Os "índios negros" e sua identidade cultural
Uma questão pouco conhecida é a da luta pela identidade cultural dos ameríndios de origem inter-étnica, em especial a dos que são descendentes da união entre ex-escravos negros e nativos.
Segundo o Diário de Notícias, os índios cherokees aprovaram em março de 2007 a expulsão dos descendentes de escravos negros da sua tribo. Com uma maioria de 77% dos votos, os membros da segunda maior tribo dos EUA, depois dos navajos, optaram pela revisão da Constituição tribal, de modo a limitar a cidadania apenas a índios puros. Mas, enquanto os defensores desta medida afirmam que apenas os "verdadeiros cherokees" têm o direito de decidir quem pertence à tribo, os seus oponentes consideraram esta decisão racista. Os cherokees adotam assim a velha máxima sulista de que basta uma gota de sangue negro para que qualquer indivíduo seja racialmente classificado como negro. Muitos vêem neste escrutínio apenas uma forma de limitar o acesso dos negros aos vantagens fiscais e subsídios reservados aos membros da Nação Cherokee. Com mais de 250 mil membros e um forte crescimento demográfico, os cherokees, tal como todas as tribos oficialmente reconhecidas pelo Governo dos Estados Unidos, recebem subsídios federais e beneficiam, nas zonas tribais, de assistência médica e de apoios à habitação e educação. Até à Guerra Civil, os negros encontraram nos índios aliados naturais. Quando os escravos fugiam das plantações, era nas aldeias índias que encontravam refúgio, onde eram aceites como iguais e muitas vezes constituíam família. Essa aliança foi fundamental nas guerras travadas contra a invasão de terras por colonos brancos. Quando a Guerra Civil terminou, em 1865, muitos negros continuaram a viver com as tribos, tendo alguns deles casado com índios. São os seus descendentes - bem como os descendentes de outros casamentos mistos - que os cherokees querem agora expulsar. Interrogado sobre o resultado da votação de ontem, o chefe Chad Smith sublinhou que "o povo cherokee exerceu o seu direito democrático mais básico, o direito de voto". Smith garantiu ainda que "a decisão sobre quem deve ser cidadão da Nação Cherokee foi muito clara. E não pode ser alterada". Mas esta opinião está longe de ser partilhada por todos os dirigentes da tribo. Taylor Keen, membro do conselho tribal, criticou fortemente o resultado do referendo e considerou esta votação como "um dos momentos mais tristes na história dos cherokees".
No Brasil, o primeiro prefeito ameríndio eleito foi José Nunes de Oliveira, um dos caciques da Área Indígena Xacriabá, a maior do estado de Minas Gerais, no município de São João das Missões. José Nunes é mestiço, assim como grande parte dos xacriabás, e filho de Rosalino Gomes de Oliveira, um dos líderes assassinados em fevereiro de 1986 na luta pela terra indígena (leia mais aqui). Na vizinhança fica o Parque Nacional do Peruaçu, e estive lá fazendo um video-documentário nos festejos juninos de 2006, quando tive oportunidade de conversar com Ailton Krenak, grande liderança do movimento indígena brasileiro e na ocasião assessor do governo de Minas Gerais para assuntos indígenas. Com toda sua sabedoria, Krenak conviu comigo que a etnia xacriabá, originada de não apenas essa mescla com os escravos mas também de diferentes miscigenações entre sobreviventes de diversas tribos ali reunidos no Vale do Rio São Francisco, era uma reinvenção de si própria, uma nova etnia surgida de um grande encontro cultural, tão caracteristicamente brasileira. Essa a sua força, aliás: a de ser uma etnia que contempla seu passado olhando para o futuro.
Maurílio Alves Neto nos conta um exemplo de como a criação de aldeias mistas foi parte da política etnocida dos colonizadores portugueses na região do Cerrado goiano:
"Em 1783 (...) o governador de Goiás, Tristão da Cunha, armou uma espécie de engodo visando a total rendição do povo Xavante. Conta-se que Miguel Arruda de Sá, a mando desse governador conseguira aprisionar um homem, quatro mulheres e crianças dessa etnia, que foram levados até a capital da Província de Goiás, Vila Boa. Para persuadir o restante desses aguerridos aborígines, Tristão da Cunha mandou libertar as prisioneiras e as crianças. Ao prisioneiro, deu-lhe o próprio nome e o tratou com todas as honrarias e dispensando-lhe toda a sua atenção. Satisfeito com as honrarias e com belos presentes, esse Xavante, agora denominado de Tristão da Cunha, viu-se convencido da amizade dos brancos. Por isso, à mando do governador, voltou para a floresta na tentativa de convencer seus irmão de raça a fazer um pacto de paz com os civilizados. Depois de três meses embrenhado nas matas, ele retornou dizendo que estivera com os de sua tribo e, diante de seus argumentos, eles acabaram por aceitar a idéia de uma reaproximação com os brancos, acreditando, que seriam perdoados de algumas atrocidades praticadas anteriormente na defesa de seu território contra o branco invasor. Ledo engano, pois na realidade, a Coroa queria converte-los ao cristianismo e pacificando-os, esperava que não oferecessem mais obstáculos às descobertas de minas de ouro, tão somente. De fato, os Xavantes, cerca de 3000, aceitaram fazer o pacto e no dia 13 de janeiro de 1788 foram recebidos festivamente no aldeiamento vigiado por militares, denominado Carretão (Pedro III) construído exclusivamente para eles, quando receberam as boas vindas e vários presentes, como prova da aliança e amizade eterna com os brancos. Nesse dia foi lido um documento aos aborígines com o seguinte teor:
“O nosso Capitão Grande, a quem os brancos, negros e as nações de vossa cor; Xacriabás, Carajás, Javaeses e Caiapós obedecem, aquele mesmo que, compadecido das vossas misérias nos enviou a convidar-vos em nossas próprias terras a fim de deixardes a vida errante em que viveis e virdes entre nós gozar os cômodos que vos oferece a sociedade civil, debaixo da muito alta, poderosa e maternal proteção de Nossa Augusta Soberana e Senhora Dona Maria Primeira, Rainha de Portugal, que habita além do Grande lago Oceano, me envia a aqui a receber-vos e cumprimentar-vos de sua parte e assegurar-vos suas boas intenções, oferecendo-vos estes presentes, sinais de uma aliança com que deseja firmar a paz, união e perfeita amizade, com que reciprocamente nos devemos tratar. Ao mesmo tempo, em nome do nosso Capitão Grande, vos faço real entrega desta aldeia, que para vosso domicílio tem destinado a qual, pertencendo-vos, de hoje em diante como própria, também sereis perpétuos possuidores destes dilatados campos, rios, bosques, até onde vossas vistas possam alcançar. E, para que o nosso Capitão Grande fique assás persuadido de vossa resolução, sabendo de ciência certa e fé, obediência e inteira sujeição que à Sua pessoa tributais e à Nossa Invicta e Amabilíssima Rainha, se faz preciso que firmeis a vossa fidelidade com juramento de uma perpétua, inalterável e eterna aliança !”
É interessante ler o relato de Cristhian Teófilo da Silva sobre o processo de identificação étnica dos tapuios do Carretão (Goiás) pelos orgãos governamentais brasileiros:
"A idéia de “índios negros” para mim era completamente inconcebível a partir do caráter prescritivo do “senso comum” internalizado, porém, diante daquelas lideranças trucás, comecei a perceber a diversidade de formas com que os povos indígenas podem se apresentar e se apresentam no Brasil. Tratava-se de reconhecer as “camadas de alteridade”, como são concebidas por Ramos (1995), ao mesmo tempo em que começava a notar o malabarismo das políticas indigenistas para lidar com esta diversidade sem necessariamente reconhecê-la em si mesma. Foi dessa forma que passei a perceber que as múltiplas imagens do “ser indígena” se configuravam para mim antes mesmo de conhecer tal ser. Por outro lado, enquanto estagiário, acostumava-me com a idéia de que o destino dos índios do presente era o de tornarem-se futuros não-índios a não ser que a tutela indigenista os preservasse ou os re-ensinassem a ser índios, mesmo que “índios genéricos”. (...) Ao se reconhecer a situação identitária dos tapuios como uma situação de “caboclismo”, pode-se compreender porque os tapuios são representados pelos agentes indigenistas como ocupando o extremo oposto de uma curva de indianidade que partiria dos mais “autênticos”, “puros” ou “selvagens” de um lado, se fechando, no outro lado deste continuum, nos mais “integrados” ou “assimilados” à sociedade nacional. É que estes não seriam mais índios, e sim “caboclos”, “tapuios” (no sentido regional), “trabalhadores nacionais” (no sentido do Serviço de Proteção aos Índios – órgão que antecede a FUNAI na promoção de um indigenismo burocrático-rotinizado). Por outro lado, a caracterização do “caboclo” proposta por Cardoso de Oliveira nos permite reconhecer os tapuios como a expressão mesma da permanência de uma condição étnica em oposição ao branco. Nesse sentido, passei a me questionar sobre o que acontece quando a idéia de autenticidade que é esperada de um “grupo” ou “indivíduo” que reclama uma tutela indígena não condiz com a realidade do índio de carne e osso. O que acontece quando a representação do que seria um “índio autêntico” se vê obrigada a mudar, i.e., a se adequar diante da realidade empírica encarnada por um “semelhante” que se pretende “outro”? Muda-se, nesse caso, a noção de autenticidade ou se força os “outros” a se subordinarem a ela? Opta-se por transformar as formas de interação com estes “outros” ou se espera que eles se transformem naquilo que supostamente deveriam ser pela sociedade dominante?
O texto de Macaé Maria Evaristo e Patrícia Moulin Mendonça - "Índios de verdade? A diversidade cultural, a questão indígena e a escola" - expressa uma preocupação com os problemas gerados pelo estabelecimento de um "modelo indígena". O que seriam "índios de verdade"? Numa tentativa de desconstruir a forma tradicional de perceber os indígenas, as autoras denunciam que a expressão "índios" é freqüentemente utilizada de modo genérico e no passado. Assim se forma uma imagem segundo a qual os indígenas são todos iguais e sua cultura não se transforma ao longo do tempo. Contra isso, sobre as diferenças existentes entre os vários povos indígenas e sobre sua historicidade, ou seja, eles não são estáticos culturalmente, transformam costumes, tecnologias, economia e crenças ao longo do tempo. Exemplificando essa historicidade, assinalam os vários períodos e orientações da relação entre os povos indígenas e o Estado brasileiro: o Serviço de Proteção ao Índio - SPI (criado em 1910), a Funai (1967), o Estatuto do Índio promulgado em 1973, as organizações não governamentais - ONGs - das décadas de 1970, até as garantias anunciadas pela Constituição de 1988, que "reconheceu a pluralidade cultural e o multilingüismo, a organização social, os costumes as crenças e línguas das sociedades indígenas que convivem com a sociedade brasileira". Coerentes com a concepção de que cada povo indígena mantém suas especificidades, as autoras passam a tratar designadamente dos índios xacriabás. Resgatam sua história destacando o processo de demarcação das terras e a relação com o espaço escolar da rede oficial do Estado de Minas Gerais e do município de Itacarambi. Relatam as expectativas e decepções que as lideranças xacriabás mantinham em relação ao atendimento escolar. Ao observarem a escolarização dos xacriabás, as autoras destacam uma série de práticas que constituem interessantes pontos de reflexão para a educação de maneira geral. A autonomia na organização do trabalho escolar, caracterizada por uma gestão comunitária, possibilita, por exemplo, que a própria comunidade escolha os professores. Essa autonomia estende-se para a escolha e confecção do material didático, permitindo que cada vez mais os próprios professores elaborem-nos. Como conseqüência, o saber local pode fazer-se presente no currículo, colaborando para o fortalecimento da identidade desse povo.
Leia em arquivos pdf: 20 anos do Martírio das Lideranças Xacriabá - Encarte Porantim de Dezembro/2006 , e "Xakriabá: Identidade e História". Projeto de Graduação junto à UNB, de Ana Flávia Moreira Santos
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