Boas palavras curam
As comunidades em que o sistema ritual não é atualizado, isto é, onde não há Opy [casa de ritual] nem karaí [pajé] e, conseqüentemente, também não há as boas palavras transmitidas através da instituição do conselho, as pessoa ficam à mercê dos perigos de ficarem doentes. Entre estes perigos está o da pessoa tornar-se um “bebedor” (cau). Essa não atualização do sistema ritual significa para os Mbyá-Guarani, que as pessoas esqueceram de Nhanderu que, por isso, não pode mais proteger os seus filhos Mbyá aqui nesta Terra. Este é o motivo espiritual princ ipal para a causa de várias doenças: quando a pessoa, ou mesmo a comunidade se esquece e “desliga” de Deus. Nesse sentido, as bebidas alcoólicas também emergem no discurso Mbyá-Guarani, como uma prova colocada pelos Deuses, para testar a pessoa e saber se ela realmente está ligada aos seres Divinos ou não.
Ao esquecerem-se de Ñanderu e do nhe’ë, a pessoa fica a mercê da influência dos espíritos maléficos: dos anha e dos mboguá. Estes espíritos aproveitam que a pessoa não está ligada a Deus e as influenciam, levando-as a beber e perder o controle sobre si própria. Por outro lado, no próprio ato de beber é possível estabelecer uma relação espiritual com a bebida alcoólica: seja porque o espírito do bebedor se casa com o espírito da bebida alcoólica; ou porque “a canha é o diabo! Não precisa tomar muito pra ficar bêbado, a pessoa toma um pouquinho e se o espírito não gosta, ele vai se afastando devagarinho, daí o espírito dos mortos vão pressionando a pessoa. É por isso que ela fica bêbada e não por causa do álcool”.
“Porque como você tá bebendo, quando você toma, não está pensando lá em cima, porque você ama, você gost a, você se apaixona por beber. Porque essa bebida alcoólica tem espírito! Porque não quer parar? Essa bebida tem espírito, e esse espírito está casado com seu corpo. Esse é o princípio! Quando você sente tonto de tomar bebida alcoólica se sente livre, sente uma coisa de natureza (vontade de fazer sexo), sente muita coisa. Esse espírito quando casa comigo, não quero parar nem um dia, parece que não vai conseguir parar!” (D. Marcelina, Salto do Jacuí).
Se o contato interétnico é a causa externa primeira do fenômeno do uso de bebidas alcoólicas, podemos afirmar que as causas espirituais articuladas às questões de organização interna são a origem interna deste mesmo fenômeno. (...) A conseqüência mais séria considerada pelos Mbyá é o impacto do uso de bebidas alcoólicas sobre a pessoa Mbyá, sobre a sua relação com o nhe’ë e com Nhanderu, impossibilitando-a de realizar-se plenamente na medida que a impede de alcançar a Terra sem Mal.
A pessoa que bebe demais e perde o “sentido”, ultrapassa limites e faz coisas que não deve. Assim, age contra o nhe’ë que, ao não possuir outra alternativa, afasta-se dela, deixando-a sem proteção. Este afastamento se dá de forma gradual, na medida em que o cau age em dissonância com os ensinamentos de Nhanderu. Enquanto isso, o pensamento do “bebedor” torna-se “lavado” pelo álcool e ele vai perdendo o seu “sentimento profundo”, aquele que o liga ao espírito.
Ao estar sem proteção vários perigos ameaçam a pessoa, inclusive o de morrer atropelada por um carro ao atravessar à estrada, isto é, a pessoa não morre porque está bêbada, mas sim porque está sem a proteção de seu ñe’ë. Se o nhe’ë afasta-se da pessoa, os Anha e os mboguá que vagam na terra, aproximam-se e passam a exercer uma influência nefasta, levando o cau (bêbado) a brigar com os seus parentes e o expondo a riscos de acidentar-se. Outro problema sério que o uso de bebidas alcoólicas pode trazer à pessoa que bebe, é fazer com que ela passe a ter uma vida sexual desregrada, já que o nhe’ë já se afastou e o seu pensamento está direcionado para o sexo. Por um lado, é o perigo da pessoa quebrar as regras que proíbem a relação sexual entre membros do próprio grupo; por outro, é levar a pessoa a ultrapassar as fronteiras étnicas e cosmológicas existentes entre o mundo Mbyá e o “mundo dos brancos”, levando o Mbyá a relacionar-se sexualmente com o branco.
Tanto na primeira situação quanto na segunda, os filhos que porventura venham a ser gerados nestas relações, idealmente, não deveriam ser nem batizados e nem atendidos pelo karaí em casos de doença, porque são mestiças.
“(...) não significa que o karaí não sabe... Karaí sabe, mas ele não é pode tratar essa parte! Quando o karaí trabalha na Opy é muito delicado! Karaí tem que se cuidar! Não é que não quer tratar ou porque quer jogar a pessoa... É que ele que não quer sair mal, prejudicado, entende? Porque se eu sou karaí, comparação, e se ele não tem pai, que é prejudicação? Porque Deus não permite colocar o nome Guarani! Porque ai não tem uma direção. Porque eu sou Karaí, né... Sou filho do Karaí; e ele é Verá então são filho de Tupã, digamos assim. Então, ele não pode receber esse nome! Ele pode receber mas negativo. Se tem quatro, cinco pai o karaí não pode trabalhar! Porque não sabe qual é o nome! E depois, o que que vem ali? Por fora vem assim: se coloca um nome e se ele não tá criando, ai o pai vai falar: “porque eu levei no karaí, karaí fez isto e isto e a criança tá sofrendo?” Porque não sabe qual a doença! Esse que quero dizer. Então isso, tudo isso é uma coisa, uma complicação muito séria. E isso porque que acontece? Por causa da bebida! Porque o álcool circula muito no corpo e manda fazer qualquer coisa! (...) Não é porque não quer... Por isso pro karaí muito difícil de trabalhar com questão de criança mestiço”. (Felipe Brizuela)
Aqui chegamos à importante relação responsável por manter a saúde Mbyá-Guarani: nhe’ë, nome e pessoa. Ao não possuir pai ou mesmo se a criança for filho de branco, ela está impossibilitada de ter um nome guarani. Se ela não possui nome é porque não apresenta nhe’ë, e assim não pode beneficiar-se dos serviços do karaí: é uma não-pessoa. Este ser não está ligado a Deus, vive somente porque existe uma “energia no corpo”, que ao morrer transformar-se-á em mboguá. Alias, o seu destino é a morte, já que este ser não conta com a proteção divina.
Além disso, não podemos nos esquecer das demais patologias que estão associadas ao consumo excessivo de bebidas alcoólicas e que podem ser potencializadas pela cultura do beber vigente entre os Mbyá-Guarani: desnutrição infantil, diabete, tuberculose, síndrome fetal alcoólica, DST-AIDS. A experiência da doença desencadeada pelo uso abusivo de bebidas alcoólicas, que tem sua causa maior no “mundo do branco” responsável pela “fabricação da canha”, atua sobre a pessoa Mbyá-Guarani em sua totalidade. Nesse sentido, acessa níveis distintos de ação e interpretação que emergem a partir de um pano de fundo cosmológico - a concepção dualista da alma Mbyá-Guarani e sua relação com o cosmos. O beber faz parte do teko achÿ – produto do modo imperfeito do viver – e o constrói; ao mesmo tempo, leva ao afastamento do nhe’ë –espírito divino.
Mas ao mesmo tempo a prática do beber Mbyá também incorpora elementos e práticas provenientes do contato interétnica e nesse sentido forma uma cultura do contato específica: a cultura do beber Mbyá-Gua rani. Podemos afirmar que, enquanto os rituais na Opy levam a um estado de consciência agregador do cosmos, através de símbolos religiosos e técnicas corporais específicas; os rituais realizados dentro de uma “cultura do beber” – festas de branco: bailes, jogos de futebol e jogos de carta – desencadeiam um estado de consciência desagregador do mundo, pois rompe com as regras tradicionais colocadas pela cultura. Enquanto o primeiro mantém a pessoa ligada ao nhe’ë, direcionando e concentrando os seus pensamentos em Nhanderu; as bebidas alcoólicas, direcionam o pensamento da pessoa para o sexo, sendo o motor da violência, da desestruturação familiar e comunitária.
Enquanto no primeiro caso as pessoas colocam-se sobre a proteção da divindade prevenindo-se das doenças; no segundo, elas ultrapassam limites cosmológicos ficando sem a proteção e sem a força de seu espírito divino e de Deus. Enquanto o canto e a dança realizados na Opy, ensinam o caminho pelo qual a pessoa deve manter-se ligada ao seu espírito divino, fonte de boa saúde; as bebidas alcoólicas direcionam e abrem o caminho para os mboguá e para os aña que aproximam-se do bebedor levando-o à doença e à morte.
Enfim, como podemos perceber a incidência do uso de bebidas alcoólicas entre os Mbyá-Guarani aumenta, na medida em que os fatores necessários à manutenção do sistema cultural (nhande rekó) – terra, Opy e karaí – estão ausentes.
Leia ainda em pdf a tese “Selvagens bebedeiras”, de João Azevedo Fernandes.
O CIMI brasileiro também divulga a situação dos Mbyá Guarani na Argentina: “Em Misiones, uma província do nordeste da Argentina, há 74 comunidades e uma população total, aproximada, de 3.000 pessoas. Sua cultura é tão rica quanto a biodiversidade da floresta Paranaense que sempre foi utilizada e protegida. Duas dessas comunidades, Tekoa Yma e Tekoa Kapi’i Yvate, resumem a difícil luta dos Mbyá Guarani por preservar sua identidade e continuar morando na floresta. Com umas 20 famílias, seu relacionamento com a sociedade ocidental começa a ser importante em 1995. Como em muitas outras comunidades indígenas, o maior bastião da independência e resguardo cultural está nas suas mulheres, e no Opygua (sacerdote) de Tekoa Yma, Artemio Benítez. Eles seguem lutando para que seu isolamento voluntário dos yerua (brancos) seja compreendido e respeitado. Mas a indústria madeireira, as motosserras e a insensibilidade do governo de Misiones seguem assediando-os. Atualmente moram dentro da Reserva da Biosfera de Yabotí, de onde eles obtêm seus alimentos, plantas medicinais e materiais de construção de um mosaico de ambientes da floresta Paranaense com 6.500 hectares de superficie. Lamentavelmente seu território coincide com os chamados "Lote 8" e “Lote 7” considerados “propriedade privada” por seus atuais possuidores, a empresa "Moconá Forestal S.A., e Marta Harriet. Há décadas vem se registrando em Misiones uma batalha desigual entre estas duas estratégias de vida. Por uma parte estão as comunidades Mbya, que são os habitantes mais antigos do território. Várias de suas comunidades seguem conservando uma estratégia de cadeia alimentar longa. São caçadores, agricultores e pescadores, com uma prática agrícola deliberadamente reduzida. Por outra parte, estão as comunidades brancas e de origem européia que entraram muito recentemente na floresta Paranaense. Estes grupos trouxeram uma estratégia produtiva de cadeia curta, totalmente diferente da praticada pelos Mbyá. Em vez de conviver com o monte, necessitavam superficies sem floresta para colocar suas espécies protegidas. As comunidades Mbya se integraram à Floresta Paranaense há mais de 3.000 anos sem desenvolver a noção de propriedade privada que foi adotada pelas populações brancas de ingresso recente (século XVI em diante). O que aconteceu objetivamente é que seu "território total" foi invadido a partir do século XVI por grupos brancos, na sua maioria de origem européia, que tinham estratégias de apropriacão da terra e de produção totalmente diferentes. Isto explica a rápida desaparição da floresta subtropical, o estabelecimento de sistemas agroprodutivos de cadeia curta e a multiplicação de assentamentos urbanos persistentes. Enquanto os brancos se apropriavam do espácio "fixando" territórios de propriedade privada, a expulsão dos Mbyá foi gerando sua incorporação marginal aos assentamentos brancos, e menores possibilidades de vida tradicional para aqueles que ainda moram na floresta Paranaense, como Yabotí. Neste ambiente, reconhecido pela UNESCO como Reserva da Biosfera, continua o saque legal e ilegal de seus recursos. Isto tem reduzido em forma grave e em alguns casos irreversível a biodiversidade local, e as possibilidades que tinham os Mbya de se manterem únicamente com a floresta. Para muitos brancos o sucesso de uma cultura se mede pela grandiosidade dos edifícios e objetos que se produzem, e pelo tempo que perduram. Para a natureza, o sucesso se mede pela quantidade de tempo que tem vivido uma população como os Mbyá na floresta sem a floresta e os próprios Mbya desaparecerem. Há povos cuja herança é quase imaterial, e não por isso são “menos evoluidos” ou “menos desenvolvidos”. São povos e culturas que têm conseguido o que muitas de nossas civilizações tentam e não conseguem, isto é, adaptar- se ao ambiente e a si próprias. As comunidades Mbyá de Tekoa Yma e Tekoa Kapi’i Yvate têm direito natural a seguir morando onde hoje moram por dois motivos fundamentais: primeiro, porque a superficie que ocupam é a que necessita um povo caçador, pescador, agricultor e com agricultura de pequena escala, e segundo, porque essa superficie é parte do território móvel que durante séculos utilizaram seus antepassados. Os povos que mais direito têm à “propriedade” da floresta são aqueles que durante séculos moraram como parte dela sem necessidade de serem seus donos”.
O texto acima é de Raúl Montenegro, FUNAM, Prêmio Global 500 da ONU, extraído de: “El silencioso genocidio de los Mbya Guaraní en Argentina - La lucha de las cadenas alimentarias cortas contra las cadenas alimentarias largas”.
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