28 de agosto de 2007

Koch-Grünberg nas trilhas de Makunaíma

fotos de Koch-Grünberg

As primeiras coleções expressivas de música brasileira gravada em campo são de 1908 a 1913, feitas pelos antropólogos Wilhelm Kissenberth (1878 - 1944) e Theodor Koch-Grünberg (1872 - 1924), respectivamente, que realizaram pesquisas e coleta de cultura material indígena para o museu de Antropologia de Berlim (Königliches Völkerkundemuseum zu Berlin). Embora tenha feito gravações de música entre os Kaiapó e Karajá, e além de ter reunido uma valiosa coleção de máscaras de dança, a coleção de cilindros de cera do fonógrafo de Kissenberth passou praticamente despercebida na reserva do museu até bem recente. Já outro emissário do museu de Berlim, Theodor Koch-Grünberg, esteve no Brasil por quatro viagens de pesquisa, em 1899, de 1903 a 1905, de 1911 a 1913 e em 1924. Diferente de seu colega Kissenberth, Koch-Grünberg publicou o resultado de suas pesquisas, manteve contato com outros pesquisadores e empenhou-se em realizar o máximo de gravações possível com o fonógrafo, preparado especialmente para a segunda viagem por Erich M. Von Hornbostel.
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Entre o material que Koch-Grünberg coletou no Norte da Amazonia brasileira, encontra-se um grande numero de instrumentos musicais além das gravações que fez entre os índios Makuxi, Taulipan, Tukano, Desana e Yecuanan. Como não era capaz de avaliar todo o material musical indígena, solicitou a Hornbostel que se encarregasse da análise de instrumentos e da transcrição das gravações. O trabalho conjunto elaborado a partir da idéia de Koch-Grünberg, correspondia ao ideal, tal como havia sido formulado por Hornbostel e que dava prioridade à coleta de gravações sonoras mesmo por não musicólogos.
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O primeiro trabalho publicado por Hornbostel sobre o material de Koch-Grünberg foi integrado na monografia do antropólogo „Dois anos enrte os indígenas – viagens no noroeste brasileiro 1903/1905” como capítulo independente. Trata-se do estudo organológico “Algumas flautas de pan do noroeste brasileiro” do vol. 1 da obra de Koch-Grünberg. É um trabalho de pesquisa organológica que reflete de maneira característica uma das questões tidas como básicas pela musicologia comparativa: a comparação de sistemas musicais e, motivado pela psicologia, o problema da afinação de instrumentos de música.
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Dentro deste espírito, Hornbostel voltou-se com especial ênfase à analisar minuciosamente os intervalos entre os diferentes canudos das flautas de pan brasileiras, e, mais tarde, das diversas escalas captadas pelo fonógrafo de Koch-Grünberg. No seu estudo de 1909 já adianta a seguinte conclusão:
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Existe um princípio coerente de afinação dos instrumentos a qual se processa através da entonação dos sons harmônicos que servem sempre de base à afinação do canudo seguinte. (Hornbostel, 1909)
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De especial relevância para a história da musicologia no Brasil, é um artigo publicado por Hornbostel anos mais tarde, “Música dos Makuxi, Taulipan e Yekuanan” baseado nas gravações feitas por Koch-Grünberg, e novamente publicado como capítulo independente, na segunda grande obra deste intitulada “Do Roraima ao Orinoco” (Hornbostel, 1923). Além portanto de uma numerosa coleção de instrumentos musicais provenientes do Brasil, Hornbostel tem a partir de 1913 à mão mais de cem cilindros de cera gravados com música vocal e instrumental dos índios brasileiros, podendo assim realizar uma análise musicológica que a seu ver tinha todas as prerrogativas para trazer resultados relevantes, não somente ao conhecimento da música de povos indígenas brasileiros, mas à disciplina como um todo. Hornbostel realiza análises detalhadas e inéditas com base nestas gravações. Estuda ritmo, tempo, estrutura de melodias indígenas, tanto instrumentais quanto vocais, elementos portanto que jamais poderiam ser desvendados apenas através da análise de instrumentos musicais dos respectivos grupos.
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Assim como a antropologia, a arqueologia e a linguística, a musicologia estava contribuindo para traçar relações amplas que iam de encontro com uma das grandes preocupações da época: a tarefa de participar, à sua maneira, da composição do grande mosaico histórico-cultural da humanidade.
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(In: 100 Anos de Etnomusicologia , texto publicado em A. Lühning (org.): Anais do II Encontro da Associação Brasileira de Etnomusicologia, Salvador: UFBA, 2005).


Em "Vinte e Cinco Anos de Fitzcarraldo - Genocídio e Cinema no Coração das Trevas", Frederico Füllgraf recorda o trabalho pioneiro de Theodor Koch-Grünberg (09/04/1872 -08/10/1924):

Retronarrativa. Amargurado, em 1910 um europeu desabafa em seu diário de campo sobre seu reencontro com o Rio Negro:
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Minha primeira visita foi há menos de cinco anos...
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Quem pisar esta região, agora, não mais encontrará o lugar aprazível que eu conheci. Uma pseudocivilização pestilenta abateu-se sobre o povo moreno que não têm direitos. Feita nuvem de gafanhotos vorazes, a quadrilha desumana de barões da borracha continua avançando. Os colombianos já se instalaram na cabeceira do Kuduyari e carregam consigo meus amigos para os seringais assassinos. Na ordem do dia estão maus-tratos cruéis, brutalidade e assassinato. Os brasileiros do baixo Cairary não são melhores. As aldeias indígenas estão devastadas, suas casas foram reduzidas a cinzas e seus jardins, despojados das mãos que deles cuidam, foram tomados pela selva.
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Assim, uma raça vigorosa, um povo dotado de um magnífico dom, de brilhante intelecto e gentil disposição, serão reduzidos ao nada.
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Recursos humanos capazes de desenvolvimento serão aniquilados pela brutalidade desses modernos bárbaros da civilização”.
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O europeu chamava-se Theodor Koch-Grünberg e iniciava sua terceira expedição brasileira, Do Roraima ao Orinoco (1911-1913). É nesta expedição que K.-Grünberg realiza em Roraima o primeiro filme (documentário) da Amazônia, em parceria com H.Schmidt. Filmado na aldeia de Koimélemong, “Aus dem Leben der Taulipang” (Da vida dos Taurepang, 1911) é o primeiro registro etnográfico gravado em suporte fílmico, com imagens sobre o preparo do milho e da mandioca, a tecelagem do algodão, recreações e danças do ritual Parisherá. São dos registros desta expedição que o turista acidental Mário de Andrade se apropriará para a criação de seu personagem Macunaíma.

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Em 1924 K.-Grünberg retorna ao Brasil para sua última expedição à Amazônia, organizada pelo geógrafo norte-americano Hamilton Rice. É quando, inusitadamente, se cruzam os caminhos do antropólogo e de Silvino Santos, escalado como cinegrafista da missão. Seu objetivo era o levantamento cartográfico e etnográfico das cabeceiras do Rio Branco, entre o Brasil e a Venezuela, com a busca de canais de ligação com a Bacia do Rio Orenoco – missão à qual Alexander Von Humboldt já se aferrara 120 anos antes, descobrindo o Canal de Cassiquiare. Uma feroz epidemia de malária engolfa a Amazônia. Pressionado pela esposa em Manaus, Rice decide atrasar sua partida para Roraima, onde é esperado durante muitos dias por K. Grünberg, que morre subitamente na localidade de Vista Alegre, vitimado pela malária da qual Rice se esconde. O bravo antropólogo é sepultado nas próprias margens do Branco. E aqui arrebenta o filme e “dá um branco” na tela da história: onde estava Silvino naquele momento? E Georg Hübner, o “diretor de produção” de K.-Grünberg, quê fazia? Por que não foi feito nenhum registro do antropólogo em Vista Alegre? O fotógrafo e o cinegrafista estavam com Rice em Manaus? ...

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As coleções etnográficas de K.-Grünberg foram destruídas nos bombardeios de Berlim pelos norte-americanos e britânicos durante a 2a. guerra mundial. Não foi outra a sorte das fotos de Hübner (incluída aí a primeira coleção de fotografia botânica da Amazônia), em grande parte destruídas pelas bombas incendiárias, as famosas blockbusters testadas em Dresden.



Erwin H. Frank, em "Viajar é preciso: Theodor Koch-Grünberg e a Völkerkunde alemã do século XIX" , explicita o método de trabalho de Koch-Grünberg:

Em primeiro lugar, para facilitar a requerida documentação ampla do cotidiano das culturas indígenas, ele experimentou constante e sistematicamente novas técnicas etnográficas como a fotografia, a filmagem e as gravações (de canções e mitos), mesmo sendo difícil manusear "gramofone", além de esboçar figuras e situações com tinta e lápis em seu diário e estimular os índios a realizarem os próprios desenhos também.

Em segundo lugar, de qualquer índio que encontrava em seu caminho e/ou que alguém lhe indicava como membro de uma tribo distante, ele solicitava minimamente uma lista de palavras em sua língua materna, além de informações pormenorizadas sobre a localização exata, o número e o modo de vida de seu grupo. De tal maneira, Koch-Grünberg logrou acumular quantidades deveras impressionantes de dados etnográficos, em geral de excelente qualidade e em um tempo mínimo. Por exemplo, em menos de três meses que permaneceu efetivamente nos lavrados de Roraima, Koch-Grünberg coletou uma imensidade de dados - para não falar dos vários milhares de objetos que ali colecionou - que precisaram, afinal, de cinco pesados volumes para serem apresentados de forma concisa. Mas esses cinco volumes ilustram também a seriedade dos problemas que lhe foram causados por sua adesão acrítica ao projeto científico da Völkerkunde e a sua procura desesperada de novas soluções para eles.

Para especificar: cada um dos cinco volumes pertence a um diferente gênero literário-científico. O primeiro é um diário de viagem, no sentido clássico do termo. O segundo apresenta uma ampla coleção de contos e mitos dos Taulipang, dos Macuxi e dos Wapishana. O terceiro, finalmente, é o que se aproxima mais de uma etnografia dos Taulipang, no sentido pós-malinowskiano, hoje clássico, além de apresentar uma análise musicológica de canções do mesmo povo. O quarto volume é uma contribuição à lingüística comparativa de três dúzias de línguas indígenas distintas, faladas entre os rios Branco e Orenoco. E há ainda um quinto volume que o próprio Koch-Grünberg chamou de Atlas de tipos indígenas - a contribuição (fotográfica) deste autor à antropologia física de sua época. A totalidade dessa obra representa claramente um esforço (já algo desesperado, diria eu) de satisfazer todos os aspectos contraditórios do projeto etnográfico da Volkerkunde numa única elaboração e com igual intensidade e profundidade.

A resenha da última publicação de "De Raraima ao Orinoco" no Brasil (Fundação Editora da UNESP) comenta:

No dia 27 de maio de 1911, o etnógrafo alemão Theodor Koch-Grünberg chega ao porto de Manaus. Suas impressões não são favoráveis: a modernização, com seus longos armazéns e pontões nos quais desembarcam com comodidade os passageiros dos transatlânticos prejudicou o "antes tão encantador panorama da cidade, que se elevava suavemente, cercada de verde fresco". Inicia-se uma série de anotações que apenas terminarão na Venezuela em 1913.

Do Roraima ao Orinoco é, antes de tudo, um relato de viagem pelos profundos da Amazônia escrito em uma prosa leve, de leitura prazerosa. Há passagens pitorescas: "Mönekaí agarrou um pequeno jacaré vivo. Amarramos uma corda em seu pescoço, e agora ele vira de um lado para o outro, como um mastim mordedor, tentando morder a barriga da perna de qualquer um que ouse se aproximar dele". Outras, dão a dimensão dos perigos da aventura: "o barco grande em que Schmidt viaja se enche de água. Não afundou por um triz. Toda a farinha e o sal, o teodolito e outros instrumentos estariam perdidos". Sem esquecer o grande incômodo que representam carrapatos, bichos-do-pé, mosquitos, sarna: "muito mais importuno do que cobras e predadores, que sempre aparecem sozinhos e só incomodam se, acidentalmente, entramos em contato com eles, é um exército de inimigos minúsculos dos quais não podemos nos defender".

E há a importância científica. Na Alemanha, as expedições de Koch-Grünberg chamam a atenção de seus conterrâneos e demais europeus para um potencial de expressão estética até então não compreendido. Além, é claro, do valor intrínseco de seus relatos não só para a etnologia, mas também para a geologia, geografia, lingüística e antropologia. No Brasil, sua obra contribui ainda para uma nova formação do imaginário nacional, levando Mário de Andrade a descortinar a "essência do brasileiro", resultando na obra-prima Macunaíma e na idéia de identidade brasileira como parte de um processo de miscigenação.

Do Roraima ao Orinoco traz ainda um rico acervo de imagens captadas durante a expedição de 1911-1913 e disponibilizadas pela Universidade de Marburg para esta edição brasileira. Fruto da parceria da Editora UNESP com o Instituto Martius-Staden, e patrocínio da MWM International, este lançamento contribui simultaneamente para o fortalecimento dos laços do Brasil com a Alemanha e a divulgação de uma obra valiosa, tanto cultural como cientificamente, que recebe aqui sua mais completa versão em português, o primeiro volume de um total de três a serem publicados.

Além do vídeo-documentário "Nas Trilhas de Makunaíma", uma novidade atual é o lançamento de um cd com gravações históricas de Koch-Grünberg na Amazônia:

ALCURE, Adriana Schneider ; SELMIKEIT, K. . Theodor Koch-Grünberg: gravações em cilindros do Brasil (1911-1913). Berlim: Staatliche Museen zu Berlin - Preussischer Kulturbesitz, 2006. (Tradução/Outra).
Palavras-chave: etnomusicologia.
Grande área: Ciências Humanas / Área: Antropologia.
Referências adicionais: Alemanha/Português; Meio de divulgação: Impresso; Autor traduzido: Vários (Michael Kraus; Julio Mendívil; outros); Título da obra original: Theodor Koch-Grünberg: Walzenaufnahmen aus Brasilien (1911-1913); ISSN/ISBN: BphA-WA 3.
A publicação consiste em um CD de gravações históricas do alemão Theodor Koch-Grünberg, que vem acompanhado de um livreto, que foi traduzido pela autora..

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