10 de maio de 2007

Escambos

Comme ce peuple couppe et porte le brèsil es navires [Como essa gente corta e carrega o pau-brasil às naus], figura de Cosmographie universelle illustrée des diverses figures des choses les plus remarquables [Cosmografia universal ilustrada de diversas figuras das coisas mais notáveis] Vol. 2, André Thevet, 1575.

Quando minha curiosidade se volta para a fase pré-colonial dos europeus na América é porque busco enxergar através da névoa dos relatos da época algo da sociedade ameríndia que aqui estava estruturada, e como foi esse encontro de mundos que revolucionou a história da humanidade. O que foi narrado permite também ler nas entrelinhas o que foi oculto. Se sabemos, por exemplo, que houve uma expedição portuguesa que alcançou a foz do Rio da Prata em 1512, e de lá trouxe um objeto de prata que podia ter uma função ritual, sagrada, portanto um objeto único (em toda aquela região não existem minas de prata) que pode ter sido roubado por eles para servir como prova ao soberano português, não se torna compreensível que esses mesmos índios tenham recebido Juan de Solís quatro anos mais tarde, à frente de uma expedição dessa vez espanhola, de com tamanho ódio que o tenham assassinado?! Se no começo os ameríndios receberam os visitantes europeus manifestando boa vontade, porque depois tiveram que ser perseguidos e chacinados, seja em Cuba, no Brasil ou na Argentina?! É claro que um pacto de respeito mútuo foi quebrado, e certamente foram os europeus que não corresponderam às regras de hospitalidade. Se compreendemos isso, não se torna mais claro porque os remanescentes dos povos ameríndios até hoje não confiam no "homem branco"? Deveriam por acaso confiar? A própria Igreja Católica, que já reconheceu seus erros no Tribunal de Inquisição, na perseguição aos judeus, na condenação de Galileu, acaso já reconheceu seus crimes contra as populações ameríndias, na imposição forçada do Evangelho e na colaboração à campanha etnocida dos governos monárquicos católicos? Nem a Igreja nem os antigos colonizadores jamais tiveram a humildade de pedir perdão por seus tremendos crimes cometidos na conquista do continente América.

"Nossa historiografia convencionou dividir a história do Brasil em três períodos: colônia, império e república. Contudo nos 30 primeiros anos do século XVI não existiu colonização. Esta fase, chamada pré-colonial, foi marcada pelo extrativismo vegetal do pau-brasil, com mão-de-obra indígena baseada no escambo, pela criação de algumas feitorias e envio de algumas expedições exploradoras e guarda-costeiras. A visão superficial sobre o indígena é fruto do preconceito em relação ao nativo, considerado inferior, de uma forma geral, os grupos indígenas são apresentados homogeneamente, ou seja, índio é índio em qualquer lugar, não "civilizado" e pagão. A dizimação que se seguiu durante séculos, eliminou as possibilidades de melhor compreensão de sua cultura e de seu modo de vida. As primeiras análises foram realizadas pelos jesuítas, sem critério científico, dividiram os indígenas em dois grandes grupos: os TUPIS, chamados índios de língua geral; e os TAPUIAS, considerados índios de língua travada. Se num primeiro momento encontramos descrições de encontros amistosos entre portugueses e indígenas, isso deve-se a três fatores principais: 1. A curiosidade que envolvia os dois lados em relação ao desconhecido e a intenção de conhecer os interesses alheios; 2. O fato de os portugueses não terem ocupado as terras; 3. A preocupação de passar uma visão positiva do novo mundo para a corte, criando possibilidades de novas expedições e de interesse na colonização. Conforme iniciou-se a colonização é que ocorreram os conflitos, guerras, iniciando o extermínio. Colonizar o Brasil passou a significar explorar a terra. Exploração essa segundo critérios definidos pelos portugueses, segundo as bases do mercantilismo; portanto, o nativo torna-se um obstáculo à colonização, os portugueses diriam “... um obstáculo a civilização, ao progresso, ao desenvolvimento...” (in: História de Peruíbe)

Max Guedes e Jorge Couto contam como se deu o início do escambo (câmbio, troca de produtos sem uso de moeda sonante) na feitoria de Cabo Frio, uma das primeiras criadas pelos portugueses:

A fundação da feitoria permitiu o início do sistema regular de trocas entre ameríndios e portugueses, denominado escambo. Os indígenas abatiam as árvores, desbastavam-nas, descascavam-nas e transportavam as toras até a feitoria. Em troca de pau-brasil e de papagaios, recebiam instrumentos metálicos (machados, facas, tesouras) e outros objetos (pentes, espelhos, manilhas etc). Não tardou a aparecer a concorrência normanda, iniciada após a viagem de Paulmier de Gonneville (1503-1505) que, com dois pilotos portugueses, tentou a alcançar o Oriente, mas, por erro de navegação, aterrou no sul do Brasil. Dali foi para o nordeste, onde carregou pau-brasil, retornando à França. A partir de então, a costa brasileira foi alvo dos interesses comerciais de armadores normandos e bretões. O Livro da Nau Bretoa, documento referente ao navio que esteve fundeado ao largo da feitoria do Cabo Frio entre o início de junho e o final de julho de 1511, constitui excelente fonte para a compreensão das peculiaridades do escambo, especialmente do ritmo de carregamento de pau-brasil (5.008 toras) e de escravos (em número de 35), bem como de papagaios, sagüis (pequenos macacos) e gatos maracajás. A intensificação da presença francesa no Brasil e a chegada dos espanhóis ao rio da Prata levaram D. Mauel a tomar, em 1516, diversas medidas, entre elas a de transferir a feitoria para Igaraçu ("canoa grande"), na costa pernambucana, e criar a armada de guarda-costas, cujo comando confiou a Cristóvão Jacques, com a finalidade de patrulhar o litoral. No mesmo ano, foi atacada a feitoria do Cabo Frio por caravela da flotilha Castelhana de João de Solis, que regressava do Prata.

Leia um relatório de uma dessas expedições, realizada em 1527:

Isso é o que eu, Enrique Montes recebi por mandado do senhor general na ilha de Santa Catarina, para o mantimento da gente desta armada e fazer a galera chamada "Santa Catalina":
Primeiramente em 10 de novembro, recebi de Miguel Rifos duas dúzias de tesouras, uma de tesouras grandes e a outra de pequenas. / Item, recebi do supracitado uma dúzia de espelhos pequenos. / Item, recebi de Alonzo Peraza 400 anzóis de tamanho médio. / Item, recebi de sua Mercê 512 anzóis pequenos de alfinete. / Item, recebi do tesoureiro Juan de Junco 5 libras de cristalinos. / Item, recebi do supracitado tesoureiro 4 dúzias de pentes pequenos. / Item, recebi, em 10 de dezembro, 4 dúzias de facas de baixa qualidade, dadas pelo Senhor Capitão General; também recebi de sua Mercê outras 3 dúzias da mesma qualidade, perfazendo 7 dúzias. / Item, também recebi de Antonio Ponce 34 cunhas. / Item, também recebi de Mestre Pedro, ferreiro, 82 cunhas. / Item, também recebi do tesoureiro Gonzalo Nuñez, em 13 de fevereiro, uma dúzia de facas.
Relação do gasto que eu, Enrique Montes, fiz por mandado do Senhor Capitão General na ilha de Santa Catarina, de 10 de novembro de 1526 a 3 de fevereiro de 1527, do que resgatei para o mantimento e casas e outras coisas necessárias para esta armada, que entrego a Antonio Ponce, Alonzo Peraza e Juan Miguel, então mordomo do Senhor Capitão General e despenseiro da nau capitânia, bem como do que eu, Enrique Montes, gastei em coisas e serviços para a dita armada por mandado do dito Senhor Capitão General, não podendo essas coisas ser entregues aos ditos mordomos e despenseiro:
Primeiramente, comprei 273 veados, que custaram 273 cunhas e 273 anzóis médios. / Também comprei 398 galinhas, que custaram 70 cunhas, 40 facas e 30 anzóis médios. / Também comprei 2 antas, que custaram 2 cunhas grandes e 4 tesouras, e dados a 20 homens que as trouxeram, 20 punções, além dos donos das antas. / Também comprei 80 patos, que custaram 20 cunhas e 6 anzóis. / Também comprei 52 cabaças de mel em favos, que custaram 40 cunhas, 12 tesouras e 52 anzóis, dando, depois de feita, 4 barris e meio com mais ou menos 14 arroubas. Também dei, por 2 porcos monteses, 2 cunhas e 2 punções. / Também dei, por 5 cargas de milho, 5 cunhas e 5 anzóis. / Também dei, por 2 porcos, adagas, 2 facas e 2 anzóis. / Também dei, por 20 cargas de carvão, 4 cunhas, 2 facas e 10 anzóis. / Também dei, por 2 parafusos grandes da nau perdida, uma faca. / Também dei, por uma canoa a serviço da dita armada, uma cunha e uma faca. / Também dei, por 4 remos para a dita canoa, 4 punções. / Também dei, por 200 perdizes grandes, 80 facas, 2 perdizes por faca, e pelas 40 restantes, 80 cristalinos, que pesaram uma libra. / Também dei, por fazer os alpendres em que se fez a galera, a 16 índios principais que os faziam, 16 facas, porque os faziam de madeira. / Também dei, por serviço na casa dos serradores, 2 facas. Dei, por 25 feixes de palha para a dita casa, 25 anzóis. / Também dei, pela casa em que estava a despensa do vinho, 4 facas. / Também dei, por serviço na igreja, duas facas. / Também dei, pela palha, 25 anzóis. / Também dei, ao primeiro índio que foi às naus, por mandado de sua Mercê, uma cunha. / Também dei, por 200 feixes de arcos para as pipas, 400 cristalinos, que pesaram 4 libras. / Também dei, por 20 feixes de vime para os ditos arcos, 20 punções. / Também dei, por 26 cargas de ostras, 2 tesouras, 25 punções e 24 anzóis. / Também dei, por 5 cabaças de banha, 5 cunhas e 5 anzóis. / Também dei, por 2 cavalos armados (tatus), 2 cunhas. / Também dei, por 2 cargas de barro, que trouxeram de longe do arraial, cerca de 4 léguas, 2 facas e 2 anzóis, o qual era para a forja. / Também dei, por 2 cargas de carne assada para os índios que trabalhavam e serviam tirando madeira da montanha, em gratificação, 4 veados, 2 porcos, 2 facas, 6 punções e 6 guizos. / Dei, por 2 cargas de peixe moído, em que poderia ter um quintal para os ditos índios, 3 cunhas e 2 tesouras, sendo as 2 cargas trazidas por 5 índios. / Também dei, por 60 varas grandes para fazer remos, 120 cristalinos, 94 guizos e 26 anzóis. / Também dei, por 90 iguanas, por 53 delas, 53 facas, por 32 delas, 16 cunhas, e pelas 5 iguanas restantes, 2 tesouras e 4 cristalinos. / Também dei, por 300 cargas de raízes de mandioca para fazer pão e vinho para os índios que trabalhavam em serrar madeira para a galera, 76 cristalinos por 38 cargas. E pelas 262 cargas restantes, 262 punções e 262 anzóis. / Também dei, a um homem chamado ... (em branco) Durango, que por duas vezes foi terra adentro, a 35 léguas, buscar galinhas por mandado de sua Mercê para os doentes, tanto pelas galinhas quanto pelo seu gasto e transporte, 462 punções e 200 anzóis. / Também dei a Castrillo, que ia fazer carvão para a forja, 30 anzóis. / Também dei, por 3 arrobas de mel que se gastaram fazendo xaropes e outras medicinas para os doentes, 10 cunhas e 21 punções. / Também dei, às mulheres que às vezes faziam vinho para os índios, 20 pentes. / Também dei, por palmitos para salada para a mesa de sua Mercê, 50 anzóis. / Também dei a índios que iam às naus buscar pão e outras coisas requeridas pelo serviço, tanto dos doentes como outro serviço da dita armada, por ... (branco) onde se fazia a galera todo o tempo que a dita armada esteve na ilha de Santa Catarima, 200 anzóis médios e 20 punções. / Também dei, por 40 cestos de inhames, tanto para o doentes como para a mesa de sua Mercê, 19 facas, 20 pentes e um espelho. Dei, por 200 punhados de milho para fazer vinho misturado com mandioca, e para dar às galinhas e patos que eram dados aos doentes, 5 maços de matamugo e 11 espelhos. / Dei, por fazer a casa dos carpinteiros, 2 facas, 15 anzóis e 5 cangas. Pela casa da forja, 3 facas, e 20 anzóis pela palha. / Dei, por fazer a casa onde estava a despensa de sua Mercê, 3 facas e 16 punções. / Dei, por fazer uma casa para a pólvora, 8 anzóis. / Dei a Martin Vizcaíno, por certas aves, as quais estavam anotadas em poder de Ponce, 30 anzóis, que esse me jurou ter gasto. / Dei, por mandado de sua Mercê, por 4 índios que trouxeram Talavera, o grumete, 4 facas e 4 anzóis. / Também dei a Durango, que foi buscar patos, galinhas e outras coisas à terra Dararoga, que ficará a 40 léguas da ilha de Santa Catarina, pelo que trouxe e o gasto seu, 300 anzóis médios, 16 punções e 100 anzóis pequenos de alfinete. / Gastou-se, por duzentos e tantos pedaços de cera preta para misturar com o breu, 150 anzóis. De certa linha fina para calafetar a galera. De certo almagra para os carpinteiros, 2 anzóis. / Também gastei, em outros gastos miúdos com os índios, tanto para trazer madeira como em outras obras que no dito tempo foram realizadas ao serviço da dita armada, 412 anzóis pequeninos de alfinete, 228 anzóis médios, não tendo anotado detalhadamente com que gastei esses anzóis por não poder fazê-lo, mais 5 maços de miçangas. / Também foram gastos, na foz do rio de Solis, 62 anzóis e um espinhel, para mantimento da armada, por mandado de sua Mercê. / Também se gastou, para fazer uma casa para as galinhas e outra para o açougue, 20 anzóis.
Isto é o que eu, Enrique Montes, recebi do Senhor Antón de Grajeda por mandado do Senhor Miguel Rifos, lugar-tenente do Senhor Capitão General, no dia 27 de agosto de 1527.
Primeiramente, recebi de Antón de Grajeda 4 machadinhas de olho pequenas, 100 anzóis pequenos e 30 grandes. Recebi do mesmo 12 cunhas e 6 facas.
GASTO
Primeiramente, foram gastos com 4 cestos de carne de veado seco que pesariam mais ou menos 12 quintais, 2 machadinhas de olho pequenas, 4 cunhas e 25 anzóis. / Também se gastaram, por uma cesta de abati (milho) que teria uma fãnega e meia, mais ou menos, 62 anzóis daqueles que eu, Enrique Montes, fiz, e 4 canutilhos. Meio cesto de milho e feijão custaram 35 anzóis pequenos, 5 grandes e 8 cristalinos. / Um grande saco de milho e uma cabaça de feijão que mandei ao senhor Grajeda nas naus custaram 6 anzóis pequenos e 4 grandes. / Por 50 pescados que levaram à galera, gastaram-se 6 facas. / Dei, por uma cesta de carne seca de veado, que enviei ao patrão da galera, uma cunha e 8 anzóis. / Dei, por 6 peles de veado que trouxeram à obra da fortaleza, 12 anzóis. / Dei a quatro índios que foram comigo buscar borazai, 4 anzóis. / Dei, por certa carne seca que um índio trouxe, em que teria um grande veado, uma linha de vidrilhos. / Dei, por uma canoa que comprei para que matassem carne pelo caminho, a qual se perdeu em um temporal, chegando com avaria na popa, uma machadinha de olho, uma tesoura e uma faca. / Dei, por trazer o milho das casas de Recio ao rancho de sua Mercê, bem como as cestas de carne, 3 facas.
Eu, Enrique, digo que estas são as contas do que recebi e gastei em Santa Catarina, no rio de Solis e em São Lázaro por mantimento e outras coisas necessárias para esta armada de Sua Majestade, por mandado do Senhor Capitão General, e por ser verdade firmo da minha mão. Feita em Sancti Spiritus, aos 30 de setembro de 1527. Enrique Montes (rubrica)
Vistas as contas dos gastos em Santa Catarina apresentadas por Enrique Montes por nós, Juan de Junco, tesoureiro, Roger Barlo, contador, e Alonso de Santa Cruz, fiscal, achamos que o dito Enrique Montes entregou os veados, aves e outros mantimentos que por sua conta deu a Antonio Ponce, que foi nomeado pelo Senhor Capitão General repartidor dos ditos mantimentos em Santa Catarina, e pela conta apresentada pelo dito Antonio Ponce vimos como se gastaram os ditos mantimentos. E os outros gastos feitos pelo dito Enrique Montes com os índios para trazer a madeira do mato até a galera, fazer carvão e casas, mandar coisas para a naus e mandar buscar mantimentos terra adentro, como aparece na dita conta, foram feitos conforme indicado em sua conta. Assim, vistas as contas apresentadas por Enrique Montes do que ele recebeu e gastou em Santa Catarina e São Lázaro, achamos que se deve ao dito Enrique Montes os seguintes resgates:
Primeiramente, 329 cunhas de ferro; mais, 1968 anzóis; mais, 148 facas; mais, 3 tesouras; mais, 212 canutilhos e uma linha de vidrilhos; mais, 100 guizos; mais, 878 punções, que são como sovelas.
E por ser verdade que nós, Juan de Junco, tesoureiro, Roger Barlo, contador, e Alonso de Santa Cruz, fiscal, temos visto e passado as ditas contas, como consta, firmamos aqui os nossos nomes. Feito aos 30 de setembro de 1527.

[Tradução do original em espanhol, Relación de lo recebido y pagado por Enrique Montes en la isla de Santa Catarina, de 1527, para o português, de Jean François Cleaver.]

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