12 de junho de 2007

Universitários indígenas no Brasil

Os Povos Indígenas, as Ações Afirmativas e a Universidade - por Renato Athias*


Até a presente data o debate sobre as ações afirmativas relacionado ao acesso de indígenas às universidades esteve, quase sempre, associado às demandas do movimento negro, e, sobretudo a discussão das cotas nas instituições de ensino superior. Diferentemente de outros países da América Latina o acesso de índios ao ensino superior no Brasil tem sido dificultado principalmente pelos concursos públicos (vestibulares) o qual todos estão submetidos, e este tem sido um dos principais entraves ao acesso de índios às universidades brasileiras. Outra problemática se situa nas próprias instituições de ensino superior no Brasil que não estão aparelhadas, não só a debater o acesso dos povos indígenas a partir de uma abordagem intercultural, como também não tem disponível uma política que possibilite uma organização de uma grade curricular; onde os povos indígenas possam manter a sua identidade e a reprodução de seus conhecimentos e saberes tradicionais.

Na realidade, o debate sobre as cotas no Brasil está permitindo apresentar os problemas referentes à integração sociopolítica dos grupos historicamente discriminados (índios e negros), dando assim a oportunidade para que esses grupos se manifestem e digam como se sentem num país que não aceita a sua condição pluriétnica e suas especificidades culturais. A discussão sobre as cotas conduzida pelo movimento negro não tem a mesma dimensão que aquela desenvolvida pelo movimento indígena. Além do acesso ao ensino superior, os intelectuais e lideranças indígenas, discutem a valorização e reconhecimento da sua produção de saberes. Na realidade, essa discussão sobre as cotas tem diversas abordagens nos movimentos sociais onde estão inseridas e tem provocado diferentes concepções sobre políticas públicas relacionadas aos negros e indígenas. Acredita-se que o debate atual vai além da simples aceitação ou não do sistema de cotas, pois tem profundas implicações no âmbito das políticas públicas e implica também uma reorganização dos conteúdos e cursos oferecidos pelas universidades.

O princípio da igualdade política e jurídica dos cidadãos é um fundamento essencial da República e um dos alicerces sobre e o qual repousa a Constituição Brasileira e o debate sobre as cotas. A idéia de que o Estado deve tratar os seus membros como igual é uma construção recente. Esse ideal vai ocupar uma posição central no desenvolvimento dos Estados Nacionais, e tem seu início do séc. XIX. Uma retrospectiva rápida na construção desse ideal igualitário, no pensamento social, vai mostrar que desde a luta contra as leis escravagistas foi desenvolvida uma ordem, que perdura até hoje, baseada na igualdade social. A exigência de direitos iguais e igualdade na participação política será sempre um tema das manifestações sociais no século XIX. Essas reivindicações, no século seguinte já se encontram dadas como certas em todas as constituições dos Estados Nacionais. Isso pelo menos no âmbito da retórica, pois na prática não se efetiva essa igualdade das oportunidades. E o que se entende por igualdade social? Seria o tratamento igual em todas as esferas institucionais? Ou seria o igual acesso aos serviços sociais saúde, educação, consumo etc.? Na realidade, o que se percebeu através da história foi que esse acesso não correspondeu a uma noção de igualdade. E em praticamente todos os países da América, que aderiram aos ideais da Igualdade, Liberdade e Fraternidade, estava presente apenas da retórica. E pode-se dizer que tais ideais ainda figuram no âmbito dos discursos dos governantes sem, no entanto ser levado a uma discussão mais aprofundada da aceitação dos diferentes saberes e de uma produção de conhecimento entre as diversas etnias no Brasil contemporâneo.

Alguns pesquisadores dessa temática apresentam uma distinção epistemológica, entre os conceitos de diferença social e de desigualdade social que tem marcado a discussão sobre as ações afirmativas. Esses têm colocado a primeira noção no que poderíamos chamar de ordem do ”natural” e o exemplo mais citado é a distinção entre os sexos que determina a diferença social dos indivíduos na sociedade. A segunda noção é situada no domínio da "construção cultural" baseada em uma visão de mundo, e num juízo de superioridade e inferioridade entre os grupos sociais, camadas ou classes sociais possibilitando distinção em relação aos demais grupos. Em outras palavras, o principio da igualdade está definido a partir dessas diferenças. Mas, na realidade, estamos falando de identidades étnicas (atribuída ou construída) e estamos falando de saberes e conhecimentos próprios. Trata-se então, de proporcionar espaços para as identidades especificas no âmbito das políticas públicas para os Povos Indígenas.

Então a sobre ou a sub representação de indivíduos tendo em vista a distribuição de recursos deve ser discutida por uma sociedade, não porque seja anormal, mas porque “sexo”, “cor”, “raça” e “etnia” são construções sociais usadas precisamente para monopolizar recursos coletivos. Nesse sentido, as ações afirmativas são políticas que visam afirmar o direito de acesso a tais recursos a membros de grupos sub-representados, uma vez que se tenham boas razões e evidências para supor que o acesso seja controlado por mecanismos impostos por um grupo específico em posição de decisão. Nesse sentido, que deveria ser discutido, na realidade, seria a representação das diversidades cultural no âmbito da distribuição dos recursos ficando evidente de que as desigualdades entre os seres humanos são resultadas de uma imposição política e cultural de uma elite dominante. As ações afirmativas levariam na realidade um desenvolvimento de atividades interculturais valorizando-se as diversidades culturais existentes num país pluriétnico.

A discussão sobre as ações afirmativas no âmbito do ensino superior, tendo em vista as populações indígenas, devem situar-se num espaço onde as universidades são vistas como responsáveis pela formação de professores que operam em diversos graus de ensino do país. E que estas reconheçam a existência das diversidades culturais e conhecimentos específicos dos grupos étnicos para que possam formar profissionais para atuar no âmbito da interculturalidade. Nesse sentido, a formação de professores indígenas seria o núcleo central de uma política pública que não apenas discute o acesso de índios a universidade e sim a implementação de ações que visem o desenvolvimento de projetos interculturais, onde a valorização e conhecimento tradicional indígena estejam no centro dessas ações.

Talvez uma das polêmicas centrais no debate sobre ações afirmativas não se situa exatamente na dimensão normativa como muitos a colocam. As principais dificuldades podem ser visualizadas na compreensão da identidade étnica e suas especificidades, tendo como pano de fundo, a aplicabilidade a uma legislação específica que reconheçam a produção de conhecimentos indígenas. Não obstante, a existência de um esforço, por parte do atual governo, em promover ações tendo em vista as diferenças étnicas, buscando inclusive ações no âmbito de propor leis especificas sobre um “estatuto da igualdade racial” que divide a opinião pública e os intelectuais. Pouco tem discutido, de fato, sobre a aceitação de organização de cursos superior que levem em consideração os conhecimentos tradicionais indígenas. Os debates sobre as ações afirmativas no Brasil podem enquadrar-se em dois blocos de oposições ao reconhecimento das identidades étnicas e a possibilidades de um reconhecimento de um país pluriétnico: a) aqueles intelectuais que defendem a ideologia nacional que “somos um só povo e uma só raça” e, que a ações afirmativas tendo em vista as identidades étnicas levaria a uma negação desse ideal, ou como foi expresso no recente manifesto público (sobre a lei de 'Cotas e do Estatuto da Igualdade Racial') de que: “... A adoção de identidades raciais não deve ser imposta e regulada pelo Estado. Políticas dirigidas a grupos "raciais" estanques em nome da justiça social não eliminam o racismo e podem até mesmo produzir o efeito contrário, dando respaldo legal ao conceito de raça, e possibilitando o acirramento do conflito e da intolerância.”; e b) aqueles que vêem nas políticas de ações afirmativas uma oposição ao princípio universalista e individualista do mérito que orienta a vida pública brasileira e que tem sido a principal arma contra o particularismo.

Esse debate mostra-se oportuno e necessário no sentido de situar as questões que estão em torno das ações afirmativas promovidas no Brasil com relação aos povos indígenas e o ensino superior. E essa discussão não deveria ir simplesmente na direção da aceitação ou a não-aceitação das cotas, pois além de empobrecer a discussão de conteúdo, significa perder a oportunidade de se perguntar e tentar responder à seguinte questão: como podemos incluir minorias historicamente discriminadas, uma vez que as políticas universalistas não têm tido o sucesso almejado, e ao mesmo tempo debater em quais bases são possíveis propor políticas públicas adequadas para as populações indígenas que valorizem e reconheçam a existência de um saber indígena.

As ações afirmativas relacionadas aos povos indígenas tomam um rumo acelerado principalmente com relação a formação universitária em diversas unidades da federação. O lugar central desse debate hoje é sem dúvida a academia. Essas iniciativas, não todas, estão moldadas em experiências dos Estados Unidos da América, e pretendem desenvolver participações iguais no acesso ao ensino superior sem levar em conta as especificidades étnicas culturais. Em geral, os argumentos para aplicação de uma ação afirmativa vêm da “necessidade” de “reverter um quadro” de “ausências” de índios nos espaços de decisões. Os discursos vão nessa direção: “Não há índios nas universidades. Não há índios na mídia. Não há índios nos três poderes. Não há índios juízes, engenheiros, médicos. Etc.”. Será que se trata de aumentar a presença de índios nas universidades para o quadro ser revertido? A questão situa-se realmente na “ausência”? Então por que o pensamento social produzido na academia não problematizou tal ausência de forma mais contundente?

Debater a igualdade nas oportunidades sobre os povos indígenas requer um tratamento diferenciado, do contrário a reprodução das desigualdades, não estaria sendo rompida. O que seria esse diferencial em ações afirmativas para índios no Brasil? Seria lutar contra um mito fundador de uma nacionalidade que legitima uma parcela da sociedade? Ou dever-se-ia produzir uma nova leitura sobre essa sociedade no sentido de se perceber o outro como diferente e manutenção de suas formas organizativas, suas identidades e seus saberes.

(*) Renato Athias é Doutor em Antropologia, professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Etnicidade (NEPE) da UFPE, publicou recentemente o livro: Povos Indígenas de Pernambuco – Identidade Diversidade e Conflito, Editora da UFPE, Recife 2007.

Leia também: "Ministra volta a fazer defesa de cotas", por Sílvia Amorim.

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