2 de junho de 2007

Propriedade intelectual indígena

Humboldt e Bomplant fazendo suas coletas científicas entre as aldeias do Orinoco, Venezuela

A Convenção da Diversidade Biológica – CDB se constitui em um dos principais tratados multilaterais sobre biodiversidade na atualidade e emerge como palco de disputas no contexto internacional, no qual os paises megabiodiversos, em geral países em desenvolvimento, travam debates e embates com os países desenvolvidos, detentores de biotecnologias e de parte considerável das patentes derivadas de produtos e processos tecnológicos. Neste sentido, o principal objetivo da CDB é tentar equilibrar estas relações, tendo em vista as visíveis diferenças econômicas e políticas entre aqueles países.

A Convenção da Diversidade Biológica foi criada na 2ª Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (A Eco-92), realizada no Rio de Janeiro, em 1992. Ali se reuniram mais de 750 Povos Indígenas, dos cinco continentes da Terra para debater e apresentar a visão dos Povos Indígenas com relação à proteção da Biodiversidade, e assim surgiram documentos que são marcos na luta dos Povos Indígenas pelo reconhecimento de sua diversidade e da importância dos valores e saberes das Sociedades Indígenas para o mundo em que vivemos: são exemplos desses documentos a Carta da Terra e a Declaração da Kari-Oca. Naquela ocasião, os líderes indígenas escreveram e apresentaram ao mundo a seguinte mensagem:

“Nós os povos indígenas sabemos da grande crise existencial da humanidade e a agressão crescente ao meio ambiente, por isso, acreditamos na possibilidade de compartilhar conhecimentos tradicionais de nossas comunidades desde que sejam definidos formas de tempo, local e uso dos resultados desses investimentos. Nosso país carece urgentemente de investimentos para o desenvolvimento de pesquisas para o bem estar de toda a humanidade sem ferir os princípios da vida especialmente de nossos povos e para tanto, torna-se necessário um sistema“sui generis” de proteção, que nasce com a demarcação de nossas terras.” (TERENA, 2005)

E como resultado das manifestações dos Povos Indígenas do Mundo, presentes na Eco-92, foi incluído em seu documento final, que veio a ser a Convenção da Diversidade Biológica – CDB o artigo 8º “j” que fala da importância dos Povos Indígenas, dos nossos conhecimentos, práticas e inovações, para a preservação da biodiversidade em todo o planeta e o artigo 15 que trata do acesso a recursos genéticos e da justa e eqüitativa repartição de benefícios oriundos desse acesso.

O horizonte dos debates sobre a proteção da biodiversidade aponta para a contribuição dos Povos Indígenas, no âmbito da CDB, como fator decisivo para a efetiva implementação das diretrizes e metas estabelecidas pela Convenção, considerando-se que as principais áreas de elevada importância biológica no Brasil concentram-se em terras indígenas e que os Povos Indígenas do Brasil detém usufruto exclusivo sobre os recursos naturais existentes em suas terras. Além disso, pesquisas recentes, baseadas na utilização de dados por imagens de satélite, vêm concluindo que o manejo sustentável dos recursos naturais, praticado em moldes tradicionais por populações indígenas e locais, tem contribuído para a preservação do meio ambiente.

Assim, somente com a inserção dos Povos Indígenas, por meio de sua participação qualificada e da articulação de parcerias com outros segmentos, como as comunidades locais e as organizações ambientalistas, será possível construir propostas consistentes, que contemplem as especificidades dos Povos Indígenas em sua relação com o ambiente que nos cerca, a serem apresentadas e defendidas na Oitava Conferência das Partes da CDB, com vistas à redução das taxas de perda da diversidade biológica no Brasil.

Nesse contexto, o INBRAPI afirma-se como instituição de referência entre os Povos Indígenas do Brasil na proteção do Patrimônio Cultural Indígena e organização indígena que apresenta acúmulo significativo de discussão junto ao Conselho de Gestão do Patrimônio Genético – CGEN, bem como no âmbito da CDB, tendo sido designado pelo Fórum Indígena Internacional para Biodiversidade – FIIB (órgão assessor da Convenção da Diversidade Biológica, composto por representantes de organizações indígenas do mundo), em reunião realizada em maio de 2005, em Nova York, como organização indígena parceira do Comitê Intertribal – ITC.

A proteção aos conhecimentos tradicionais foi um dos principais temas em debate na COP8 - 8ª Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica, metade dos 3,6 mil representantes de 173 países se dedicaram ao estudo do assunto. Segundo a Agência Brasil, no entanto, o Inbrapi - Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade Intelectual não acredita que as discussões avancem para a construção do regime internacional de acesso a recursos genéticos e benefícios compartilhados. "O texto está completamente entre colchetes, o que significa discordância entre os países, especialmente o grupo desenvolvido em oposição aos megadiversos", revela a secretária-executiva do Inbrapi, Fernanda Kaingang. "As novas regras só se tornarão válidas se houver consenso. Nossas expectativas são baixas. E daqui para frente serão cada vez menores." A COP8 tem o desafio de aprovar um programa de trabalho para a construção desse regime internacional. São esperadas decisões sobre o poder vinculante ou não do regime (ou seja, se será obrigatório ou apenas sugestivo). Também está em discussão o acesso exclusivo aos recursos genéticos e a repartição de benefícios, além do acesso aos processos e produtos derivados.

"O Brasil costuma se posicionar favoravelmente a que o regime internacional regule apenas a repartição de benefícios", lembra a secretária-executiva da Inbrapi, advogada e mestranda em Direito da UnB - Universidade de Brasília (DF). "A repartição precisa ser um sistema internacional, porque não temos como obrigar uma empresa que produza no Japão a dividir seus lucros".

A Revista SIM em 2005 relatou: O programa de apoio aos povos indígenas na Noruega foi criado no parlamento norueguês em 1983 e o Brasil foi um dos primeiros a entrarem no portfolio de apoio. Deve-se à Noruega, por exemplo, a verba usada para manter o escritório do INBRAPI, o Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade Intelectual. Também o ISA (Instituto Sócioambiental), o CTI (Centro de Trabalho Indigenista) e a Comissão pró-Yanomami são alguns exemplos de organizações que recebem apoio norueguês praticamente desde o início das suas atividades. Segundo o governo norueguês, a intenção é estimular organizações criadas por indigenistas ou pelos próprios indígenas para fazerem um trabalho voltado para suas próprias questões, conforme as suas próprias prioridades, ao invés de apoiar projetos já existentes. No caso do INBRAPI, a luta pela propriedade intelectual permite aceder a "um conjunto de princípios e regras que disciplinam a aquisição, o uso e a perda de direitos e interesses em propriedades intangíveis suscetíveis de serem usados comercialmente." Mas no caso específico do conhecimento tradicional indígena, este conjunto de regras tem sido confrontado, afinal, não é tão simples reconhecer e distribuir direitos de autor a uma nação espalhada pelo país, por exemplo. No Brasil, a lei reconhece apenas o autor individual, que fez uma obra e tem direitos sobre ela. O que é coletivo é considerado de domínio público. O que se deseja é que a lei reconheça a produção tradicional indígena como sendo de uma comunidade. E foi para lutar contra a reprodução indiscriminada da produção indígena e pelo reconhecimento de autoria que foi criado o INBRAPI - Instituto Indígena Brasileiro da Propriedade Intelectual.

Para a advogada Fernanda Kaingang, diretora-executiva do INBRAPI, o saber é compartimentado, mas os conhecimentos tradicionais não podem ser separados, pois são holísticos e não fazem ruptura entre o sagrado e o profano. "Por essa razão, o maracá, instrumento sagrado dos pajés, tornou-se o símbolo do pensar do INBRAPI, o maracá representa o conhecimento circular, símbolo da cura da humanidade, escravizada pelo pensamento quadrado ocidental".

Atualmente, no Brasil existem 230 povos indígenas que falam 180 línguas diferentes, com complexos sistemas legais e uma gama variadíssima de grafismos.

No site Comciência, o presidente do Inbrapi diz como quer usar propriedade intelectual para compensar exploração histórica das populações ameríndias:

Daniel Munduruku é diretor presidente do Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade Intelectual, o Inbrapi, uma ONG que surgiu efetivamente em fevereiro de 2003, mas que começou a ser articulada em 2001, durante o Encontro de Pajés, ocorrido em São Luís do Maranhão. Nessa ocasião, reuniram-se lideranças espirituais indígenas com o interesse comum de promover a articulação dos povos indígenas brasileiros para discutir a questão da propriedade intelectual, com o intuito de proteger os conhecimentos tradicionais da biopirataria e da exploração por terceiros.
Formado em filosofia e especialista em antropologia social pela USP, Daniel Munduruku publicou diversos livros sobre pensamento indígena, pelos quais foi premiado nacional e internacionalmente.

ComCiência - O Inbrapi entende o conhecimento tradicional de uma forma oposta ao pensamento ocidental compartimentalizado? Qual é a relação que as comunidades indígenas estabelecem com a terra e com a natureza?
Daniel Munduruku - O Inbrapi defende o conhecimento sem ruptura entre mente e corpo. Isso significa que há uma diferenciação muito profunda entre ciência indígena e ciência ocidental. Nesse sentido, e segundo essa linha de raciocínio, os povos indígenas têm uma relação profunda com a natureza e o meio ambiente. Aí mora o primeiro ponto de diferença: os indígenas olham a natureza como um ser vivo interagindo com eles. Não costumam encará-la como objeto a ser dominado, explorado, vendido ou destruído. O segundo ponto é que o saber indígena é coletivo, não pertence a uma pessoa em particular, e sim a todos na comunidade.
A legislação construída sobre uma ótica ocidental não consegue sequer entender as razões e os motivos que regem os povos indígenas e sua ciência, como poderiam contemplar este saber? Assim, nessa nossa defesa do saber como o vemos, desejamos pelo menos que a lei siga a lei maior que é a Constituição.

ComCiência - É possível ampliar essa forma de pensar para a relação com a terra e para solucionar os conflitos em terras indígenas?
Munduruku - Eu diria que o conflito de terra é fruto da ganância que o capitalismo implantou na sociedade. Esta é uma realidade da qual não podemos fugir e por isso temos que dialogar com a sociedade, no sentido de nos fazermos entender em nossas demandas. Entendo que o humano deve estar acima dos interesses individuais.

ComCiência - O conhecimento tradicional está relacionado com o sagrado para as comunidades indígenas, tanto é que a idéia do surgimento do Inbrapi se deu durante o Encontro de Pajés em 2001. É possível preservar essa visão e essa relação com o conhecimento, numa época em, que cada vez mais, conhecimento significa mercado, patentes etc?
Munduruku - É preciso defender o direito de as pessoas pensarem diferente. Temos que salvaguardar o direito de dizer não a essa forma de conhecimento que detona as formas de organização que nossos povos estão mantendo há milênios. O Inbrapi é uma organização que nasceu com essa missão por acreditar que é possível conviver com a sociedade nacional de forma harmônica e respeitosa.

ComCiência - Como se caracteriza a luta pela proteção dos conhecimentos tradicionais? Ela se relaciona com o recebimento de royalties e patentes? Isso não reforça o sistema de patentes?
Munduruku - Conhecimento tradicional é um método. Nossos povos vêm utilizando esse método há milênios. Lembre-se que os povos do primeiro mundo utilizam a mão-de-obra do terceiro mundo para enriquecerem cada vez mais. Eles – os do primeiro mundo – são os detentores do conhecimento científico e por isso são remunerados usando o mecanismo de propriedade intelectual, enquanto os do primeiro mundo são produtores desses produtos pensados por eles. Os povos indígenas também são detentores de uma ciência milenar riquíssima e desejada por todos, e não querem fabricar produtos e, sim, viver desse saber acumulado, quem sabe usando os mecanismos de propriedade intelectual.

ComCiência - Alguns movimentos sociais, como aqueles contra os alimentos transgênicos e o movimento de software livre lutam por uma flexibilização ou anulação dos direitos autorais, enquanto o movimento indígena luta pela repartição de benefícios incluída em um sistema de patentes. A luta dos indígenas não é contraditória com essas bandeiras?
Munduruku - Acho que esses movimentos têm que continuar lutando por isso. É justo, e nós também defendemos isso porque a sociedade ocidental já tem explorado muito os pobres que ela criou. Agora, para os povos indígenas ela nunca deu nada, nunca repartiu nada. É isso que queremos forçar. Não há nada de contraditório nisso. Acredito que é uma forma justa de compensar as inúmeras degradações que fizeram com nossos povos.

ComCiência - Qual é a sua avaliação sobre a postura do governo brasileiro com relação à luta pelos direitos aos benefícios do conhecimento tradicional?
Munduruku - Tirando o ministério do Meio Ambiente, que tem procurado ouvir os detentores do conhecimento tradicional, os outros ministérios têm tido uma posição meio débil. Isso é preocupante, pois mostra que o governo não está coeso.

ComCiência - No caso de haver compensação financeira pelo conhecimento tradicional, como será a administração dos recursos?
Munduruku - Estamos pensando na constituição de um fundo, mas o seu gerenciamento ainda é uma incógnita que queremos resolver em breve. No caso de direitos autorais, entendemos que o Inbrapi pode servir de escritório de recebimento deles.

ComCiência - Como o senhor vê a presença de pesquisadores nas aldeias?
Munduruku - Não sou contra a ciência ou a pesquisa. Sou contra aproveitadores, biopiratas e gente de má fé. Se construirmos regras claras para o acesso, certamente os pesquisadores serão bem vindos.

Conheça o site do Inbrapi e os artigos do site "Biodiversidade é Capital", da FIEPR. Sobre a turma que dirige o Inbrapi, Mary Allegretti faz as apresentações em seu blog:

Daniel Munduruku DIRETOR-PRESIDENTE - Formado em Filosofia e Mestrando em Educação na USP. É escritor premiado nacional e internacionalmente por suas obras voltadas para a divulgação do pensamento indígena. Foi um dos coordenadores do curso de Magistério Indígena do estado de São Paulo. Suas aulas e palestras versam sempre sobre Educação, Conhecimento Tradicional e Literatura Indígena. Coordena coleção de livros que narram histórias tradicionais de diversos povos e ajuda na formação e preparação de autores indígenas. E-mail: danielmunduruku@uol.com.br

Lúcio Flores Terena DIRETOR-VICE-PRESIDENTE – É formado em teologia e administração de empresas. E-mail: lucioterena@bol.com.br

Lúcia Fernanda Kaingang DIRETORA-EXECUTIVA – É Kaigang, nascida no Rio Grande do Sul. É advogada, é mestranda em Direito na UNB e assessora das associações Guarani e Kaigang do RS. Ministrou vários cursos de formação para professores e lideranças indígenas sobre os direitos constitucionais e Propriedade Intelectual. Prestou assessoria para a Coordenação-geral de Defesa dos Direitos Indígenas (CGDDI) da Fundação Nacional do Índio (Funai) em Brasília. E-mail: luciakaingang@inbrapi.org.br

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