11 de janeiro de 2008

Carta de um jovem Kuntanawa

Vila Restauração, no Alto Juruá

"Senhores governantes deste país e todos simpatizantes da causa indígena da Amazônia brasileira, de qualquer lugar do mundo. Sou um jovem de 25 anos, um dos principais líderes do meu povo Kuntanawa que vive no alto rio Tejo, um dos principais afluentes do rio Juruá. Nesta carta gostaria de chamar ou pedir a atenção de todos para a nossa causa.

Em 1911, meu povo sofreu um ataque muito cruel pelo homem branco, quase causando o extermínio do meu povo, restando apenas cinco pessoas. Durante muito tempo fomos massacrados e escravizados pela exploração da borracha, fomos obrigados a deixar de falar nosso próprio idioma e proibidos de praticar vários outros costumes da nossa tradição. O tempo foi passando e aquela situação tão constrangedora cada vez mais deixava meu povo indignado por não ter sua liberdade e sermos sempre subordinados aos seringalistas que se diziam donos de nossa terra. Meu povo já sem saber o que fazer. Foi quando conhecemos uma pessoa por nome Antonio Luiz Batista de Macedo, que com uma outra pessoa por nome Francisco Barbosa de Melo, que também era filho daquele lugar, nos trouxeram uma proposta que nos chamou bastante atenção: criar ali uma Reserva Extrativista, o que para nós seria muito importante, era uma oportunidade de sair do comando dos seringalistas.

Sonhamos com nossa liberdade e ter uma vida digna perante a sociedade. Não medimos esforços. Meu povo dedicou sua própria vida, houve conflitos, muitas ameaças por parte dos patrões, mas mesmo assim meu povo foi bravo e corajoso, não desistimos e junto com outros povos da floresta criamos a tão sonhada Reserva Extrativista do Alto Juruá.
No início, tudo parecia ter chegado ao final do problema. Chegamos a conduzir o processo administrativo de desenvolvimento da organização dos moradores daquela área e tudo estava dando certo. Tivemos conquistas importantes para todos daquele lugar. Nossa relação com os não-índios era muito harmoniosa.

O tempo foi passando e as coisas foram mudando. Acompanhei de perto, mesmo criança na época. Talvez diferente de outra criança qualquer, acompanhava os passos do meu pai. Aprendi bastante com cada homem comprometido que mostrava seu interesse de ver as coisas darem certo. Só que nem tudo foi como a gente pensou. Tivemos uma grande surpresa que foi um grande impacto para meu povo: novas pessoas que na época não faziam parte da luta assumiram o comando da Associação dos Seringueiros e Agricultores da Reserva Extrativista do Alto Juruá, mudando totalmente o seu projeto.


Para meu povo, o que nos causou mais revolta foi o fato de terem nos destratado, nos acusando de sermos um empecilho para o crescimento econômico da Reserva. Mas a verdade era que meu povo discordava das ilegalidades que passaram a ocorrer naquela área de preservação dos recursos naturais. Meu povo então parou para refletir e nós descobrimos que realmente a Reserva Extrativista não era mesmo uma terra com nome adequado para um povo indígena. A terra indígena, para nós, é um símbolo permanente da nossa criação e de nossa existência.
Por este motivo, eu peço em nome de meu povo o apoio e a solidariedade de cada um que ler esta carta e entender nossa história, e que se junte a nós em defesa da vida e da natureza.

Tudo que nós tanto queremos é nossa terra demarcada. Queremos reconstituir nosso povo, voltar a viver feliz e cuidando sempre daquele pedaço de terra que para nós é tão sagrado. Temos nossas raízes plantadas neste lugar, da onde as nascentes fazem brotar as águas que banham e matam a sede de milhares de pessoas. Meu povo cresceu. Hoje somos 368 pessoas e todos precisam de terra para morar. Queremos dar continuidade de nossa vida e história nesse lugar. Muito grato a todos e todas que lerem esta carta e um grande abraço em nome de todo meu povo."

Haruxinã (Flávio Kuntanawa) / Rio Branco - Acre, 17 de dezembro de 2007


O Ministério Público Federal no Acre (MPF/AC) enviou recomendação à Fundação Nacional do Índio (Funai) para que a instituição inicie imediatamente o processo de demarcação da área onde vive o povo indígena Kontanawa ou Kuntanawa. Há mais de cinco anos os índios solicitam, por parte dos órgãos e entidades do poder público, o seu reconhecimento como comunidade e, também, pela demarcação da terra onde tradicionalmente vivem. A terra dos Kuntanawa está localizada nas imediações do Rio Tejo, no município de Marechal Thaumaturgo (Acre), em uma área dentro da Resex Alto Juruá. Como não há terras indígenas demarcadas na Reserva, os índios afirmam sofrer tratamento preconceituoso de algumas pessoas que ali residem. São acusados de atrapalhar o processo de desenvolvimento da região, motivo pelo qual sentiram a necessidade da demarcação, com o objetivo principal de manter suas tradições, costumes e culturas.

A Constituição Federal, no artigo 231, reconhece aos índios os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. À União cabe demarcá-las, protegê-las e fazer respeitar todos os bens dos povos indígenas. “A demarcação é a medida apta ao resguardo do modo de vida dessas populações, de sua cultura, de sua identidade e do meio ambiente com o qual elas se relacionam. Devemos garantir, dessa forma, o efetivo respeito aos direitos assegurados aos índios Kuntanawa sobre as terras por eles ocupadas”, afirma o procurador da República Paulo Henrique Ferreira Brito.

A Funai teve, a partir de 14 de dezembro passado, 30 dias para se manifestar sobre o documento, informando se cumprirá ou não a recomendação. Após o encerramento do prazo, dependendo do posicionamento da Fundação, o MPF/AC definirá as medidas judiciais pertinentes.

Fonte: Blog de Mariana Ciavatta Pantoja - Aflora. Leiam também: "Indianidade e Direitos no Alto Juruá", e "Terras Indígenas a identificar e novas demandas territoriais no Acre" . Interessantes aportes podem ser obtidos na leitura de "Cipó e Imaginário entre Seringueiros do Alto Juruá", de Maria Gabriela Jahnel de Araújo (versão pdf).

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