Miranhas
Em 9 de agosto de 2007 se cumpriram 100 anos desde que o jornalista colombiano Benjamín Saldaña Roca denunciou os chamados "crimes do Putumayo", onde índios de diferentes etnias da região foram escravizados e torturados pelos empresários capitalistas da extração do caucho. Uma dessas tribos, a dos Miranhas, também habita o Brasil, e a respeito dela escreve Priscila Faulhaber:
"O termo Miranha foi empregado na sociedade colonial, como um classificador genérico, que englobaria tribos inimigas, cuja linguagem não seria mutuamente comprensível. A língua Miranha é considerada uma variante muito próxima da língua Bora, que faz parte de um conjunto de línguas estreitamente aparentadas entre si, o qual, por sua vez, integra-se à família à qual pertence a língua Uitoto. A língua Miranha não é utilizada de modo corrente entre os Miranha brasileiros, cuja comunicação é estabelecida em português, ainda que se encontrem no Brasil antigos falantes desta língua e seus descendentes. Eles sabem que existem, na Colômbia, grupos Miranha que mantêm a comunicação em língua Miranha. No Brasil, alimentam um antigo interesse de intercâmbio com os Miranha colombianos, afirmando que desejariam "trazer de lá um professor que pudesse ensinar a língua Miranha" na escola. No entanto, como os conflitos fronteiriços são constitutivos das nacionalidades de brasileiro e colombiano a nível local, acentua-se o caráter contrastivo das identidades de Miranha brasileiro e Miranha colombiano, e isto cria dificuldades para que este tipo de intercâmbio, que não é bem visto pela FUNAI e outros atores locais, venha a se concretizar.
(...) A presença Miranha passou a ser mais sistematicamente observada a partir dos viajantes naturalistas. Nos relatos desses viajantes, os tuxauas (chefes ou "principais") Miranha ficaram conhecidos por vender aos comerciantes de Tefé escravos de "tribos" inimigas e também os seus próprios filhos. Os escravos eram adquiridos para servir como mão-de-obra às famílias de Tefé, e as mulheres, em geral, eram transformadas em concubinas. Os Miranha participavam, assim, das relações mercantis da sociedade colonial, inclusive da "venda de escravos", freqüentemente trocados por ferramentas de trabalho.
Eles, porém, mantinham seu território tradicional, visto como "terra de ninguém", disputada pelos Estados coloniais, como notou Martius no relato de sua viagem de 1820 até a cachoeira de Araraquara, no alto rio Japurá, ou Caquetá, no atual território colombiano. Os Miranha que Martius ali encontrou viviam no que parecia ser seu hábitat tradicional fazia muito tempo. Aos olhos do naturalista, as tribos próximas viviam em constante estado de guerra, e marcavam-se com traços distintivos, pelos quais se reconheciam, ao encontrar-se a sós ou em bandos, em suas caçadas. Segundo Martius, os Miranha desfiguravam o rosto furando as narinas e nela enfiando cilindros de pau ou conchas. Como resultado teriam como traço distintivo o alargamento das narinas. O "trocano", grande tambor talhado em um só tronco de madeira, era utilizado como instrumento de comunicação à distância.
O naturalista destacou o seu costume de comer os inimigos mortos em guerra. Mas começavam a dar preferência a vender os prisioneiros, como lhe revelou um chefe conhecido e temido, não só entre os Miranha, mas em toda área, por sua coragem de escravizar inimigos tanto dentro de sua própria tribo quanto nas vizinhas e pela capacidade de negociá-los com os brancos. Sua supremacia teria sido conquistada neste comércio com os brancos, que ele controlava em nome de todos, e fazia valer entre os companheiros de sua tribo. Por esta habilidade, conforme Martius, os Miranha a ele inconscientemente se submetiam, tornando-se seus "servos e súditos" por "indolência, orgulho e egoismo". Sem esta habilidade do chefe para o trato com os brancos, que adquirira assim alguns hábitos destes últimos, pareceu-lhe cada um querer governar a si mesmo. Martius estranhou que aceitassem esta forma de "representação comercial", julgando ele que ali estaria ausente a "noção de soberania".
Sobreviventes da expansão comercial, a exploração da borracha atingiu duramente os Miranha. Koch-Grünberg, no início do século XX, quando visitou o Japurá e o Apaporis, descreveu aldeias abandonadas por medo dos colombianos, nas quais se noticiava que muitos Miranha tinham sido mortos no seu território tradicional, o rio Cahuinari, no divisor de águas entre o Caquetá e o Putumayo; região disputada então entre Colômbia e Peru. A violência e o terror se difundiram pela Amazônia. Muitos Miranha foram transportados pelo Japurá, para rios como Purus, Juruá, Jutaí, para trabalhar na extração da borracha.
O genocídio cometido pela Casa Arana, companhia gomífera peruana cujos principais acionistas viviam na Inglaterra, foi largamente denunciado na imprensa da época, e documentado pela etnologia. Foram registrados, todavia, atos de resistência Miranha, os quais podem ser cotejados com a sua memória social. O percurso Miranha pelo Japurá é lembrado, em depoimentos de testemunhas indígenas e seus descendentes, como uma fuga dos "colombianos matadores de índios". Segundo estudos colombianos atuais, a rede dos exploradores da mão de obra indígena perpassava todo o campo político colombiano, tendo sido o próprio presidente da Colômbia, Rafael Reyes (1904-1909), acusado de "traição à Pátria" em um processo criminal contra caucheiros colombianos, que com ele travavam ligações e que teriam "arrendado" território considerado colombiano à companhia peruana. Operações mercantis também envolveram o Brasil, conforme registrou-se em documentos consulares depositados no Arquivo Histórico do Itamaraty, no Rio de Janeiro.
Pairava sobre o governo brasileiro a acusação de que era conivente com o "tráfico", ou transporte clandestino, de índios Miranha para o trabalho escravo nos seringais brasileiros. Apesar de denúncias, na Colômbia, de participação do governo brasileiro em negócios escusos, as relações diplomáticas do Peru e da Colômbia com o Brasil eram amistosas, sobretudo pelo acesso ao Atlântico através do rio Amazonas, aberto à navegação internacional desde 1873.
Em 1929, o SPI reconheceu as terras indígenas Méria e Miratu, e demarcou a primeira. Este ato constituía um contra-discurso face às denuncias de que comerciantes "traficavam" escravos Miranha, e à demanda, por parte de colombianos, de seu "repatriamento". Os marcos da fronteira Brasil-Colômbia foram firmados em 1936, menos de uma década depois do reconhecimento dos territórios Miranha. O Estado brasileiro demonstrava reconhecer os direitos de cidadania daqueles que haviam sido transportados para o território brasileiro. No rio Japurá, citado freqüentemente como passagem para negócios não regularizados, o estado do Amazonas limitava-se a subvencionar uma linha regular de navegação a vapor até o porto do Jubará, que era o ponto final do comércio legalizado. (...)"
Os Miranha são freqüentemente citados nos textos do missionário e etnólogo Tastevin, que explorou a região no início do século XX. Recentemente, a importância dos Miranha para a história indígena no Brasil foi destacada por Arnaud (1974) e, no Caquetá, estudada por americanistas europeus (destacando-se Guyot) e colombianos (Pineda Camacho). Desde 1981, Priscila Faulhaber vem se dedicando ao estudo de problemas relacionados a este povo, tema de sua dissertação de mestrado e um dos focos de sua tese de doutorado, ambas publicadas (1987 e 1998), elaborando trabalhos antropológicos tanto de caráter teórico como destinados a uma divulgação mais ampla. Para ler o seu texto completo clique aqui.
Para se ler: "La Casa Arana en el Putumayo - El Caucho y el Proceso Esclavista", de Roberto Pineda Camacho, e sobre a situação atual "El territorio Miraña del parque Cahuinarí: historia de los mirañas, el parque nacional, investigaciones realizadas, el plan de manejo y temas prioritarios de investigación", em formato pdf. Fontes de Informação: Priscila Faulhaber - Museu Paraense Emílio Goeldi - priscila@museu-goeldi.br
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