7 de agosto de 2007

Reflexões pós-etnocídio

Aqui onde estou: próximo às ruínas da Redução jesuítica de São Miguel Archanjo, hoje o município gaúcho de São Miguel das Missões. A foto retirei de um flog desinformado (como tantas outras webpages que intencionadamente ou não fazem é "desinformar" ao invés de informar) que dizia serem ruínas de "San Antonio", Brasil, perto da fronteira paraguaia. Achei bonita a composição da imagem, mas mais me interessaria ver o artista plástico que retratasse as "Misiones" em ação, ou seja, índias carregando água de algumas fontes tendo ao fundo essa colina com a igreja de pedra, o colégio e o caserio dos guarani. O dito Cruzeiro, ou Cruz Missioneira, símbolo maior da região histórica e especificamente dessa igreja de importância central, sequer procede daqui: foi trazido, porventura, de algum dos outros Sete Povos das Missões como promessa, talvez, de algum fronteiriço já brasileiro, depois que essa terra vermelha e magnética foi assolada pela guerra compartilhada de paulistas portugueses e platenses espanhóis, e das igrejas tudo virou botim.

Antes a Cruz de Lorraine havia sido em Caravaca sido símbolo da luta contra o infiel, ou seja, contra o domínio mouro (islâmico) da península ibérica, portanto era já uma cruz de fronteira: o próprio Brasil foi primeiro batizado em sua homenagem - Vera Cruz, Terra do Contato: nada impede que a cruz usada na primeira missa rezada no Brasil tenha sido essa, uma "cruz de ressurreição" (o estojo contendo três fragmentos do lenho trazido por Santa Helena da Terra Sagrada, sendo que na lenda ou no mito se diz que essa madeira da cruz proveio da árvore que cresceu sobre o túmulo de Adão, que existia em Jerusalém, o que une uma e outra ponta do grande tema da Redenção humana).


"Do mesmo modo, a Cruz, instrumento de suplício ignominioso é para nós cristãos símbolo e penhor de salvação. A "Arbor una nobilis" a mais nobre das árvores é chamada a Cruz na liturgia da Sexta-feira Santa e saudada como o madeiro do qual pendeu a salvação do mundo.

A Cruz de Caravaca, pela forma: com dois braços horizontais é típica Cruz Patriarcal, a denotar sua origem oriental. Foi ao que parece, mesmo originalmente, um relicário cruciforme, contendo um fragmento do verdadeiro lenho, uma relíquia da Santa Cruz de Cristo. É, assim, uma "Vera Cruz".

A devoção à Santa Cruz de Caravaca, no santuário homônimo em Múrcia, na Espanha, e em toda a Europa, esteve muito difundida nas Idades Média e Moderna. Também a narrativa legendária sobre seu transporte maravilhoso, ligado à conversão do Taifa mourisco Ibn Hud, é tradicional."


Eu moro aqui, perto das pobrezinhas das fontes de baixo da colina, mas as árvores já foram tangidas pra mais longe, e é só de pássaro e passarada a conversaiada nos dias de solear (ainda) pois toda uma microfauna específica de solo dessas partes da ribeira do Uruguai faz desse lugar um "altro paese", como diriam os gringos - um outro país dentro do que é o Rio Grande do Sul, e o seu umbigo petrificado que se estende até os baixios já da Mata e de Santa Maria. Eu vim morar aqui já há alguns anos, e esse é o motivo do post personalizado mesmo porque a notícia de mim - "estou ao pé deste Cruzeiro". Cruz de praça que no caso veio para cá trazido em carroças puxadas por oito bois, duas parelhas de quatro, pra descer lá de San Antonio, digamos que a coincidência do engano do fotógrafo veio a propósito, e deixar a cruz jesuítica diante da igreja que mais preservou sua figuração da majestade divina na presença da torre e das fachadas principais na época. O resto foi dizimado. O museu de São Miguel, cuja arquitetura veio de Lúcio Costa quando este rincão foi tombado pela nação, parece o museu de Hiroshima. A minha impressão é a mesma - aqui houve um etnocídio, e eu só consigo enxergá-lo pela figuração padronizada pelo europeu: esqueletos de anjos. É bizarro.


Antes de dar o pontapé inicial neste blog essa foi a atividade que eu tomei iniciativa de interagir a favor da comunidade local: pedi ao Senhor Emilio Santos, meu amigo jardineiro aqui da terra, que coordena uma trilha turística com o acompanhamento de índios guarani (aqui na foto, com Alcides e Sabino), para complementar as "classes" que eles tiveram com o pessoal do Sebrae e ter uma palestra (em espanhol diríamos: "una charla") com os mbyá-guarani que antes acompanhara na trilha e os outros que também vão de dois em dois acompanhar os grupos que queiram vir aqui e fazer esse passeio até um lugar onde três jesuítas paraguaio-espanhóis foram segundo os católicos "martirizados" no choque intercultural desse tempo de mundo. Para saber sobre a trilha "Convivência Guarani" que liga São Miguel ao Santuário do Caaró, veja em Rota Missões as possibilidades.


Bom, para se saber mais sobre o fundador da Companhia de Jesus, Ignacio de Loyola, guerreiro espanhol que aposentou-se criando uma ordem sacerdotal, clique aqui. Para concluir quero dizer, enfim, que diante do resultado de tanta guerra chego a admitir que - os "vegans" podem ter razão em não aceitar parceiros carnívoros - , pois isso também é cultura: ver os mbyá-guarani daqui, como eles vão continuar com sua cultura de caça se a Mãe-Natureza não tem para dar?... O exemplo das tribos do Xingu ainda ecoa:

Conforme o mito tupi, foram justamente Sol e Lua que venceram os jaguares primordiais, instaurando a ordem cósmica no mundo (no microcosmo humano também, portanto, quando o ímpeto civilizador e ordenador do espírito humano supera o ímpeto canibal e de animal predador). Na doença, o indivíduo é, portanto, possuído pelas forças cósmicas que tem parentesco com as forças do caos – forças canibais. São as forças canibais que, vaidosas, querem conquistar o Cosmo pelo devoramento e pelo ódio guerreiro. Sinais e sintomas, como febre, inchações, convulsões, dores, abcessos, etc., são interpretados como ação de mamaés selvagens, que seguem a lógica predatória dos jaguares primordiais, rompendo a ordem cósmica interna – a qual deverá ser restabelecida pelo pajé. Tais forças, dizem os índios do Xingu, regiam a alma dos antigos e atuais “índios bravos”, dos que eram canibais, dos brancos e de tudo que come carne. (...) Surpreendentemente, os atuais índios do Xingu (14 etnias distintas) deixaram de praticar o canibalismo há mais de um século e ainda deixaram de comer carne de caça, alimentando-se de peixe e mandioca, somente. Há décadas, trocaram os ideais bélicos do guerreiro por jogos e disputas intertribais pacíficas. ("Medicina Indígena Brasileira: Comparação entre o Saber dos Pajés e a Medicina Antroposófica", de Wesley Aragão de Moraes)

Para saber mais, leiam este ótimo artigo de Leonardo Sakamoto: "À Sombra do Passado: Índios Guaranis Lutam para Recuperar Terra e Cultura das Missões". Em espanhol é excelente o texto de Bartolomeu Melia, "El Guaraní Reducido", no site Guarani Renda.

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