2 de agosto de 2007

Malagrida virou Sete Encruzilhadas no Brasil

O Brasil e seus inusitados sincretismos culturais - eis o relato de como primeiro se manifestou a Doutrina da Umbanda, em 15 de Novembro de 1908:

"Sr.José: Quem é você que ocupa o corpo deste jovem?

O espírito: Eu? Eu sou apenas um caboclo brasileiro.
Sr.José: Você se identifica como caboclo, mas vejo em você restos de vestes clericais.

O espírito: O que você vê em mim, são restos de uma existência anterior. Fui padre, meu nome era
Gabriel Malagrida, acusado de bruxaria fui sacrificado na fogueira da inquisição por haver previsto o terremoto que destruiu Lisboa em 1755. Mas em minha última existência física Deus concedeu-me o privilégio de nascer como um caboclo brasileiro.
Sr.José: E qual é seu nome?
O espírito: Se é preciso que eu tenha um nome, digam que eu sou o CABOCLO DAS SETE ENCRUZILHADAS, pois para mim não existirão caminhos fechados. Venho trazer a Umbanda uma religião que harmonizará as famílias e que há de perdurar até o final dos séculos.

E no desenrolar da conversa Sr.José pergunta ainda se já não existem religiões suficientes, fazendo inclusive menção ao espiritismo.

O espírito: Deus, em sua infinita bondade, estabeleceu na morte, o grande nivelador universal, rico ou pobre poderoso ou humilde, todos tornam-se iguais na morte, mas vocês homens preconceituosos, não contentes em estabelecer diferenças entre os vivos, procuram levar estas mesmas diferenças até mesmo além da barreira da morte. Por que não podem nos visitar estes humildes trabalhadores do espaço, se apesar de não haverem sido pessoas importantes na Terra , também trazem importantes mensagens do além? Porque o não aos caboclos e pretos-velhos? Acaso não foram eles também filhos do mesmo Deus?...Amanhã, na casa onde meu aparelho mora, haverá uma mesa posta a toda e qualquer entidade que queira ou precise se manifestar, independente daquilo que haja sido em vida, todos serão ouvidos, nós aprenderemos com aqueles espíritos que souberem mais e ensinaremos aqueles que souberem menos e a nenhum viraremos as costas a nenhum diremos não, pois esta é à vontade do Pai.
Sr.José: E que nome darão a esta Igreja?
O espírito: Tenda Nossa Senhora da Piedade, pois da mesma forma que Maria ampara nos braços o filho querido, também serão amparados os que se socorrerem da Umbanda."


A Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade encontra-se ainda em atividade no município de Cachoeira de Macacu, região serrana do Rio de Janeiro. O dia 15 de novembro foi instituído como Dia Nacional da Umbanda durante o III Congresso Brasileiro do Espiritismo de Umbanda, em 1973. Nesta data, que passou a fazer parte do calendário umbandista, a maioria dos terreiros comemoram a fundação da Umbanda e rendem homenagem ao caboclo das Sete Encruzilhadas. A Doutrina de Umbanda, além de reinvidicar raiz ameríndia, também se propõe universalista como lemos nesta entrevista:

MIRIM: A palavra Umbanda é um vocábulo sagrado da língua Abanheenga, que era falada pelos integrantes do tronco Tupy. O termo Umbanda, considerado a “Palavra Perdida” de Agartha, foi revelado por Espíritos integrantes da Confraria dos Espíritos Ancestrais.
A VOZ DO ESCRIBA: Quando surgiu a primeira organização ritualística da Umbanda?

MIRIM: A primeira organização ritualística surgiu por volta de 1908, com o médium
Zélio Fernandino de Moraes, tomando o nome inicial de Alabanda e, depois, de Umbanda. Quase 50 anos transcorreram até que, em 1956, o famoso Médium W.W. da Matta e Silva revelou ao público os primeiros aspectos da Doutrina Esotérica de Umbanda marcando a história com o livro Umbanda de Todos Nós. (...) Os espíritos que vêm à Terra através dos médiuns ajudar nos trabalhos procedem — de acordo com os umbandistas — de todos os lugares do planeta, incluindo os que viveram em civilizações extintas. Mesmo que um espírito se “apresente” como um “Preto-Velho” ou um “Caboclo”, ele pode ter sido, em vidas anteriores, egípcio, asteca, hindu, árabe, tibetano ou até esquimó. O próprio Caboclo das Sete Encruzilhadas, fundador da Umbanda, se dizia reencarnação de Gabriel Malagrida — jesuíta que viveu no Brasil Colônia e que foi executado por ordem do Marquês de Pombal.

José Henrique Motta de Oliveira, em "Eis que o caboclo veio à Terra anunciar a Umbanda", explica que: Diamantino Trindade reforça a hipótese de proximidade de Zélio com o Catolicismo, tanto na presença de muitas imagens de santos no altar da Piedade, quanto no habito de homenagear santos católicos ao nomear os templos filiados à Piedade. Cabe lembra também que o Caboclo das Sete Encruzilhadas não era um espírito qualquer, segundo o mito, ele fora o padre jesuíta Gabriel Malagrida em reencarnações anteriores. A presença do Catolicismo no mito da “anunciação” da Umbanda pode ser observada também num quadro onde ora pintado mediunicamente a imagem do Caboclo das Sete Encruzilhadas. A pintura apresenta um indígena no primeiro plano, tendo no plano intermediário um mastro com a bandeira do Brasil tremulando e logo adiante sete caminhos unidos a um único ponto de origem e, no plano de fundo, há elementos relativos à natureza do nosso país. O quadro é simbolicamente riquíssimo, permitindo inúmeras interpretações. O que nos interessa aqui, entretanto, são os sete caminhos que o caboclo tem para percorrer no sentido de propagar a Umbanda. A união destes caminhos, a encruzilhada, lembra-nos a praça de muitas igrejas do interior, que oferece aos fiéis sete opções de trajetos para chegar até o templo. Estes caminhos fazem referência aos sete dons do Espírito Santo: Sabedoria, Entendimento, Conselho, Fortaleza, Ciência, Piedade e Temor, cujos valores, são procurados no culto ao Divino Espírito Santo. A análise desta simbologia nos sugere a interpretação de que o Caboclo das Sete Encruzilhadas seria a manifestação de um “espírito santo”, talvez um anjo, que viria “anunciar” o início de uma religião que falaria aos humildes. Portanto, totalmente distante das interpretações que qualificavam as entidades da Umbanda como demoníacas.

Para entender a presença de Malagrida reminiscente no Brasil no mito fundador da Umbanda cento e cinqüenta anos após sua morte por tortura em Lisboa, temos que ter em conta que este foi, a partir de suas longas caminhadas pelos sertões do Maranhão e Pará até Pernambuco, um santo popular no nordeste brasileiro, com fama de Taumaturgo (milagreiro). Dizia não ser necessário levar a religião aos índios, e sim aos colonizadores, pois via serem estes os verdadeiros desassistidos de uma base cultural humanista. Por querer construir casas de educação no Brasil é que viajou a Lisboa, tornou-se confessor da rainha, e ao prometer voltar lá para seus últimos dias é que afastou-se em definitivo do país que escolheu, tornando-se testemunho do Grande Terremoto de Lisboa, em 1755, que o colocou na posição de desafeto do Marquês de Pombal, pois Malagrida com sua aura (e carisma público) de profeta lançou discursos afirmando haver sido o cataclismo um castigo de Deus à corte portuguesa.

No imaginário Racionalista ou, antes, "Unitarista" contemporâneo, a figura do jesuíta italiano Gabriele Malagrida (1689-1761) soa contraditória, incongruente; ou seja, o que assemelha à "convivência de características incompatíveis entre si" é visto não como (possível) articulação complexa mas o sinal — ou a certeza — de "algo" disparatado.
Continuamos muitas vezes, prisioneiros do "bom senso" ao acreditar que o que "não faz sentido" hoje jamais o fez. O que assim fazemos é construir, ao invés de conceitos e/ou interpretações históricas, figuras do anacrônico ao tomarmos a nós próprios como paradigmas mais ou menos conscientes do que a singularidade histórica diferenciaria. Nosso jesuíta nada tem de "previsível" para uma "expectativa sensata", entre outras razões (sem trocadilho) por seu caráter de visionário, místico, desmedido...

Observemos mais de perto, entretanto, o que ele diz em livro, publicado sob louvores do Santo Ofício, denominado Juízo da verdadeira causa do terremoto que padeceu a corte de Lisboa no primeiro de novembro de 1755.
Malagrida atribui o terremoto a castigo divino:
"Sabe Lisboa, que os únicos destruidores de tantas casas e palácios, assoladores de tantos templos e conventos, homicidas de tantos habitantes, os incêndios devoradores de tantos tesouros não são cometas, não são estrelas, não são vapores ou exalações, não são fenômenos, não são contingências ou causas naturais, mas são unicamente os nossos intoleráveis pecados.".
Pode-se — o que é tão "evidente" quanto já sabido — dizer que tais causas nada tinham a ver com as que certa tradição ilustrada do século XVIII afirmava e que atribuía a forças da natureza a origem de tais fenômenos.

Perseguido e acusado perante a Inquisição, Malagrida terminou supliciado em cortejo público, e se conta que seu coração não se desfez após as chamas da fogueira incinerarem o corpo, e foi assim levado como relíquia para a ilha de Malta. Mais eloqüente contudo parece ter sido aparecer no mito fundador de uma religião espírita autenticamente brasileira como encarnação de um Caboclo avatar!...

O documentário longa-metragem "Malagrida", de Renato Barbieri, enfocou a trajetória material e espiritual do padre jesuíta italiano Gabriel Malagrida (1689-1761), considerando-o uma espécie de precursor de Antonio Conselheiro e Padre Cícero no Nordeste brasileiro. Filmado em Itália, Portugal e Brasil, "Malagrida" tem narrativa envolvente e inegável capricho estético, como é de praxe nos docs de Barbieri. Em entrevista à Revista da Unisinos em 2006, o cineasta Renato Barbieri assim comentou a figura do personagem histórico Malagrida:

IHU On-Line - Como entender Malagrida nos dias de hoje? Qual sua principal herança cultural e de fé?
Renato Barbieri - Malagrida é uma peça importante no processo civilizatório brasileiro, ainda em curso. Era um humanista radical, pioneiro em trabalhos sociais com mulheres excluídas da sociedade brasileira patriarcal. Ele pensou o Brasil estrategicamente, criando diversas obras de infra-estrutura social e educativa. Viveu o Brasil profundamente, fez diversas caminhadas pelo sertão, uma delas de sete mil quilômetros, dialogando, construindo, provocando as pessoas a olharem a vida de um outro modo. Foi ele quem introduziu no Brasil as tradições do “Sagrado Coração” e da “Boa Morte”, muito vivas até hoje. Com o seu amor à verdade e ao outro ele acabou se chocando com as idéias e ideais do Marquês de Pombal. O século XVIII foi talvez o mais cruel no Brasil, em que sua riqueza despontou de forma evidente. E, nesse processo, Malagrida foi uma forte resistência humanista. E acabou sendo vítima, a última fatal, da Inquisição portuguesa. O documentário não deixa de render a ele uma justa homenagem. Não é à toa que Malagrida é também, ao lado de Anchieta, “Apóstolo do Brasil”.

Leia esclarecedor artigo sobre Malagrida no Correio Web. Há também o livro "Padre Malagrida, O missionário popular do Nordeste (1689-1761)", única edição em português sobre o religioso que marcou a história brasileira, o autor é o jesuíta Ilário Govoni . (Coleção Heróis da Fé. Porto Alegre, 1992).

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