicado por Hornbostel sobre o material de Koch-Grünberg foi integrado na monografia do antropólogo „Dois anos enrte os indígenas – viagens no noroeste brasileiro 1903/1905” como capítulo independente. Trata-se do estudo organológico “Algumas flautas de pan do noroeste brasileiro” do vol. 1 da obra de Koch-Grünberg. É um trabalho de pesquisa organológica que reflete de maneira característica uma das questões tidas como básicas pela musicologia comparativa: a comparação de sistemas musicais e, motivado pela psicologia, o problema da afinação de instrumentos de música.
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Dentro deste espírito, Hornbostel voltou-se com especial ênfase à analisar minuciosamente os intervalos entre os diferentes canudos das flautas de pan brasileiras, e, mais tarde, das diversas escalas captadas pelo fonógrafo de Koch-Grünberg. No seu estudo de 1909 já adianta a seguinte conclusão:
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Existe um princípio coerente de afinação dos instrumentos a qual se processa através da entonação dos sons harmônicos que servem sempre de base à afinação do canudo seguinte. (Hornbostel, 1909)
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De especial relevância para a história da musicologia no Brasil, é um artigo publicado por Hornbostel anos mais tarde, “Música dos Makuxi, Taulipan e Yekuanan” baseado nas gravações feitas por Koch-Grünberg, e novamente publicado como capítulo independente, na segunda grande obra deste intitulada “Do Roraima ao Orinoco” (Hornbostel, 1923). Além portanto de uma numerosa coleção de instrumentos musicais provenientes do Brasil, Hornbostel tem a partir de 1913 à mão mais de cem cilindros de cera gravados com música vocal e instrumental dos índios brasileiros, podendo assim realizar uma análise musicológica que a seu ver tinha todas as prerrogativas para trazer resultados relevantes, não somente ao conhecimento da música de povos indígenas brasileiros, mas à disciplina como um todo. Hornbostel realiza análises detalhadas e inéditas com base nestas gravações. Estuda ritmo, tempo, estrutura de melodias indígenas, tanto instrumentais quanto vocais, elementos portanto que jamais poderiam ser desvendados apenas através da análise de instrumentos musicais dos respectivos grupos.
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Assim como a antropologia, a arqueologia e a linguística, a musicologia estava contribuindo para traçar relações amplas que iam de encontro com uma das grandes preocupações da época: a tarefa de participar, à sua maneira, da composição do grande mosaico histórico-cultural da humanidade.
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(In: 100 Anos de Etnomusicologia , texto publicado em A. Lühning (org.): Anais do II Encontro da Associação Brasileira de Etnomusicologia, Salvador: UFBA, 2005).


Em "Vinte e Cinco Anos de Fitzcarraldo - Genocídio e Cinema no Coração das Trevas", Frederico Füllgraf recorda o trabalho pioneiro de Theodor Koch-Grünberg (09/04/1872 -08/10/1924):

Retronarrativa. Amargurado, em 1910 um europeu desabafa em seu diário de campo sobre seu reencontro com o Rio Negro:
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Minha primeira visita foi há menos de cinco anos...
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Quem pisar esta região, agora, não mais encontrará o lugar aprazível que eu conheci. Uma pseudocivilização pestilenta abateu-se sobre o povo moreno que não têm direitos. Feita nuvem de gafanhotos vorazes, a quadrilha desumana de barões da borracha continua avançando. Os colombianos já se instalaram na cabeceira do Kuduyari e carregam consigo meus amigos para os seringais assassinos. Na ordem do dia estão maus-tratos cruéis, brutalidade e assassinato. Os brasileiros do baixo Cairary não são melhores. As aldeias indígenas estão devastadas, suas casas foram reduzidas a cinzas e seus jardins, despojados das mãos que deles cuidam, foram tomados pela selva.
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Assim, uma raça vigorosa, um povo dotado de um magnífico dom, de brilhante intelecto e gentil disposição, serão reduzidos ao nada.
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Recursos humanos capazes de desenvolvimento serão aniquilados pela brutalidade desses modernos bárbaros da civilização”.
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O europeu chamava-se Theodor Koch-Grünberg e iniciava sua terceira expedição brasileira, Do Roraima ao Orinoco (1911-1913). É nesta expedição que K.-Grünberg realiza em Roraima o primeiro filme (documentário) da Amazônia, em parceria com H.Schmidt. Filmado na aldeia de Koimélemong, “Aus dem Leben der Taulipang” (Da vida dos Taurepang, 1911) é o primeiro registro etnográfico gravado em suporte fílmico, com imagens sobre o preparo do milho e da mandioca, a tecelagem do algodão, recreações e danças do ritual Parisherá. São dos registros desta expedição que o turista acidental Mário de Andrade se apropriará para a criação de seu personagem Macunaíma.

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Em 1924 K.-Grünberg retorna ao Brasil para sua última expedição à Amazônia, organizada pelo geógrafo norte-americano Hamilton Rice. É quando, inusitadamente, se cruzam os caminhos do antropólogo e de Silvino Santos, escalado como cinegrafista da missão. Seu objetivo era o levantamento cartográfico e etnográfico das cabeceiras do Rio Branco, entre o Brasil e a Venezuela, com a busca de canais de ligação com a Bacia do Rio Orenoco – missão à qual Alexander Von Humboldt já se aferrara 120 anos antes, descobrindo o Canal de Cassiquiare. Uma feroz epidemia de malária engolfa a Amazônia. Pressionado pela esposa em Manaus, Rice decide atrasar sua partida para Roraima, onde é esperado durante muitos dias por K. Grünberg, que morre subitamente na localidade de Vista Alegre, vitimado pela malária da qual Rice se esconde. O bravo antropólogo é sepultado nas próprias margens do Branco. E aqui arrebenta o filme e “dá um branco” na tela da história: onde estava Silvino naquele momento? E Georg Hübner, o “diretor de produção” de K.-Grünberg, quê fazia? Por que não foi feito nenhum registro do antropólogo em Vista Alegre? O fotógrafo e o cinegrafista estavam com Rice em Manaus? ...

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As coleções etnográficas de K.-Grünberg foram destruídas nos bombardeios de Berlim pelos norte-americanos e britânicos durante a 2a. guerra mundial. Não foi outra a sorte das fotos de Hübner (incluída aí a primeira coleção de fotografia botânica da Amazônia), em grande parte destruídas pelas bombas incendiárias, as famosas blockbusters testadas em Dresden.



Erwin H. Frank, em "Viajar é preciso: Theodor Koch-Grünberg e a Völkerkunde alemã do século XIX" , explicita o método de trabalho de Koch-Grünberg:

Em primeiro lugar, para facilitar a requerida documentação ampla do cotidiano das culturas indígenas, ele experimentou constante e sistematicamente novas técnicas etnográficas como a fotografia, a filmagem e as gravações (de canções e mitos), mesmo sendo difícil manusear "gramofone", além de esboçar figuras e situações com tinta e lápis em seu diário e estimular os índios a realizarem os próprios desenhos também.

Em segundo lugar, de qualquer índio que encontrava em seu caminho e/ou que alguém lhe indicava como membro de uma tribo distante, ele solicitava minimamente uma lista de palavras em sua língua materna, além de informações pormenorizadas sobre a localização exata, o número e o modo de vida de seu grupo. De tal maneira, Koch-Grünberg logrou acumular quantidades deveras impressionantes de dados etnográficos, em geral de excelente qualidade e em um tempo mínimo. Por exemplo, em menos de três meses que permaneceu efetivamente nos lavrados de Roraima, Koch-Grünberg coletou uma imensidade de dados - para não falar dos vários milhares de objetos que ali colecionou - que precisaram, afinal, de cinco pesados volumes para serem apresentados de forma concisa. Mas esses cinco volumes ilustram também a seriedade dos problemas que lhe foram causados por sua adesão acrítica ao projeto científico da Völkerkunde e a sua procura desesperada de novas soluções para eles.

Para especificar: cada um dos cinco volumes pertence a um diferente gênero literário-científico. O primeiro é um diário de viagem, no sentido clássico do termo. O segundo apresenta uma ampla coleção de contos e mitos dos Taulipang, dos Macuxi e dos Wapishana. O terceiro, finalmente, é o que se aproxima mais de uma etnografia dos Taulipang, no sentido pós-malinowskiano, hoje clássico, além de apresentar uma análise musicológica de canções do mesmo povo. O quarto volume é uma contribuição à lingüística comparativa de três dúzias de línguas indígenas distintas, faladas entre os rios Branco e Orenoco. E há ainda um quinto volume que o próprio Koch-Grünberg chamou de Atlas de tipos indígenas - a contribuição (fotográfica) deste autor à antropologia física de sua época. A totalidade dessa obra representa claramente um esforço (já algo desesperado, diria eu) de satisfazer todos os aspectos contraditórios do projeto etnográfico da Volkerkunde numa única elaboração e com igual intensidade e profundidade.

A resenha da última publicação de "De Raraima ao Orinoco" no Brasil (Fundação Editora da UNESP) comenta:

No dia 27 de maio de 1911, o etnógrafo alemão Theodor Koch-Grünberg chega ao porto de Manaus. Suas impressões não são favoráveis: a modernização, com seus longos armazéns e pontões nos quais desembarcam com comodidade os passageiros dos transatlânticos prejudicou o "antes tão encantador panorama da cidade, que se elevava suavemente, cercada de verde fresco". Inicia-se uma série de anotações que apenas terminarão na Venezuela em 1913.

Do Roraima ao Orinoco é, antes de tudo, um relato de viagem pelos profundos da Amazônia escrito em uma prosa leve, de leitura prazerosa. Há passagens pitorescas: "Mönekaí agarrou um pequeno jacaré vivo. Amarramos uma corda em seu pescoço, e agora ele vira de um lado para o outro, como um mastim mordedor, tentando morder a barriga da perna de qualquer um que ouse se aproximar dele". Outras, dão a dimensão dos perigos da aventura: "o barco grande em que Schmidt viaja se enche de água. Não afundou por um triz. Toda a farinha e o sal, o teodolito e outros instrumentos estariam perdidos". Sem esquecer o grande incômodo que representam carrapatos, bichos-do-pé, mosquitos, sarna: "muito mais importuno do que cobras e predadores, que sempre aparecem sozinhos e só incomodam se, acidentalmente, entramos em contato com eles, é um exército de inimigos minúsculos dos quais não podemos nos defender".

E há a importância científica. Na Alemanha, as expedições de Koch-Grünberg chamam a atenção de seus conterrâneos e demais europeus para um potencial de expressão estética até então não compreendido. Além, é claro, do valor intrínseco de seus relatos não só para a etnologia, mas também para a geologia, geografia, lingüística e antropologia. No Brasil, sua obra contribui ainda para uma nova formação do imaginário nacional, levando Mário de Andrade a descortinar a "essência do brasileiro", resultando na obra-prima Macunaíma e na idéia de identidade brasileira como parte de um processo de miscigenação.

Do Roraima ao Orinoco traz ainda um rico acervo de imagens captadas durante a expedição de 1911-1913 e disponibilizadas pela Universidade de Marburg para esta edição brasileira. Fruto da parceria da Editora UNESP com o Instituto Martius-Staden, e patrocínio da MWM International, este lançamento contribui simultaneamente para o fortalecimento dos laços do Brasil com a Alemanha e a divulgação de uma obra valiosa, tanto cultural como cientificamente, que recebe aqui sua mais completa versão em português, o primeiro volume de um total de três a serem publicados.

Além do vídeo-documentário "Nas Trilhas de Makunaíma", uma novidade atual é o lançamento de um cd com gravações históricas de Koch-Grünberg na Amazônia:

ALCURE, Adriana Schneider ; SELMIKEIT, K. . Theodor Koch-Grünberg: gravações em cilindros do Brasil (1911-1913). Berlim: Staatliche Museen zu Berlin - Preussischer Kulturbesitz, 2006. (Tradução/Outra).
Palavras-chave: etnomusicologia.
Grande área: Ciências Humanas / Área: Antropologia.
Referências adicionais: Alemanha/Português; Meio de divulgação: Impresso; Autor traduzido: Vários (Michael Kraus; Julio Mendívil; outros); Título da obra original: Theodor Koch-Grünberg: Walzenaufnahmen aus Brasilien (1911-1913); ISSN/ISBN: BphA-WA 3.
A publicação consiste em um CD de gravações históricas do alemão Theodor Koch-Grünberg, que vem acompanhado de um livreto, que foi traduzido pela autora..

23 de agosto de 2007

Na força mágica do som

Buzina de chifre (Kaiapó)

A Força Mágica da Música Indígena, por João Américo Peret:

Alguns cronistas do descobrimento do Brasil afirmaram que os Tupinambá e Tapuio possuíam santuários onde os "santos" eram maracás antropomorfos e que os seus rituais eram algazarras e macaquices. Apesar das insinuações contrárias aos nativos, uma coisa ficou clara: os silvícolas não só conheciam música, como guardavam certos instrumentos em estúdios.

Atualmente, constatou-se que a força coercitiva das sociedades indígenas emana daquele santuário denominado Casa das Flautas, localizado em amplo terreiro, onde os homens encontram-se diariamente para confraternizar, executar trabalhos manuais, resolver os diversos problemas da comunidade e ensinar aos jovens a arte de viverem harmonia com a natureza.

Flauta de pã (Pareci)

O surgimento desse estúdio não foi ao caso. Tem raízes mitológicas onde um ‘herói civilizador’ sempre aparece criando o ambiente ideal para orientar o homem no sentido de conviver socialmente, diitando as regras através de forças ocultas nos instrumentos musicais e nas músicas.

Flautas de bambú (Bororós)

Como exemplo, há o uso das flautas do Jakuí pelos grupos xinguanos, para atrair o seu herói mítico Karytu, que se incorpora no pajé promovendo curas e a valorização do trabalho coletivo dos homens e garantindo a superioridade machista. Assim fica caracterizado que essa flauta é "perigosa" e precisa ser guardada em cabana própria. Contrapondo-se a esse ritual, as mulheres rebelaram-se, dando origem ao seu Iamuricumã, ritual que valoriza a mulher, que, assim, marca o seu espaço na sociedade.

Antes de entrarmos no mérito da questão, é conveniente demonstrar como os índios percebem o som.

Colar de apito (Bororo)

Do movimento das coisas, nasce o som ihu; ele viaja no vento e chega às orelhas namí, penetra pelo canal auditivo iapyaikwat, no ouvido iapy, e ouve apy. Existem dois sons: o ihu (som qualquer) e o nheeng (linguagem). O Karnayurá utiliza o verbo anup (ouvir) para "aquele que simplesmente escuta" e o verbo apyap "aquele que ouve no sentido mais amplo”.

Entrevistando Menezes Bastos, que concluiu uma pesquisa sobre "o mundo acústico dos Kamayurá", aprendemos que existem cinco tipos de instrumentos: sopros, chocalhos, batedores, zunidores e canto. E o processo de geração instrumental conta com vinte e duas categorias terminais de marakatap (coisas de fazer música).

Buzina de bambú (Kaiapó)

Temos que considerar ainda a parte até técnica de escolha do material: taboca, cabaças, madeiras, sementes, argilas e carapaças de certos animais. A confecção dos instrumentos, a acústica de acordo com o timbre do som, a afinação, etc. são coisas que só especialistas podem conseguir. E, finalmente, chega a vez do Mestre de Música apyap, que elabora as composições, levando em consideração a altura, freqüência e duração dos sons. É admirável que, sem partitura, eles consigam manter os seus rituais e composições desde épocas imemoriáveis.

Os aerótonos maiores que encontramos são a flauta uruá, feita de taboca com três metros de comprimento, composta de dois tubos atados lado a lado e embocadura (sopradas alternadamente, produzem sons semelhantes ao órgão); flauta do jakuí (Kamayurá); flauta milomakií (Yakuná); flauta jurupari (Tukano); flauta bu-bu (Tikuna); flauta surubi (Aruak); flauta kaduké (Munduruku); flauta carriçó (Maués); e flauta iauacanã (Skariana). Com exceção da última, todas elas. são de paxiúba (Iriartea exorriza) ou umbaúba (género Cecropia) - árvores originadas do "corpo" de certos "heróis míticos", que através de suas músicas maravilhosas conseguiam seduzir as mulheres. Essa crença é que levou os homens a construir a Casa das Flautas. Convém notar ainda que essas flautas contém um só tubo.

Buzina de madeira (Erigpactsá)

Flautas menores, sem "influências perigosas", são guardadas sem restrições: flauta bua-xinxin (Juruna), composta de cinco tubos do tipo "órgão?de boca"; flauta iapurutu (lanomama); flauta tsi-hali (Ariti); flauta naketi (Poari); flauta uapawá (Xavante); flauta tsidupu (Xavante); flauta nam-a-oã (Tukano); flauta mayci (Juruna); flauta akaty (Piratapuyo); flauta mahá (Wananá); flauta muka (Siwsí); e flauta aiary (Piratapuyo). Com exceção dajuruna, as outras são de um só tubo, com até trinta centímetros de comprimento, com embocadura, palheta e até cinco orifícios. Algumas chegam em semelhança de som aos clarinetes e aos flautins.

Flautas de ossos são feitas do rádio, da tíbia ou fêmur de certos animais (macaco, veado e onça), aves (gavião, urubu, jaburu e garças), predominando os instrumentos de um só tubo, similares aos de taboca antes mencionados, sendo bem menores.

Flauta de osso de ave (Kaiapó)

Existem as flautas e apitos globulares, feitos de cabacinha, contendo embocadura lateral e dois orifícios (ostentam desenhos em pirogravura e são usados como colares). Outros, ainda, são de sementes, cocos, cerâmica, bainha de flores do coqueiro e madeira escavada.

Quanto às buzinas, elas são feitas de taboca, cabaça e porongo, como a apitimukô (Canela e Kayapó), de taboca com terminal de cauda de tatu-canastra (atualmente, também de chifre bovino); okóne (Kayapó), de taboca recoberta de plumas coloridas; paná (Bororo), composta de até cinco cabaças coladas verticalmente uma sobre a outra; mitaré (Erigpactsá), de madeira escavada em duas faces e coladas com resinas; namá-doxopoá (Tukano), de cabeça de veado contendo embocadura entre os chifres.

Os zunidores são instrumentos cujo som é conseguido pelo deslocamento da peça (um tipo de espátula) presa a um fio e acionada em círculo. Alguns têm formato de peixes e são decorados com pintura e plumas.

Os instrumentos de percussão são os mais variados. De início, o simples bater o pé marca o som e o ritmo nas danças. É a forma mais primitiva e natural. Aí, surgem os maracás, feitos geralmente de cabaças e que são decorados com ranhuras, pirogravuras, plumas e penas coloridas. Outros são feitos de caramujos, ovos de jacaré e ema, bem como de carapaças de tartaruguinhas. Existem, ainda, os maracás tubulares, feitos de taboca e recobertos de esteiras. Os chocalhos em fieira são confeccionados de sementes, cocos, cascos de veado, porco e anta, sendo também usados como cintos e ligas.

Maracá de cabaça (Karajá)

O bastão de ritmo - muruku-malacá (Galibí) - é constituído de uma longa vara com desenhos em relevo e um maracá na extremidade superior, escavado na própria madeira; a tapanauanã (Kamayurá) é um tubo de taboca que é batido num cepo; tutu (Tikuna), um tambor de embaúba (madeira oca) fechado com pele; o katukinaru (Katukina), um tambor de embaúba com pele; pin-pin (Kadwéu), chamado "tambor-de-água", é feito de madeira escavada onde colocam água e fecham com pele, utilizando baqueta de cabaça; o paka-i (Pakas-nova) é modelado com cerâmica e recoberto de látex em tiras de sernambi; o trokano (Tukano e Tikuna), tambor de grande porte, é feito com tronco de árvore bem decorado, ficando suspenso sobre cavaletes e sendo percutido com macetas.

As melodias que todos cantam surgem durante o "sono" dos pajés ou de guerreiros privilegiados. O pajé canta durante as invocações, enquanto vibra no ar o seu maracá, varinha mágica de penas longas, ou sopra baforadas de cachimbo sobre os enfermos.

Existem simpatias para "limpar a voz" que consistem em beber o suco de baxe enodoréu, de porodogeba ou do jowe e rubo. Para não esquecer as canções, basta colocar um raminho de enodoréu à guisa de brinco. Para aprender a cantar com perfeição, pintam uma linha com kiduguru do ouvido ao lábio superior.

Normalmente há uma oposição entre homens e mulheres sobre a execução de certas melodias: os homens cantam e dançam entrelaçados, formando uma coreografia; as mulheres também cantam e dançam entrelaçadas, formando outra coreografia. Raramente estão juntos. Observamos que os índios não fazem uma coisa sem a outra (cantar e dançar). Apenas os pajés têm os seus rituais isoladamente, devido à necessidade de entrar em transe para alcançar o mundo dos espíritos causadores das doenças e conseguir ajuda. Dessa maneira, também, interferem nos fenômenos atmosféricos.

Para os silvícolas a música instrumental e os cânticos representam a força mágica que é o suporte da sociedade. E através dos sons eles alcançarão os tempos mitológicos, onde está a fonte da sabedoria de viver em harmonia com a natureza.

Guizos de sementes (Índios Canela)

Texto e fotografias de João Américo Peret, um dos mais ilustres sertanistas do Brasil. Extraído da Revista Geográfica Universal, Número 129 de Agosto de 1985 (publicada pela extinta Editora Bloch, seu acervo tem sido disponibilizado em outras páginas de cunho cultural, sempre em regime de copyleft).