A machadinha de prata
que pode se assemelhar à desaparecida hacha de plata que deu renome e nome ao Rio da Prata.
Continuando a narrativa do post anterior, a qual faz parte de um dos capítulos de meu livro "O Verdadeiro Inka" (1999):
Mal sabiam os portugueses da expedição de 1511 o que os aguardava ao adentrarem pelo Cabo do Bom Desejo: ao invés de uma passagem oceânica que imaginavam, pois o outro lado do estuário não era visível permitindo-lhes saber que estavam a adentrar em um golfo de água doce, aquele era o sangradouro de uma grande bacia hidrográfica, semelhante àquela que os espanhóis possuíam na linha equatorial. Encontraram um grande rochedo de lobos-marinhos a que chamaram Ilha de Flores em homenagem ao capitão acidental da expedição, e já haviam navegado sessenta milhas rumo a oeste quando, na altura de outro promontório (depois nomeado Punta Colonia), puderam avistar a ribeira sul e compreender afinal que aquela era a embocadura de um grande rio. Manobraram então em direção da outra margem para continuar subindo, quando uma forte tempestade veio a se abater sobre as caravelas, impedindo-lhes o passo. Os imprevistos do destino estavam, mais uma vez, escrevendo a história desta viagem: os ventos da tempestade devolveram as caravelas à ribeira norte exatamente quando os portugueses chegavam à altura em que mais tarde se veria fundada a primeira sede do poder espanhol no oriente da América Meridional, talvez ironicamente (já que os bons ventos que de lá sopraram cortaram o passo aos lusitanos) chamada Santa María de Buenos Aires.
A expedição decidiu procurar um porto e o encontrou a duzentas léguas do Cabo do Bom Desejo, onde foram bem recebidos pela população nativa, a qual declarou já haver conhecido "outros navegantes de barba ruiva no passado", o que nos faz pensar se alguma caravela perdida houvesse antes chegado até lá e nunca mais retornara à Europa, ou mesmo se tratava-se de uma reminiscência ainda mais remota. "Porto dos Patos", como foi chamado, mostrou ser o lugar apropriado para os portugueses permanecerem a fim de se informarem sobre os segredos da terra: contavam os amistosos nativos acerca da existência de ouro e prata no interior do continente, em uma serra coberta de neve, onde vivia um povo que levava adornos desses metais preciosos em formas de placas em volta da fronte e do peito.
Foi esta a primeira notícia que os europeus tiveram da existência do fabuloso Império dos Inkas nas montanhas dos Andes. Pode-se imaginar como os portugueses devem ter ficado impressionados ao sentir a cobiça de semelhantes tesouros fluir em seu sangue qual verdadeira febre. Fizeram-se de amigos e se esforçaram por compreender a linguagem dos nativos a fim de brindarem El-Rey com o maior número de informações possível para então retornarem ali com gente apropriada para a conquista daquele Império desconhecido. Estava levantado o pomo de discórdia que viria a jogar por terra o Tratado de Tordesilhas: um pomo de ouro que os espanhóis alcançaram em Cusco provocando a expansão territorial portuguesa no Brasil.
Os relatos dos nativos citaram um homem que vivera cento e quarenta anos, numa referência direta ao lendário Manco Cápaq, fundador do Império dos Inkas, o que pode comprovar a extensão da influência mantida pelo Tawantinsuyu naqueles últimos séculos, e até mesmo a possibilidade de, apesar do território do Império não alcançar o litoral do Atlântico, existir uma comunicação com os seus povos, de modo que as primeiras incursões dos navegantes europeus no Hemisfério Sul podiam ter sido conhecidas em Cusco. Podem ter falado também do herói Tumi (ou Sumé), que segundo a tradição andara pelo continente fazendo milagres e que os portugueses sempre associariam miticamente ao apóstolo São Tomé, o qual se acreditava estar sepultado na Índia. Tumi também é o nome genérico de uma característica faca cerimonial, com a lâmina abaulada, encontrada nas antigas culturas ligadas ao Império Inca, e é certo que os índios mostraram aos uma lâmina cerimonial em prata que lhes fez crescer os olhos e que entenderam ser uma machadinha. De algum modo trataram de conseguir esse objeto de prata para levar ao Rei de Portugal como prova: é até possível, já que não podiam roubá-la pois isso causaria conflito com os habitantes dali, que o guardião dessa lâmina tenha sido convidado para embarcar com eles para Lisboa a fim de dar pessoalmente suas informações sobre o "Rei branco". O documento de Dresden é explícito ao falar dessa "acha de prata" ("acha" é o nome da lâmina do machado, como se pode ver aqui e na foto de uma "acha" viking). Apelidou-se assim o grande estuário como "Rio da Prata" - em lembrança da lâmina cerimonial indígena oferecida ao deus Tumi.
Interessado em esperar que os nativos providenciassem uma carga de peles de espécies animais desconhecidas na Europa, as quais estes sabiam curtir com requinte utilizando as madeiras da região, em uma tradição local fácil de se compreender devido ao clima frio e úmido imperante, Estevão Flores resolveu aguardar mais um tempo no Porto dos Patos enquanto despachava João de Lisboa à sua frente para providenciar o carregamento de pau-brasil. Este zarpou rumo ao Brasil, completando sua carga no Rio de Janeiro com jovens rapazes e moças nativos, os quais embarcavam de livre e espontânea vontade sem imaginar que seriam usados como escravos nas terras do Nascente. Como Flores tardava já demasiado, e João de Lisboa não queria perder a monção, ou seja, a estação de ventos marítimos favoráveis à travessia do Atlântico, resolveu este alçar velas rumo a Portugal, onde chegou entre outubro e novembro de 1512. Continuou por muito tempo aguardando a chegada do capitão improvisado da expedição para o relato de seus sucessos a D.Manuel I, mas em vão: veio a saber-se que a caravela de Flores fora aprisionada pelos espanhóis.
Aconteceu talvez que a carga de peles se atrasara, ou porventura o nativo proprietário da machadinha não quisesse mais viajar - o fato é que Estevão Flores se atrasou além da conta, chegando com a nau capitânia no Rio de Janeiro bem depois de João de Lisboa haver partido, e ao finalmente alcançar o Cabo de Santo Agostinho encontrara ventos contrários que, em vez de levarem-no à Europa, o empurraram em direção às Antilhas. Lá chegando, os espanhóis vieram a suspeitar do lauto carregamento de peles, que pareciam provenientes de latitudes mais austrais, e enviaram o capitão e sua tripulação para o cárcere de Santo Domingo, onde foram inquiridos e torturados para confessarem que achados levavam ao Rei de Portugal. Foi assim que as autoridades espanholas vieram a saber do “Rio da Prata”, e quando Dom Manuel I pediu pelos meios diplomáticos a liberação de seus súditos prisioneiros, simplesmente os removeram para Sevilha, onde aguardariam a confirmação de que o Rei de Portugal não poderia aproveitar o descobrimento.
João de Lisboa se empenhou pessoalmente em tranqüilizar os espanhóis quanto a isto - em 1514, de volta de outra viagem mercantil ao Brasil, prestaria informações, com riqueza de detalhes sobre os minérios, para um feitor alemão da Ilha da Madeira, o que resultaria no folheto da Biblioteca de Dresden que Alexander von Humboldt divulgou ao meio científico em 1839, “Copia der newer zeytung auss Presillg Landt” (“Cópia da notícia mais recente sobre a terra do Brasil”). Teve o cuidado, entretanto, de omitir a latitude exata do estuário, que situou ao redor dos 40 Graus Sul, o mesmo fazendo ao aportar em Cádiz, na Espanha. Quando o folheto alemão começou a circular, por parte de uma agência de informações mantida em Augsburgo pelos condes de Fugger, já Juan Díaz de Solís recebera as capitulações para viajar até o local dos achados de Flores para assegurar o seu descobrimento para a Espanha.
Foram dez meses de preparativos, e quando Solís partiu, em 8 de outubro de 1515, se dirigiu diretamente para a latitude exata, nomeando o Cabo do Bom Desejo como Cabo de Santa Maria (hoje Punta del Este), mantendo por ironia o nome da Ilha de Flores, e batizando o grande estuário como Rio de Solís, em sua própria homenagem, nome que não perdurou pois a alcunha anterior era naturalmente mais chamativa. Solís morreria assassinado em um confronto com os indígenas da ilha "Martín García", e em setembro de 1516 duas caravelas sobreviventes dessa expedição conseguiram retornar para a Espanha havendo antes carregado pau-brasil nas proximidades do Cabo de Santo Agostinho: Dom Manuel I protestou sobre esse "contrabando", e a querela terminou sendo confortavelmente resolvida em 1517 com a troca de sete prisioneiros espanhóis, havidos por Portugal, por onze prisioneiros portugueses detidos em Sevilha, entre os quais Estevão Flores e seus companheiros. A partir daí Portugal sempre pleiteou ter direitos para estabelecer-se na margem oriental do Rio da Prata, onde chegaram seus pioneiros (e lá terminaram se colocando muito tempo depois com a fundação de Colônia do Sacramento), enquanto Espanha sempre buscou reforçar posições na região, interessada em ali adentrar o continente e encontrar caminho para as riquezas minerais da terra nova. Se alguém quiser ler mais a respeito pode encontrar dados interessantes em "Viaje al Río de la Plata", de Ulrich Schmidel (1567).
Agora: comparem os leitores essa minha narrativa, embasada em inegáveis haveres históricos, com aquilo que os livros de escola ensinam aos estudantes de todo o mundo. Será tarefa inútil reescrever a História? Ou será que a coragem de modificar esses textos não chegará juntamente com a maturidade dessas nações, e até mesmo outros dados até hoje ocultos ou mal-trabalhados não poderão ser encontrados e revelados daí, nos proporcionando um novo entendimento de como se deu o processo de ocupação territórial do continente América desde tempos ainda mais remotos? Nem tudo é ficção!
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