Wounded Knee, 1973
Além do famoso protesto de Marlon Brando ao recusar o Oscar daquele ano e enviar em seu lugar uma atriz mexicana vestida de apache para denunciar as condições em que estavam os índios sitiados em Wounded Knee e o racismo norte-americano expressado na indústria cinematográfica de Hollywood, temos também o depoimento de Pedro Bissonette no julgamento dos dirigentes do movimento em 27 de junho de 1973: “Defenderei os meus irmãos e irmãs. Direi a verdade porque fomos a Wounded Knee. Lutarei pelo meu povo. Viverei por eles e se para deter as atrocidades de que são vítimas os Lakota da reserva de Pine Ridge tenho que entregar a vida, estou nisto para morrer também”. Três meses mais tarde, Bissonette seria assassinado pela polícia num quartel da mesma reserva de Pine Ridge
Transcreveremos, por sua importância, tudo o que narra Carlos Millahual dos acontecimentos em Wounded Knee no ano de 1973:
Após a matança de Wounded Knee ocorrida no Inverno de 1890, de crianças, mulheres e velhos, já no fim da derrota militar dos Lakota (também conhecidos por Sioux), que lutaram heróica e tenazmente, sob a direção de chefes famosos, “Cavalo Louco” e “Touro Sentado”, mais tarde assassinados, (...) todos os povos índios subjugados foram confinados em campos de concentração, eufimisticamente designados por “reservas”. Durante os cem anos seguintes, os descendentes dos heróicos guerreiros Lakota foram obrigados a dedicar-se à agricultura e sujeitos a uma assimilação forçada, considerados então “cidadãos norte-americanos”. Esta cidadania traduzia-se pela separação, desde tenra idade, das crianças dos pais, pela proibição de falarem a sua língua de origem ou de procederem a cerimónias religiosas tradicionais, como a “Dança do Sol”, e missionários cristãos cumpriam o dever de converter os índios ao evangelho enquanto que os “conselhos tribais” eram dominados politicamente pelo governo.
Como consequências deste estado de coisas a revolta tinha que eclodir e foi o que aconteceu na Primavera de 1973. A esta época, a esperança de vida dos índios da reserva de Pine Ridge era de 46 anos, as taxas de alcoolismo e de suicídio eram altíssimas, só dentro desta reserva havia 137 igrejas cristãs (uma para cada 100 habitantes!) e o desemprego atingia os 54%, sendo a maioria dos postos de trabalho pertencentes ao governo federal e ao conselho tribal e mais de um terço da população dependia da assistência pública, ou seja, directamente do governo. Só metade das terras da reserva pertencia aos Lakota e o governo federal preparava secretamente uma nova campanha de usurpação de terras devido ao facto de se ter encontrado, nas Black Hills e na própria reserva de Pine Ridge, enormes reservas de urânio. O governo americano possuía para esta região um plano grandioso de um gigantesco parque industrial, instalação de uma dezena de reactores nucleares e exploração de catorze minas de urânio.
A reorganização do povo Lakota aconteceu no meio da luta contra a guerra do Vietname, durante o fortalecimento dos direitos civis e a participação política de poderosos movimentos sociais, como o movimento de libertação negra surgido nos finais dos anos 60 e liderado pelo partido dos Panteras Negras de Malcolm X. Em 1968 e inspirado nos Panteras Negras, formou-se o Movimento Índio Americano (AIM), no início, composto principalmente por indígenas dos ghettos urbanos, mais tarde, encontraria raízes no interior das reservas, organizando comités de segurança e de auto-defesa para enfrentar a violência racista da polícia e dos tribunais. No AIM participavam maioritariamente dirigentes Lakota, cujos propósitos eram unir os diferentes povos indíos americanos num único movimento emancipador. A ação da AIM revestiu uma importância fundamental na condução e desenrolar da luta, quer na sua própria preparação, com a ocupação da ilha de Alcatraz na Baía de S. Francisco durante 19 meses, ocupação do monte Rushmore, realização do “dia de Luto”, celebrado em Plymouth Rock, ou da histórica Caravana dos Tratados Violados até Washington, que terminou com a tomada dos edifícios do Departamento dos Assuntos Indígenas (BIA) durante algumas semanas.
Os acontecimentos da Primavera de 1973 foram antecedidos pelos protestos levados a cabo pela OSCRO (Organização dos Direitos Civis dos Sioux Oglala) e pelos militantes da AMI contra os atropelos dos GOON's (Guardiães da Nação Oglala), tropa de choque criada pelo governo americano para proteger o fantoche por si nomeado para o conselho tribal de Pine Ridge, Dick Wilson, que tinha contra si os próprios anciãos e chefes tradicionais. Em 27 de Fevereiro, os índios mobilizaram uma caravana de 200 veículos que, viajando de noite, dirigiram-se ao Santuário de Wounded Knee a fim de apresentarem aos representantes governamentais uma declaração em que solicitavam uma audiência ao governo federal para discutir a vigência do tratado de Fort Laramie de 1868 e exigiam uma investigação judicial aos múltiplos assassínios cometidos contra dirigentes índios e da responsabilidade do BIA e do traidor Dick Wilson. O governo respondeu com mais de meio milhar de polícias, 17 carros de combate, 12 lançadores de granadas, helicópteros e aviões Phantom, operação comandada pelo general Alexander Haig, mais tarde secretário-geral da NATO.
Perante o cerco, os manifestantes, escavaram trincheiras, estabeleceram o seu sistema de comunicações e armaram-se como puderam, pistolas de calibre 22, espingardas de caça, espingardas M-16 e uma AK-47, recordação do Vietname de um veterano de guerra, aprovisionaram-se de munições, comida e medicamentos. O cerco foi duro, durante os primeiros 70 dias, os tiroteios com as forças policiais, dispostas a cerca de 2 quilómetros de distância, foram constantes. Durante uma só noite, foram despejadas sobre os sitiados mais de 20 mil balas.
Mais tarde um Lakota recordou: “Pela primeira vez, o povo Lakota Oglala pôde organizar-se de acordo com os antigos valores espirituais tradicionais. A vida dos indígenas é a sua espiritualidade. Éramos livres! Era a primeira vez que tínhamos liberdade... Por 71 dias o povo indígena mandou. Homens e mulheres trabalharam lado a lado na cozinha, nos bunkers, nas patrulhas, no hospital e nas escolas e nas constantes negociações com o governo” . Negociações que o governo sempre recusou.
A 4 de Maio de 1973 a Casa Branca aceita uma reunião com os dirigentes do povo Lakota Oglala para se discutir finalmente o tratado de Fort Laramie, com a condição dos ocupantes entregarem as armas a abandonarem Wounded Knee. A 10 de Maio, centenas de índios abandonam a ocupação durante a noite, mas levam consigo todas as armas. No dia 31 do mesmo mês, dia para a reunião, centenas de indígenas, militantes e dirigentes de AMI esperam os representantes da Casa Branca em Pine Ridge, recebem então uma carta, entregue por um auxiliar de Nixon, que reza o seguinte : “Os dias de fazer tratados com os índios terminaram em 1871, faz 102 anos...” . Mais uma vez o governo americano falta à palavra dada. Nem o BIA foi investigado nem Dick Wilson e a sua tropa de mercenários foram submetidos a julgamento, como o governo ainda chegara a prometer. Em contrapartida, mais de 700 índios foram acusadas de “conspiração” e de “terrorismo”.
Durante os três anos seguintes, 69 membros e partidários de AIM são assassinados em Pine Ridge. As forças policiais fizeram mais de 300 atentados e tiroteios, no meio desta luta, Leonard Peltier, dirigente do AIM, foi falsamente acusado pelo governo de ter morto um agente do FBI. Peltier é, conjuntamente com Mumia Abu-Jamal, o mais conhecido e antigo prisioneiro político em solo norte-americano. Durante o cerco, os destacados dirigentes índios, Buddy Lamont e o apache Frank Clearwater, foram assassinados.
“Queriam meter-nos na prisão, levar-nos a tribunal, condenar-nos a muitos anos de prisão. Queriam infundir-nos medo. Contudo, não nos deixamos assustar pelas ameaças do FBI. Não nos metiam medo, porque já tínhamos estado nas suas reservas penais há muitos anos...”, relataria mais tarde Dennis Bank, um dos dirigentes do Movimento Índio Americano.
Durante cem anos, Wounded Knee foi um símbolo dos horríveis massacres perpetrados pela cavalaria norte-americana contra os povos índios americanos. Porém, em 1973, Wounded Knee tornou-se num símbolo de algo mais: fez despertar e mobilizou milhões de pessoas em todo o mundo. Simpatizantes de mais de 60 nações Índias americanas ofereceram-se para as barricadas, unindo-se aos seus irmãos Lakota contra o cerco policial. Muitos voluntários arriscaram a vida transportando para os sitiados alimentos e medicamentos, atravessando, a pé e de carro, as montanhas para se unirem à luta, dos quais muitos eram combatentes veteranos da guerra do Vietname. De todo o mundo chegaram telegramas e mensagens de apoio e por todos os Estados Unidos milhares de manifestantes expressarem a sua profunda solidariedade, o que impediu que a Casa Branca lançasse sobre os revoltosos um ataque militar de envergadura, que inevitavelmente seria mais um massacre. Transcorridos 30 anos, a ocupação histórica de Wounded Knee pelo povo Lakota Oglala mantém-se como um poderoso símbolo de esperança para a luta de todos os povos índios pela sua liberdade e pelo seu território".
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