30 de novembro de 2009

Revelações (VI)

Santos Atahualpa em pintura conservada pelo Centro de Estudios Histórico Militares - Peru
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SANTOS ATAHUALPA E OS ASHANINKAS
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"Juan Santos Atahualpa , entre os profetas indígenas, ocupa um lugar eminente. Seu prestígio ele fundava sobretudo na autoridade política e na antiga tradição gloriosa dos Incas. Esteve entre os primeiros expoentes e intérpretes peruanos da grande tragédia dos índios americanos.
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Em 1742, os Campas [Ashaninkas] – habitantes das florestas ao longo das vertentes orientais dos Andes (Peru Central) – insurgiram-se contra o governo espanhol, instigados por Santos Atahualpa, um quíchua da província de Cusco. O seu sucesso, entre pessoas de outra região que não a sua, prova o imenso prestígio de que gozava a civilização incaica. Impregnado desta, Santos ousava pretender para si o trono imperial do Sol, ademais numa sede que estava além dos confins do antigo Império.
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A cristianização dos Campas, pelo menos no sentido formal, se iniciara em 1635, com as primeiras missões franciscanas, as quais, continuando no seu proselitismo e na obra de colonização, nos meados do século XVIII estavam prestes a realizar o amplo projeto de uma estrada de comunicação entre o Peru e o Atlântico; foi quando de repente este obscuro índio de Cusco, Santos Atahualpa, que estivera a serviço de um jesuíta que o educara e conduzira consigo à Espanha, pôs por terra todos os seus planos.
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Apresentou-se aos Campas da aldeia de Qusopango como fugitivo perseguido pela polícia espanhola do Peru, que o acusava de crime; e conseguiu convencer o chefe local de ser um autêntico descendente dos soberanos incas; e ao seu nome acrescentou o apelativo Apu Inca. Segundo afirmações suas, seus familiares teriam sido raptados pelos espanhóis, mas ele conhecia os tesouros escondidos dos Incas, e o revelaria logo que subisse ao trono que o esperava. Dizia-se filho de Deus, que viera por fim à escravidão, bem como aos cansaços molestos das plantações e das fornalhas dos brancos. Os incrédulos seriam exterminados; aos fiéis choveriam nas mãos as infinitas riquezas e os produtos dos espanhóis. Santos Atahualpa anunciava para logo a reconstituição do império inca, o fim da era de dominação espanhola. O que atraía de modo particular em seu programa era a libertação dos nativos do pesado jugo de servidão aos missionários e às autoridades espanholas, entre os quais estavam os trabalhos nos campos de coca e nos moinhos manuais. Nisto Santos contava igualmente com o apoio dos negros e dos mestiços.
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Quanto ao programa religioso de Santos, é digno de notar que ele preconizasse o nascimento de uma igreja cristã indígena com os próprios padres de origem índia. Isso deve ter sido determinado por uma experiência do profeta: durante uma etapa de sua viagem à Europa, se demorara algum tempo em Angola e fora surpreendido pela existência de padres cristãos de origem negra. De outro lado, herdava certos elementos religiosos da tradição local índia: entre outras coisas, insistia no caráter sagrado da coca, ‘planta de Deus’, que os índios mastigavam por tradição, e cujo uso era, contudo, condenado pelos espanhóis.
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As missões católicas sentiram o perigo que estava incubado no movimento: elas se dissolveram e partiram, enquanto Santos mandava preparar as armas (arcos, flechas, maças) e formava uma guarnição de negros. Nos combates e na guerrilha que se seguiram contra as forças espanholas, os índios resistiram bem, desfrutando habilmente do conhecimento das densas florestas que cobriam os vales que desciam para o Amazonas, onde ao contrário os espanhóis se perdiam. A insurreição geral das aldeias e das cidades do planalto, sonhada por Santos, não ocorreu; mas em 1750 os espanhóis, sem conseguir por as mãos sobre o profeta, tiveram de contentar-se em criar-lhe uma barreira na fronteira, renunciando contudo aos vastos territórios já abertos pela coragem e iniciativa dos missionários. A partir de então, Santos não parou de falar de si mesmo; mas provavelmente continuou a dominar os Campas. Morreu em consequência de acidente, morto por um fundibulário que – talvez para por à prova sua pretensa imortalidade – quebrou-lhe o crânio com uma pedra. Mas os Campas veneraram por longo tempo, até épocas recentes (por um século e meio), a tumba e a memória do profeta: uma figura a sua que, embora na grotesca promiscuidade dos elementos que a formaram, soubera resgatar a sua dignidade cultural, fazendo-os alimentar a esperança de uma sonhada liberdade, e a restauração do antigo reino dos Incas."
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Fonte: LANTERNARI, Vittorio. "As Religiões dos Oprimidos – Um estudo dos modernos cultos messiânicos". São Paulo: Perspectiva, 1974. Col. Debates, v.95. (págs. 199 a 201).

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