25 de junho de 2007

O diferencial

"Pu'iito, como as pessoas e os animais receberam o seu ânus"
(Narrado por Mayuluaípu, índio taulipangue)

Antigamente, os animais e as pessoas não tinham ânus para defecar. Acho que defecavam pela boca. Pu'iito, o ânus, andava por aí, devagar e cautelosamente, peidando no rosto dos animais e das pessoas, e depois fugia. Então os animais disseram: "Vamos agarrar Pu'iito, para dividi-lo entre nós!" Muitos se juntaram e disseram: "Vamos fingir que estamos dormindo! Quando ele vier, vamos pegá-lo!" Assim fizeram. Pu'iito veio e peidou na cara de um deles. Então correram atrás de Pu'iito, mas não conseguiram pegá-lo e ficaram para trás. Os papagaios Kuliwaí e Kaliká chegaram próximos de Pu'iito. Correram muito. Finalmente o pegaram e o amarraram. Então vieram os outros, que tinham ficado para trás: a anta, o veado, a cutia, o mutum, o jacu, o cujubim, o pombo... Começaram a reparti-lo. A anta pediu logo um pedaço para ela. Os papagaios cortaram um grande pedaço e o jogaram para os outros animais. A anta imediatamente o pegou. Por isso ela tem um ânus tão grande. O papagaio cortou para si um pedaço pequeno, como lhe era adequado. O veado recebeu um pedaço menor que o da anta. Os pombos tomaram um pedaço pequeno. Veio o sapo e pediu que lhe dessem também um pedaço. Os papagaios jogaram um pedaço na sua direção, o qual grudou nas suas costas: por isso o sapo ainda hoje tem o ânus nas costas. Todos os animais [N.T.: Quer dizer, os quadrúpedes], os pássaros e os peixes receberam um pedaço. Veio então o pequeno peixe Karoíd [N.T.: Uma pequena espécie de enguia, que existe nas águas das regiões montanhosas] e também pediu um pedaço. Os papagaios jogaram um pedaço na sua direção, o qual ficou pendurado na sua garganta: ainda hoje ele tem o ânus no pescoço. Foi assim que adquirimos nossos ânus. Se hoje não o tivéssemos, íamos ter que defecar pela boca, ou então arrebentar.

In "Mitos e Lendas dos Índios Taulipangue e Arekuná", de Theodor Koch-Grünberg, trad. de Henrique Roenick e revisão de M. Cavalcanti Proença, Revista do Museu Paulista NS vol. VII, 1953. Transcrito da nova edição, revista por Sérgio Medeiros em colaboração com Rafael Lopes Azize, publicada em Sérgio Medeiros, Makunaíma e Jurupari, cosmogonias ameríndias, São Paulo, Perspectiva, 2002, pp. 101-102.

Comentário de Koch-Grünberg, na sua introdução ao textos dos mitos, p. 57 da edição de S. Medeiros: "Pu'iito é, com certeza, a personificação mais esquisita de que se tem memória". Endosso entusiástico dos leitores. Este mito é o M524 de L'Origine des Manières de Table (p. 393).

Lembremos é claro da igualmente imortal observação do Anti-Édipo: “o primeiro órgão a ser privatizado, a ser expulso socialmente de campo, foi o ânus”. Abre-se então a questão: a história de Pu'iito relata a primeira privatização do ânus, ou, muito ao contrário, sua socialização primordial? Fico com a segunda alternativa. Afinal, Pu'iito era uma espécie de auto-monopólio, avaro de si mesmo, sujeitinho insolente que não só era privado, mas que ao sê-lo, privava aos outros de si. Problema equivalente ao da interpretacão do ditado popular: ”quem tem cu, tem medo“. Medo, e não, por exemplo, ações da Telemar?

p.s.: No dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, é atribuído à palavra “diferencial” a acepção (proveniente do regionalismo português) de “ânus”.

Fonte: AmaZone...

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