20 de junho de 2007

Um Inca-Herói: Mayta Cápaq

Ilustração de Richard Hook

Normalmente sabemos da dinastia teocrática inca (que governou a partir da cidade andina de Cusco) que houveram doze governantes com o título de Sapa Inka (Supremo Rei), como podemos saber um pouco em "An Overview of the First Eight Incas". Como a palavra "inka" é substantivo em quechua para dizer "monarca", relatos sobre incas anteriores referem-se obviamente a governos monárquicos havidos naquela região. Entretanto, não podemos efetuar uma mera leitura horizontal da história supondo que, ao registrar o nome desses doze governantes estejamos relatando gerações sucessivas de descendentes de Manco Cápaq, fundador do império que hoje conhecemos como o Tawantinsuyu ou Tahuantinsuyo. Pode se ter resumido a narrativa aos doze principais incas, ou mesmo agrupado de tal forma que o herdeiro pareça ter sido um filho do monarca e não um neto ou bisneto, como seria possível, ou mesmo que cada qual dos citados seja na verdade um clã dinástico inteiro. A polêmica é vasta, e utilizada no argumento do livro "O Verdadeiro Inka", escrito por mim e publicado em 1999, o qual está sendo reestruturado para figurar em nova edição. Mas queremos aqui expor que, desses doze Incas, se destaca o nome do quarto deles, Mayta Cápaq, por razões que se relacionam, por incrível que pareça, com a própria ayahuasca do povo shuar.

A vida de Mayta Cápaq se tornou legendária desde seu nascimento, envolto por aspectos miraculosos já que seu pai era de muita idade e a regra para legitimar o herdeiro seria a descendência adelfogâmica: assim como os faraós do Egito, os Incas do Tawantinsuyu até então geravam sucessores apenas em uniões matrimoniais com suas irmãs legítimas. Mayta será o último gerado de acordo com essa norma sucessória: depois dele, como não possuía irmãs de mesmo sangue, será sucedido por uma série de usurpadores até que Pachakuteq (o nono imperador) recomponha no século 15 o Império de acordo com essas diretrizes de sua fundação.

Cieza de León narra o acontecido: "E reinando desta maneira Lloque Yupanki em Cusco, passando-lhe o tempo chegou a ser muito velho sem ter filho em sua mulher. Mostrando muito pesar disso, os moradores da cidade fizeram grandes sacrifícios e orações aos seus deuses, tanto no Wanakauri como no Qorikancha e em Tamboquiro, e dizem que por um daqueles oráculos onde iam por respostas vãs ouviram que o Inka engendraria filho que o sucedesse no reino; pelo que mostraram muita felicidade e, alegres com a esperança, colocavam o velho rei sobre sua mulher a Coya; e com tais brincadeiras, ao cabo de alguns dias, claramente se conheceu que ela havia engravidado, e a seu tempo pariu um filho".

O herdeiro assim concebido quase com métodos de inseminação artificial chamou-se Mayta Cápaq. O velho Inka ordenou que depois de seu falecimento as insígnias reais deveriam ser depositadas no templo de Qorikancha até que o filho atingisse a idade de reinar, até lá permanecendo o Tawantinsuyu sob a regência de dois de seus tios. Morreu Lloque Yupanki e foi chorado de acordo com a tradição, acompanhado do suicídio de vários súditos, sendo então mumificado para a veneração perpétua [...].

Mayta Cápaq foi um personagem fabuloso desde a sua geração. Juan de Santa Cruz Pachakuti nos conta, por exemplo, que ele já havia chorado dentro do ventre de sua mãe, e que nasceu depois de um ano inteiro de gestação. Com poucos meses teria começado a falar, e aos dez anos já "abençoava a seus inimigos valorosamente". Seu governo, além de criar as "khipucamayocs" (escolas para treinar o uso da linguagem cifrada dos nós coloridos de lã, os khipu), parece ter sido exemplar - conta-se que fez publicar ordenanças morais e leis que faltavam, proibindo ao povo os maus costumes e "ensinando-lhes outras coisas naturais" e colocando a gente "em execução das coisas de recolhimento dos índios".

Em "De la Historia Del Reyno y Provincias del Perú", Giovanni Anello Oliva reportou que Mayta Cápaq "foi inclinado a novas conquistas, grande guerreiro e amigo de gente belicosa, e como em todos os seus Reinos não houve alteração para exercitar suas valentias, saía sozinho de Cusco e se embarcava pelas montanhas dos Andes, a buscar tigres, ursos, leões e outras feras para lutar com elas, e quando voltava trazia por triunfo atados com coleiras estes animais". Cusco, na verdade, não está muito distante da região de selva: o rio Willkamayu, que cruza os Andes, é um dos muitos afluentes que conformam a bacia do Amazonas, e descendo o vale na direção noroeste, em menos de uma semana de caminhada Mayta Cápaq já se encontraria em meio à densa floresta tropical. Ali teria travado duelo com a mítica serpente Amaru , ser fantástico com asas e braços como um dragão, a qual matou com o champi, machado ritual. "Desta sorte concluindo com tão terrível e perigosa batalha, deste animal tão poderoso tomou o Inka o sobrenome de Amaru, porque assim se chamam estas serpentes, e voltando a Cusco a mandou tirar do local para que todos a vissem", relata Anello de Oliva.

Diz-se que foi este Inka quem introduziu também o uso da coca amazônica na cultura andina, e sobre isto encontramos em "Cuadernos Andinos" um criterioso trabalho do antropólogo peruano Carlos Candia, "Las Leyendas de la Hoja de Coca", que nos dá uma explicação definitiva das incursões de Mayta Cápaq à selva:

Conta esta lenda que, realmente, Mayta Cápaq foi o primeiro Inka a provar da pócima amazônica a que chamou hayawaska (cipó amargoso). O acontecimento teria se dado em uma aldeia dos índios shuar (jívaros), ainda hoje conhecidos como ferozes guerreiros caçadores de cabeça. Atualmente a tribo vive mais ao Norte, em território colombiano, mas é possível que há oito séculos estivessem vivendo mais próximos a Cusco, em terras hoje ocupadas pelos índios machingüengas. Ora, se Mayta Cápaq foi iniciado por esses índios, isso denota haver conquistado sua amizade, o que entre guerreiros se tratando seguramente ocorreu graças a seus feitos de coragem. O que conta a lenda é que foi sob efeito do iagé que Mayta Cápaq avistou o ser espiritual do arbusto da coca, e que esta visão da Mama Coca é que levou o Inka a introduzir o uso de suas folhas para o povo do Império. [...]

A coca foi através deste Inka proporcionada a toda a população, mas a bebida do iagé não foi divulgada, e desse modo não se tornou conhecida da maior parte das pessoas, seu uso sendo restrito a uim pequeno grupo da elite religiosa de Cusco, escolhido a dedo pelo Inka e seu irmão, o Sumo-Sacerdote. O motivo de tamanho "segredo de Estado" foi porcerto não apenas pelos aspectos dimensionais do efeito da bebida mas também devido a contumaz bebedeira festiva dos povos do Altiplano, onde a cerveja de milho, a
chicha, era consumida em rituais coletivos de embriaguez alcóolica em praça pública. Ao conhecer a hayawaska, é compreensível que Mayta Cápaq diferenciasse sua embriaguez, verdadeiramente visionária, enquanto bebida de conhecimento, daquela outra, alcoólica, levando-o então a reservá-la a um uso sagrado, onde as visões fossem experienciadas dentro de um sentimento ordenado, coerente e ascendente. Tão apaixonados pela adivinhação do futuro como eram, os Inkas teriam encontrado no hayawaska um recurso concreto para a obtenção da abertura da percepção extrassensorial, qualidade esta que apenas recentemente a Ciência ocidental se dispõe a estudar, distante que se encontrava da realidade dos haveres religiosos da cultura ameríndia.

Leia algo mais a esse respeito no post: "Waskar Inka e meu amigo Edmundo Guillén".

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