Muiraquitãs
Em sua análise da rapsódia brasileira "Macunaíma", de Mário de Andrade, Antonio Adolfo da Silva Neto explica em seu ensaio "A mitificação heróica de contrastes nacionais" :
É interessante e extremamente contrastante como Macunaíma desdenha da cultura estrangeira enquanto mais se emaranha a ela. Ele deixou sua consciência numa ilha do rio Uraricoera, que refere-se ao abandono de suas próprias raízes e, a partir da mudança de cor, foi adquirindo aspectos semelhantes aos da cultura européia, que julgava superior à sua, como geralmente todo brasileiro faz – sempre o que vem de fora é considerado melhor.
A muiraquitã perdida pelo herói é o símbolo de sua identidade cultural, a qual ele busca insistentemente em todas as partes da nação, mas não a encontra. Esse amuleto fala também da grande supersticiosidade e misticismo, próprios de nossa gente, que se apega a toda sorte de objetos e seres inanimados, atribuindo-lhes poderes especiais para auxílio e proteção sobre quem os utilize.
O gigante Piaimã, cuja nacionalidade também é mista, é o maior adversário de Macunaíma, exprimindo a violação do Brasil por vários povos, os de perto e os de longe. Ele representa a burguesia e o mercantilismo da pior espécie, com a exploração da mão-de-obra barata e do trabalho escravo, que se justifica pela expressão “comedor de gente”. Foi nas mãos desse estrangeiro, aproveitador de situações e colecionador de pedras (ou de vidas), que acabou indo parar a muiraquitã do herói.
O Brasil, digo, Macunaíma precisava livrar-se do terrível mal, que chegava a ser maior que ele próprio (o grande mal). Há muito custo ele conseguiu derrotar o gigante, mas sua identidade não permaneceu intacta. Mais uma vez a perdeu.
O preço por essa catastrófica perda da identidade cultural foi o que levou o herói à ruína. Esqueceu-se de suas origens e agora pensava como branco. Só pensava nas moças brancas, mesmo quando voltou para sua terra. Ele perdeu a muiraquitã e não conseguiu mais achar a consciência que havia deixado na ilha.
Como sentença por sua descaracterização cultural, por haver abandonado os pilares de sua existência, da mesma forma que enganou, mentiu e traiu, foi traído por Vei, a deusa-sol, que o enganou com a falsa imagem de moças brancas no fundo do rio, às quais ele quis ir ao encontro e acabou morrendo afogado.
É curioso como ele primeiro tomou banho na fonte de uma cultura que não era a sua, e depois, quando chegou ao rio, afogou-se nela. O contraste apresentado entre fonte e rio é que a primeira está para a rasura, a superficialidade, enquanto o segundo sugere a profundidade, o mergulho por completo, que tornou-se fatal para o herói.
Macunaíma, que nunca havia se encontrado com sua verdadeira personalidade, acaba perdendo todas as possibilidades de construir seu caráter, pois negou e tentou despir-se de sua legítima cultura, mas não conseguiu ostentar as vestes de uma outra, e o que é pior, nem soube mais resgatar ou tão pouco valorizar suas raízes, como acontece com inúmeros brasileiros, que há muito perderam seu último resquício de nacionalidade.
A muiraquitã perdida pelo herói é o símbolo de sua identidade cultural, a qual ele busca insistentemente em todas as partes da nação, mas não a encontra. Esse amuleto fala também da grande supersticiosidade e misticismo, próprios de nossa gente, que se apega a toda sorte de objetos e seres inanimados, atribuindo-lhes poderes especiais para auxílio e proteção sobre quem os utilize.
O gigante Piaimã, cuja nacionalidade também é mista, é o maior adversário de Macunaíma, exprimindo a violação do Brasil por vários povos, os de perto e os de longe. Ele representa a burguesia e o mercantilismo da pior espécie, com a exploração da mão-de-obra barata e do trabalho escravo, que se justifica pela expressão “comedor de gente”. Foi nas mãos desse estrangeiro, aproveitador de situações e colecionador de pedras (ou de vidas), que acabou indo parar a muiraquitã do herói.
O Brasil, digo, Macunaíma precisava livrar-se do terrível mal, que chegava a ser maior que ele próprio (o grande mal). Há muito custo ele conseguiu derrotar o gigante, mas sua identidade não permaneceu intacta. Mais uma vez a perdeu.
O preço por essa catastrófica perda da identidade cultural foi o que levou o herói à ruína. Esqueceu-se de suas origens e agora pensava como branco. Só pensava nas moças brancas, mesmo quando voltou para sua terra. Ele perdeu a muiraquitã e não conseguiu mais achar a consciência que havia deixado na ilha.
Como sentença por sua descaracterização cultural, por haver abandonado os pilares de sua existência, da mesma forma que enganou, mentiu e traiu, foi traído por Vei, a deusa-sol, que o enganou com a falsa imagem de moças brancas no fundo do rio, às quais ele quis ir ao encontro e acabou morrendo afogado.
É curioso como ele primeiro tomou banho na fonte de uma cultura que não era a sua, e depois, quando chegou ao rio, afogou-se nela. O contraste apresentado entre fonte e rio é que a primeira está para a rasura, a superficialidade, enquanto o segundo sugere a profundidade, o mergulho por completo, que tornou-se fatal para o herói.
Macunaíma, que nunca havia se encontrado com sua verdadeira personalidade, acaba perdendo todas as possibilidades de construir seu caráter, pois negou e tentou despir-se de sua legítima cultura, mas não conseguiu ostentar as vestes de uma outra, e o que é pior, nem soube mais resgatar ou tão pouco valorizar suas raízes, como acontece com inúmeros brasileiros, que há muito perderam seu último resquício de nacionalidade.
Os muiraquitãs são pedra de diversos formatos à qual se atribuía a força de realizar sonhos na Amazônia. É preciso fazer distinção entre muiraquitã , amuleto de pau, e muiraquitá, pedra de chefe, uma espécie de insígnia de poder. Da junção desses dois elementos, surgiu a "muiraquitã" de nefrite, um silicato natural, uma espécie de jade de cor verde, com poderes de talismã. Artefato originário do baixo Amazonas, segundo uma tradição ainda viva, seria o presente que as Icamiacabas (mulheres guerreiras) davam aos homens Guacaris como lembrança de sua visita. Uma vez por ano, as guerreiras se aproximavam dos jovens índios de tribos vizinhas que, devido ao fato, eram chamados de "esposos de uma noite". Quando partiam, as amazonas ofereciam o amuleto, que dava poderes ao guerreiro, de acordo com o animal desenhado. O rapaz que o recebia acreditava tornar-se forte como a onça bravia, poderoso como a águia e assim por diante... Se nascesse uma criança masculina era entregue aos guerreiros para criá-los, se fosse uma menina ficavam com ela. Naquele dia especial, pouco antes da meia - noite, quando a lua estava quase a pino, dirigiam-se em procissão para o lago, levando nos ombros potes cheios de perfumes que derramavam na água para o banho purificador. À meia-noite mergulhavam no lago e traziam um barro verde, dando formas variadas: de sapo, peixe, tartaruga e outros animais. Mas é a forma de sapo a mais representada por ser a mais original. Se conta que elas os davam aos Guacaris, que traziam pendurados em seu pescoço, enfiados numa trança de cabelos das noivas como um amuleto.
O site Abrasoffa nos explica um pouco mais:
A Lenda do Muiraquitã (amuleto confeccionado em jadeíte, nefrite, ordósia, diorite, estratite ou pedra-cristal), mais de que qualquer outra da região amazônica, se destaca pelo fascínio, pelo mistério e pela controvérsia que envolvem o mineral do qual é comumente feito (jade) e a versão principal de sua origem (da legendária tribo das amazonas), evocando questionamentos entre arqueólogos, historiadores e colecionadores. O artefato possui formas variadas: cilíndricas, antropomórficas e zoomórficas, sendo os mais afamados os de cor verde (jade) e de forma batraquiana (sapo). Mas o muiraquitã também pode ser encontrado em cores de azeitona, leitosa ou escura, dependendo do material empregado em sua confecção, todos com atributos mágicos e terapêuticos, atraindo sorte a seus detentores e curando doenças pelo uso do talismã. A fama e o exotismo do amuleto o tornaram cobiçados desde os primórdios da colonização da Amazônia, nos séculos XVII e XVIII, quando foram encontrados pela primeira vez nas proximidades dos rios Nhamundá e Tapajós. Poucos são os exemplares que podem ser apreciados atualmente, principalmente em sua região originária. Eles estão espalhados pelos principais museus do mundo e em coleções particulares, mas o Museu de Santarém exibe mostra do raro artefato, além de réplicas feitas em cerâmica e outros materiais. (...) Barbosa Rodrigues (Muirakitã, Estudo da Origem Asiática da Civilização Amazônica -- 1889) defende que o amuleto é a mais evidente prova da origem asiática das antigas civilizações amazônicas, pois acreditava que até então, na Região, como no restante do continente americano, não havia ocorrência de jazidas de jade, ou que ele aqui tenha sido trabalhado, o que faz acreditar que os artefatos do mineral pertencem à mesma civilização e origem. Esta teoria apaixonou pesquisadores brasileiros, havendo muita discussão sobre o assunto, em virtude dos muiraquitãs aparecerem sempre desconhecer-se jazidas do mineral (jadeíte) no continente americano. Relatos de Gabriel Soares de Sousa (1558) e Frei Ivo d'Evreux (1613) contradizem a afirmação de Barbosa Rodrigues e revelam a existência de "pedras verdes" nos sertões brasileiros, tese confirmada mais tarde por Simoens da Silva, em sua obra Nephrite in Brazil, apresentando ocorrências do mineral em Amargosa (BA) e peças encontradas em Campinas (SP), Piuí (MG), Pinheiros (RJ), Óbidos (PA) e Olinda (PE).
No Jornal da USP lemos de Sylvia Miguel o artigo "A Vida na Amazônia Pré-Colonial":
Na obra clássica de Mário de Andrade, o muiraquitã ganha inúmeros significados antropológicos dados por estudiosos da literatura brasileira. O talismã que permeia a história de Macunaíma tem origem no objeto sagrado que compõe uma das mais famosas lendas amazônicas, a da tribo das icamiabas. Mulheres guerreiras e sem maridos, chamadas de amazonas pelo colonizador europeu, diz a lenda, habitavam o Baixo Amazonas, nas adjacências dos rios Nhamundá e Trombetas. O amuleto, retirado sob a inspiração de Iaci (lua) do fundo de um lago denominado Espelho da Lua (Iaci-uaruá), era oferecido pelas guerreiras aos índios da aldeia vizinha, os guacaris, logo após acasalarem em noites de lua cheia. Uma versão da fábula diz que os rebentos do sexo masculino nascidos dessa união eram sacrificados. Outra, que eram entregues aos guacaris. As meninas permaneciam com a tribo feminina. O amuleto conferia status e poderes mágicos ao seu possuidor.
Bem pequenos e, por isso mesmo, alvo fácil de roubos e contrabandos, os muiraquitãs, quase sempre confeccionados em rochas esverdeadas, tinham em geral forma de sapos. Mais raramente, podiam ser talhados também em rochas brancas, em formatos de morcegos, peixes e homens. Associados à cerâmica conduri, os muiraquitãs não são exclusivos da região do Baixo Amazonas. Há informações de sua ocorrência na ilha de Marajó, além de Santarém, Alto Tapajós, norte de Manaus e até nas Guianas e ilhas do Caribe, segundo o professor Eduardo Góes Neves, do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP.
“A distribuição de muiraquitãs por uma ampla área indica que as populações amazônicas do início do segundo milênio da era cristã não estavam isoladas, e sim integradas em redes de comércio ou em outros tipos de redes que permitiam o contato entre si”, afirma o professor (...).
Leia também, de Lucienne Chociay, o interessante artigo "Algumas impressões sobre o tema Macunaíma e as Teorias da História".
Um comentário:
agrego aqui aos interessados informações complementares deste texto de Zoe de Camaris, cuja íntegra está disponível em
http://www.blogger.com/feeds/2781438377993048447/posts/default
"A meu ver, existe uma transição entre o tempo do talismã Muiraquitã e o tempo do amuleto Itatuxauá, objeto similar ao Tembetá, transição esta que estaria relacionada à transformação social indicada pelo mito de Jurupary. Não é à toa que Mário de Andrade faz com que Macunaíma transforme a Muiraquitã que lhe foi entregue por Ci em tembetá, assim que a Icamiaba sobe aos céus...
Teodoro Sampaio nos fala de uma peça que representa Yacy, a mãe dos frutos, a Lua; o mês lunar: um ornato feito de um pedaço de concha branca e talhado em forma de crescente . A peça citada é usada unicamente pelos homens, que a trazem pendurada ao pescoço, em uma variação do tembetá, usado tradicionalmente nos lábios. Parece haver também uma relação desta peça com a virilidade masculina, pois o homem que não porta o amuleto seria desprezado pelas mulheres. O brilho do tembetá estaria relacionado aos raios, uma alusão ao "deus Tupã" - uma concepção recente de deus criador, pelo menos para a grande maioria dos povos indígenas, exceção feita aos Guarani.
Alfred Russel Wallace nos descreve o tembetá como o mais valioso, estimado e esquisito ornato do nativo:
Cilindro opaco, de uma rocha esbranquiçada, parecendo mármore, porém de quartzo imperfeitamente cristalizado. Tem de 4 a 8 polegadas de comprimento e uma polegada de diâmetro. São polidas em roda e têm as extremidades achatadas, trabalho esse que exige muita paciência. Em cada uma das extremidades são furadas, e, através desses furos, é inserido um cordão, para conservá-las suspensas ao pescoço. Parece inacreditável que eles possam fazer esses furos em tão dura substância, sem qualquer instrumento de ferro adequado para tal propósito. Dizem os índios que conseguem fazer isso por meio da ponta flexível do broto de bananeira do mato, triturando-se a cavidade com finíssima areia e um pouco de água. Leva alguns anos para ser feito. Todavia, deverá consumir-se um tempo muito mais longo para furar-se a pedra que o tuxáua usa, como símbolo de sua autoridade. Essa pedra é de maior tamanho e fica em sentido transversal sobre o peito. Para esse propósito, é necessário abrir-se o buraco longitudinalmente, de uma extremidade à outra da pedra.
Segundo é informado a Wallace, leva-se duas existências para fazer a pedra do chefe. As pedras são trazidas de longa distância, rio acima, provavelmente bem de perto das cabeceiras do rio, na base dos Andes. Wallace conta que é muito difícil adquirir uma delas, pois tem um valor inestimável para o nativo. É chamada também de muruçú.
Muiraquitã e Itatuxaua, símbolos de poder dos nossos nativos - índices representativos de uma transformação social? Estariam estas peças marcando a mudança de um regime social para outro? Mudanças ideológicas dentro de um determinado grupo podem fundamentar o nascimento de um mito e a criação de um símbolo. E o mito das Amazonas atesta a existência de uma alteração social, de modo notadamente marcante."
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