“Este encontro sagrado de nações foi visto no tempo do calendário ocidental há mais de cinco séculos. No tempo espiritual das almas foi simplesmente visto como um breve agora. E entre estas diferentes percepções temporais e cíclicas estamos nós, entre a límpida visão da alma e turva percepção do ego. Estamos nós com o desafio de superarmos as nossas limitações, soberbas, ganâncias, estranhezas, preconceitos, ignorâncias, para materializar aquilo que os antigos viram com o coração; parentes separados por grandes águas se encontrando em uma ritmada e graciosa dança circular. A dança do encontro. As sementes do milho da primeira aurora dos tempos, estendendo-se em um diverso milharal, sobre a terra, revelando a imensa tribo humana.”
(Kaka Werá Jecupé)
Na literatura brasileira, o uso indígena da bebida da Jurema é citado desde o século 19 no clássico romance indigenista de José de Alencar, “Iracema”. Iracema é filha de Araquém, pajé da tribo tabajara, e deve manter-se virgem porque “guarda o segredo da jurema e o mistério do sonho. Sua mão fabrica para o Pajé a bebida de Tupã”. Um dia, Iracema encontra, na floresta, o português Martim, que se perdera de Poti, amigo e guerreiro pitiguara com quem havia saído para caçar e agora andava errante pelo território dos inimigos tabajaras. Iracema leva Martim para a cabana de Araquém, que abriga o estrangeiro: para os indígenas, o hóspede é sagrado. O assunto do livro também nos mostra a história do Ceará e o ódio entre as tribos Tabajaras e os Pitaguaras. De sentido igualmente simbólico se reveste a oposição de Irapuã ao hóspede branco, protegido por Araquém (Martim). Ao opor-se a ele, o guerreiro tabajara não quer defender o amor que nutria pela virgem dos lábios de mel; sua resistência é, antes, em defesa da preservação da cultura indígena e do “segredo de Jurema”. Do qual Iracema era guardiã. Violada a sua virgindade pelo invasor branco, fatalmente as tribos seriam dizimadas e aniquiladas.
O livro brasileiro de história em quadrinhos “O Segredo da Jurema” (2002), do roteirista Carlos Eugênio Patati e desenhos de Allan Alex é o segundo título da Marques Saraiva de uma série chamada “Brasileiros”, e tem o louvável objetivo de retratar fatos da história do Brasil em quadrinhos e, claro, abrir espaço de trabalho para artistas nacionais. A história retrata o primeiro encontro entre indígenas e portugueses, na descoberta do Brasil. A idéia de Patati é mostrar a maneira amistosa como os dois grupos se relacionavam no início da colonização. Ele denota a diferença de comportamento dos colonizadores: enquanto os conquistadores espanhóis se empenharam em destruir com violência os impérios Inca e Asteca, os portugueses se mostraram mais interessados em estabelecer contatos e relações pessoais com os nativos. Exemplos disso seriam personagens reais, como Caramuru e João Ramalho, que se estabeleceram no Brasil, casando-se com índias e formando famílias. Após pesquisar as lendas indígenas coletadas pelo antropólogo Curt Nimuendaju, Patati escolheu a lenda "A dispersão dos povos" para desenvolver seus personagens fictícios. Na ficção criada pelo autor, a lenda foi atribuída aos tupis-guaranis e narra a luta pela sobrevivência e a separação em diversas tribos do que seria um só grupo de índios brasileiros. No livro, a personagem Moema é uma índia pataxó que, após tomar chá de Jurema e entrar num estágio de inconsciência privilegiado, prevê a chegada dos portugueses no litoral baiano. Temos a intenção de ressaltar a interação entre indígenas e portugueses no começo da colonização, porque os portugueses foram mais amistosos que os espanhóis com os índios. Queremos com isso mostrar como o Brasil vai se tornando um país mestiço, como vai se formando o brasileiro, em função dessa interação. (Patati)
Patati foi meu colega na Universidade Federal Fluminense nos anos 80 - escreve profissionalmente roteiros de HQs desde 1979: começou na Vecchi, do Rio, nas revistas Pesadelo e Sobrenatural. Organizou as mostras de multimídia As 1001 Imagens do Bat-Cinto de Utilidades, no Planetário-RJ, e Circo de Imagens, no mezanino do Metrô Estação Carioca. Formado em Comunicação Social com habilitação em Cinema, Patati já escreveu e dirigiu vídeos institucionais e de treinamento, escreveu programas de Televisão para a TVE e a Manchete, colaborou no roteiro do programa Ao Pé da Letra, exibido pelos canais Vinde e Record, e foi diretor de diálogos em duas co-produções estrangeiras de longa-metragem, O 5º Macaco e Lambada, the Movie!. Em 1984 e 85, Patati recebeu prêmios por seus roteiros de curta metragem nos festivais de Gramado, Salvador e no Riocine. Nos quadrinhos, colaborou com a Eura Editoriale, da Itália, e a Editorial Columba, da Argentina; e recentemente, seu principal personagem, criado em parceria com o desenhista Allan Alex, o taxista Nonô Jacaré, teve suas primeiras aventuras reunidas numa edição especial pela Editora Tipológica, do Rio. Além de O Segredo da Jurema e Sangue Bom, que lançou naquele mesmo ano pela Opera Graphica, com arte de Allan Alex e Solano Lopez, Carlos Patati em 2006 publicou com Flávio Braga na Ediouro o Almanaque dos Quadrinhos.
Moacy Cirne, que foi nosso dedicado mestre na UFF, comenta sobre "O Segredo da Jurema" em “Pensando um Quadrinho-Documentário” (aqui em arquivo pdf):
Com argumento e roteiro de Patati (Carlos Eugênio) & desenhos de Allan Alex, O segredo da Jurema é um quadrim que, para os nossos padrões narrativos, aparentemente já nasce clássico, já nasce antológico, já nasce com o mais puro cheiro e dengo de brasilidade, quando enfoca o Brasil recém-descoberto pelos portugueses. Como se estivéssemos lendo o norte-rio-grandense Luís da Câmara Cascudo, folclorista maior desses brasis brasileiros, o presente quadrim nos faz lembrar algumas de suas palavras: “A orientação da História, desde que a Etnografia e o Folclore expuseram suas riquezas humanas, imediatas e contínuas, é o estudo do comum, do realizável, do possível, sem a criação ambiental para os gênios, para os predestinados, para essa fauna perigosa de super-homens”. Cascudo, aliás, era um leitor dos velhos e bons gibis. Na verdade, algum dia gostaríamos de ver o seu magistral “Canto de muro” adaptado para a narrativa quadrinizada. Mas o que nos interessa, neste momento, é destacar a qualidade gráfico-visual e temática do presente trabalho no campo da quadrinhografia nacional, inserido numa brasileirice arrebatadora. O que diabo é isso, afinal de contas? Decerto, não se trata de nenhuma conceituação acadêmica, de nenhum discurso científico mais elaborado. Os semioticistas que nos perdoem, mas se trata apenas de uma maneira toda particular de captar o clima formal e conteudístico de uma dada situação narrativa. Decerto, não basta uma história ambientada em nossa “história” – como o faz O segredo da Jurema – para tornar uma HQ fonte estética de brasilidade. Mesmo porque, aqui e ali, por exemplo, há traços iconográficos que nos remetem aos comics americanos dos anos 40, seja pela visualização/decupagem de algumas páginas, seja pelos ícones informativos que podem lembrar o Príncipe Valente , de Hal Foster, como, de resto, reconhece o próprio Patati. Só que, neste caso, Patati faz uso deles com inegável propriedade estilística, recriando a formatação do plano dentro do plano – plano esse sem qualquer agenciamento narrativo, frise-se –, procedimento, aliás, que não se encontrava no clássico americano dos anos 30. Além do mais, uma fonte estética não pode se transformar numa fonte estática. Mesmo porque, em sendo estética, será basicamente semiótica e, em sendo semiótica, será basicamente histórica e social. É bom salientar, inclusive: não se trata, aqui, de simples leitura ideológica de uma desgastada matriz quadrinhística. A releitura operada de forma mágica pelos Autores busca uma essencialidade criativa que tem tudo a ver com nossas raízes históricas e culturais, fazendo com que se afastem de modelos que sempre marcaram os desenhistas tupiniquins mais jovens. Quando, entre nós, os quadrinhos se tornaram um fenômeno de comunicação de massa, entre os anos 30 e 40, éramos atingidos pelo modelo americano. Depois, ora pelo europeu (em particular o francês), entre os anos 70 e 80, ora pelo mangá japonês, a partir dos 90 do século passado, ainda dominante. Como teóricos e, sobretudo, como leitores preferimos ser atingidos pela força estético-semiológica de Patati & Alex. Ou pela força de outros autores nacionais.
Falando sobre a Jurema, ela é realmente um elemento de resistência cultural dos povos indígenas no Brasil, como comenta José Maria Tavares de Andrade:
A dimensão histórica de nossa pesquisa revela a Jurema como um fio condutor de um traço cultural, distintivo do componente indígena da cultura popular, regional e nacional. Numa primeira fase da colonização, a resistência dos povos indígenas no Nordeste, não permitiu que a Jurema, enquanto árvore sagrada, fosse conhecida, em seus usos e signicados, não sendo assim documentada pelos colonizadores e estrangeiros. Numa segunda fase histórica a Jurema representa um elemento ritual ligado à própria resistência armada dos povos indígenas ou à guerra empreendida contra inimigos inclusive em suas alianças. Ainda nesta fase na qual a Jurema começa a ser documentada, seu significado ainda não é entendido mas seu uso já é motivo de repressão, prisão e morte de índios, como veremos a seguir. Na medida em que avança o rolo compressor da colonização, processo de genocídio ou tentativa de dominação, não só política e econômica como também cultural, aparece uma nova forma de resistência: a Jurema assume um lugar central na religiosidade popular, não só indígena regional - Catimbó. Diante do componente negro a Jurema garante seu reconhecimento, como entidade (espírito, divindade, cabocla) autóctone, "dona da terra". A Jurema é absorvida pelos cultos afro-brasileiros, tendo surgido inclusive os "Candomblés de Caboclos". Nas últimas décadas é no contexto da Umbanda, religião nascente e em pleno processo de sistematização e de expansão nacional, que a Jurema é integrada na cosmologia sagrada, no panteão da religião nacional. Constatamos em vários estados nordestinos as "Linhas da Jurema", dentre as linhagens e filiações religiosas da Umbanda. Nestas últimas décadas, e paralelo ao movimento religioso, propriamente brasileiro, a Jurema continua como "núcleo duro", segredo, bandeira ou símbolo, para os remanescentes indígenas, em pleno "movimento étnico", num contexto de defesa de seus direitos humanos, de suas áreas de reservas e de sua autonomia e reconhecimento no pluralismo da sociedade e das culturas brasileiras.
Mais do que resistência, a Jurema também tem conduzido a uma etnogênese, como aponta Rodrigo de Azeredo Grünewald:
Dentro da tradição do índio, portanto, encontramos no uso da jurema a marca de oposição - de distinção - com relação à "parte civilizada". A jurema, também chamada durante os trabalhos de Anjucá, representa, segundo um informante Mestre de toré, “o sangue de Cristo, porque quando mataram Jesus, um dos apóstolos dele apanhou o sangue dele e mandou botar no pé da juremeira, que era pra ficar a ciência para os índios. Aí o civilizado não tem nada com a jurema, porque não tem o sangue". (...) E é também através da jurema que se justifica a diversidade fenotípica entre os índios, pois, uma vez que existem jurema preta, vermelha e branca, afirma-se na Serra: "é por isso que tem índio de toda qualidade, é porque tem jurema de toda qualidade". (...) Portanto, para ser índio o caboclo deve deter o regime de índio e, na medida do possível, a ciência do índio - esta entendida aqui como um corpo de saberes dinâmicos sobre o qual fundamenta-se o segredo da tribo. São saberes de caráter sagrado, de acesso restrito e proibidos a não-índios ou mesmo a índios de outros grupos étnicos. É importante, contudo, ter em mente que o segredo nem sempre esconde algo, ele pode simplesmente existir por existir, sendo, sua eficácia, justamente esta: fornecer um mistério em torno da tribo, sobre o qual, independente do seu conteúdo, provê uma base para uma separação do tipo nós / eles - e é dessa forma que os Atikum se separam dos demais índios portadores da mesma tradição do toré. Parece ser nessa direção que Reesink percebe o papel “de separar os de dentro e os de fora, os participantes do saber específico e os externos sem conhecimento. Tudo isso cabe perfeitamente na função do ritual ser indígena e de construção e um grupo que seja um agente coletivo. Sendo assim, segredo não deriva por acaso do significado em latim de ‘separação, aparte, exclusivo, inacessível’, ressaltando como se trata de um meio estratégico que separa e une e aprofunda uma iden-tidade/alteridade” (Reesink, 1995). É o segredo, portanto, que faz com que os Atikum ultrapassem uma indianidade genérica, para alcançar sua etnicidade, sua especificidade étnica. De fato, o toré é um ritual comum à maioria dos índios do Nordeste e estabelece a indianidade dos mesmos. O que proporciona aos caboclos da Serra do Umã ultrapassarem a simples qualidade de índios nordestinos para se afirmarem como a “comunidade indígena de Atikum-Umã” é justamente os segredos por eles gerados que promovem, independente de seus conteúdos substantivos, sua etnicidade em termos pragmáticos. Mas, além disso, o segredo, como já ressaltou Mota (1992), pode também ser visto como uma forma de oposição à dominação, sendo, assim, um movimento contra-hegemônico: é uma prática social desenvolvida no intuito de escapar do controle das classes (religiosas, políticas, etc) dominantes - e, como insinuado, se foi o SPI que impôs uma tradição aos Atikum, eles desenvolveram segredos e mistérios em torno da mesma de forma, possivelmente e mesmo que inconscientemente, a se esquivarem da dominação daqueles que lhes impuseram o toré. O segredo é, por fim, um meio de autenticar, de alguma forma, a existência do grupo em sua especificidade - e mesmo que esta seja ilusória. (...) A identidade étnica, assim, precede aos interesses, ela é a pré-condição para a ação racionalmente interessada dos grupos étnicos - e se a etnicidade tem sua expressão mais visível no aparecimento de novas categorias sociais, o foco recai sobre uma classificação que separa as populações em termos de uma dicotomia nós versus eles. Nessa direção, uma mudança de rótulo - como de caboclo para índio - não caracteriza apenas um movimento político, uma tentativa de obter os benefícios assistenciais de um órgão tutor através da ação coletiva. Tal mudança de rótulo também estabelece um contrato para uma etnicidade indígena, para um sentido novo e potencialmente estável de identidade, experiência e propósito divididos (Bentley, 1987) - e tais considerações tornam ainda mais complexas a análise de como um setor camponês do ser-tão nordestino veio a se definir como uma "comunidade indígena" distinta dos demais habitantes da região. O processo que aí se iniciou é, na verdade, o que comumente denomina-se de etnogênese. Antí-tese do paradigma da aculturação, tal noção, segundo Sider (1976), refere-se à “criação histórica de uma população que freqüentemente se inicia, depois de gerações de dominação, com pouco mais que um sentido de sua própria identidade coletiva” (Sider, 1976). Nesse processo de criação de um grupo étnico, seus membros buscam gerar sua própria cultura, em contradistinção à cultura que flui de sua posição oprimida. O que ocorre, ainda segundo Sider, é uma tentativa de fazer sua própria história de dentro, e ao mesmo tempo buscando mover-se além das condições impostas sobre eles.
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