27 de junho de 2007

Questões de Direito

Na Revista Audácia: "As Nações Unidas dedicaram um ano internacional aos povos indígenas, seguido de uma década. Mas não chegou. Até 2015 assinala-se a Segunda Década Internacional. Chegará? Quantos anos, quantas décadas internacionais serão precisas para o mundo se dar conta dos problemas dos povos feitos estranhos nas suas próprias terras?"

Quantos são os povos indígenas? Não há consenso. Estima-se que sejam entre 350 e 500 milhões de pessoas, repartidos por 70 países. Representam mais de 5000 línguas e culturas. Mas muitos continuam ameaçados, ou mesmo à beira da extinção.

No Brasil, por exemplo, há ainda 15 povos indígenas a viver em isolamento voluntário na Amazónia. Além destes, a Fundação Nacional do Índio tem indícios da presença de outros 28 povos ainda não contactados. Não se sabe quantas pessoas são. Sabe-se que estas tribos fazem parte da lista dos povos ameaçados.

Até há pouco tempo, o próprio conceito de indígena não estava definido. Atualmente, e segundo o relator especial das Nações Unidas J. Martínez Cobo, «são comunidades, povos e nações indígenas os que, tendo uma continuidade histórica com as sociedades anteriores à invasão e colonização que se desenvolveram nos territórios, consideram-se diferentes de outros setores das sociedades que agora prevalecem nesses territórios ou em partes deles». Cobo define-os também como «setores não dominantes da sociedade e têm a determinação de preservar, desenvolver e transmitir às futuras gerações os seus territórios ancestrais e a sua identidade étnica como base de sua existência continuada como povo, de acordo com os seus próprios padrões culturais, as suas instituições sociais e os seus sistemas legais».

Mas o panorama não é animador. Um pouco por toda a parte, as populações indígenas são discriminadas e despojadas das suas terras, vêem as suas línguas e costumes relegados para segundo plano ou explorados. Também vêem ignorados os seus métodos sustentáveis de exploração dos recursos naturais.

Segunda Década

A relação especial que os povos indígenas têm com a sua terra e o seu meio ainda não foi reconhecida até à data por nenhum instrumento de direitos humanos das Nações Unidas.

As primeiras normas para promover os direitos dos grupos indígenas são da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e entraram em vigor em 1991. Declaram que nenhum Estado nem grupo social tem o direito de negar a identidade a que tem direito uma população indígena e impõem aos Estados a obrigação de velar, com a participação desses povos, pelos seus direitos e integridade.

Dois anos depois, celebrou-se o Ano Internacional das Populações Indígenas. E em 1995 começou a primeira Década Internacional das Populações Indígenas. Foi um marco na luta destes povos para conseguir o reconhecimento dos seus direitos e a igualdade de condições nas terras dos seus antepassados. Em 2004, as Nações Unidas lançaram a Segunda Década. Desta vez para lembrar «que o diálogo, por si só, não é suficiente». E que é fundamental «privilegiar a ação para proteger os direitos das populações indígenas - como governo próprio e autonomia nos seus assuntos, como religião e modos de ensino -, e melhorar a sua situação no que se refere a poder possuir, controlar e utilizar as suas terras, as suas línguas, o seu modo de vida e as suas culturas».

Com este objetivo, criou-se um Fórum Permanente das Nações Unidas sobre as Questões Indígenas, que trabalha um projeto de declaração dos direitos destes povos.

Problemas e avanços

Quase todas as comunidades indígenas enfrentam problemas. No Peru, Equador e Bolívia os índios acusam a petrolífera brasileira Petrobrás de poluir o meio ambiente e arruinar o seu modo de vida. Na Colômbia, o Alto Comissariado da ONU para os Refugiados afirma que o conflito armado entre o Governo e a guerrilha provocou em 2005 a deslocação forçada de 19 mil índios nasa e quechuas.

Em Botswana, muitos bosquímanos foram presos, agredidos e torturados. Proibiram-lhes a caça e a recoleção e todos os líderes da First People of the Kalahari, uma ONG local, estão presos desde Setembro de 2005, acusados de entrada ilegal na reserva.

Mas há países onde se registam melhorias, com a adoção de novas leis ou a eleição de índios para altos cargos. Um exemplo vem da Bolívia, onde Evo Morales, um índio aymara, foi recentemente eleito presidente da República.

No Canadá, o Governo decidiu compensar os índios com ajudas econômicas para fazer face à pobreza e aos problemas de saúde que ocorrem nas reservas indígenas. Além disso, as autoridades decidiram atribuir 1,7 mil milhões de dólares de indenização às centenas de indígenas que foram abusados física e sexualmente enquanto alunos internos de colégios governamentais. As nações indígenas do Canadá, conhecidas como as Primeiras Nações, representam atualmente menos de dois por cento da população. E no Brasil, apesar do conflito latente entre índios e fazendeiros e madeireiros, a população indígena aumentou 150 por cento na década de 90. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, os índios passaram de 294 mil, em 1991, para 734 mil, em 2000.

De acordo com Diego Cevallos, em "A década perdida... outra em perigo", crescentes atritos entre as etnias originárias, os governos e as empresas multinacionais aconteceram na Segunda Década Internacional das Populações Indígenas do Mundo, que por decisão da Organização das Nações Unidas acontece desde 2005. Nesse cenário, parte dos 840 povos autóctones existentes na América poderiam inclusive desaparecer, alertam especialistas. “Aos indígenas de hoje cabe viver a época do capital mais imperial e desatado da história, com Estados fracos e a serviço de interesses transnacionais”, disse à IPS o mexicano José del Val, chefe do Programa Universitário México nação Multicultural (PUMC) e ex-diretor do Instituto Indigenista Interamericano. Del Val é um dos responsáveis pelo estudo “Avaliação da Década Internacional dos Povos Indígenas do Mundo”, apresentado na sede da ONU em Nova York. O documento foi preparado pelo PMUC, que faz parte da Universidade Autônoma do México, em coordenação com líderes de comunidades da região e a Fundação Rigoberta Menchú, que leva o nome da indígena guatemalteca ganhadora do prêmio Nobel da Paz em 1992.

“Se os Estados não reconhecerem os direitos territoriais dos indígenas e a exploração de recursos em suas áreas de assentamento avançar com rapidez, teremos nos próximos 10 anos conflitos importantes e muitos povos à beira do precipício podem desaparecer culturalmente”, alertou o chefe do PMUC. O informe, apresentado na ONU durante a sexta Sessão do Fórum Permanente para as Questões Indígenas, é um amplo documento do ocorrido na Primeira Década Internacional das Populações Indígenas do Mundo, instaurado pelas Nações Unidas para o período entre 1994 e 2004, e inclui diversas reflexões sobre a atualidade e o futuro. [...] Segundo a ONU, “A meta da nova Década é fortalecer a cooperação internacional para a solução dos problemas enfrentados pelos povos indígenas em esferas como direitos humanos, meio ambiente, desenvolvimento, educação e saúde”. Mas o que se apresenta não parecem ser soluções, e, sim, problemas, estimou Del Val. No documento apresentado na ONU há 80 páginas dedicadas aos diversos conflitos que os indígenas vivem hoje na América, desde explorações de petróleo em seus territórios até ações de resistência contra planos de instalação de represas. “O que deveria acontecer na década é reconhecer que os recursos que estão nos territórios indígenas pertencem a eles. Portanto, se o Estado e as multinacionais querem negociar, têm de se converter em sócios dos indígenas, mas isso não acontece em nenhum lado”, afirmou Del Val. “Se fizermos um mapa da região onde estão localizados os povos indígenas e sobrepormos outro mapa dos últimos recursos naturais não explorados do planeta, ambos coincidirão plenamente. Esta é a realidade e a tragédia”, acrescentou. [...] Os autores dizem ter identificado 840 povos indígenas na América, contra os 414 registrados e publicados em 1983 pelo Fundo das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e o Instituto Indigenista Interamericano. Movimentos de indígenas foram protagonistas na última década da derrubada do presidente equatoriano Jamil Mahuad, em janeiro de 2000, e do boliviano Gonzalo Sánchez de Lozada, em outubro de 2003. Além disso, desde o início de 2006 ocupa a presidência da Bolívia o aymara Evo Morales. Os indígenas latino-americanos também promoveram nos últimos anos novas rotas nos processos políticos e deixaram marcas no parlamento, em ministérios e prefeituras. Mas a maioria dos indígenas continuou vivendo em situação de pobreza e outros, localizados na América do Sul, que mesmo não desejando manter contato com a “civilização” foram confrontados pelo ocidente. Avançam sobre estes últimos grupos – os “não-contatados” – e seus territórios diversos projetos produtivos, o que inevitavelmente desembocará em seu desaparecimento, advertem diversos estudos. Trata-se, entre outros, dos korubo, no Brasil; tagaeri, no Equador; ayoreo, no Paraguai, mashco-piros, ashaninkas e yaminahuas no Peru, que em conjunto não somam mais do que cinco mil pessoas. A retórica governamental e as leis garantem sua existência, mas a realidade é outra, disse Del Val. “Há uma espécie de esquizofrenia crescente no tema indígena”, afirmou. Na “área jurídica em níveis nacional e internacional há garantias de justiça e direitos para os indígenas, mas na realidade acontece o contrário”, afirmou.

Leia também: O Direito Internacional dos Direitos Humanos no Brasil e os Índios , de Samia Roges Jordy Barbieri; e, site da COICA, Agenda Indígena Amazônica.

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