Territórios karipunas
Mapa constante como anexo do livro "Rondônia", de Edgard Roquette-Pinto, onde se observa no Rio Madeira os territórios karipunas que foram os principais objetos de destruição quando da construção da ferrovia Madeira-Mamoré
Publicado pela primeira vez em 1917, Rondonia é um clássico das ciências sociais brasileiras. Escrito pelo polivalente Edgard Roquette-Pinto, o livro é resultado da expedição que seu autor promoveu em 1912 à Serra do Norte, numa região dividida atualmente entre os estados de Mato Grosso e Rondônia - este último não existia ainda como unidade da Federação, o que só veio a ocorrer em 1943, com a criação do Território do Guaporé, que reunia terras de Mato Grosso e do Amazonas. Roquette-Pinto fez a viagem ao participar, a convite de Cândido Rondon, da Comissão de Linhas Telegráficas Estratégicas que percorreu aquelas vastidões do Norte do país, travando contato com diversas tribos indígenas. Esgotado há mais de 30 anos, o livro ganhou recentemente a sua sétima edição, em lançamento conjunto da Academia Brasileira de Letras (ABL) e da Editora Fiocruz - que com a republicação lembram também os 50 anos de morte de Roquette-Pinto, que foi médico, antropólogo, radialista, escritor, cineasta e educador, entre outras atividades, etambém membro da ABL, para a qual foi eleito em 1927.
“Um civilizado a quem a civilização não faria falta, porque seria capaz de reconstituí-la dentro da mata, adaptando-se ao meio e extraindo dela valores culturais, sem perda do instinto nativo, ou por um refinamento prodigioso desse mesmo instinto”.
(Carlos Drummond de Andrade)
“Médico, antropólogo e educador brasileiro, filho de Manuel Menelio Pinto e Josefina Roquette-Pinto Carneiro de Mendonça, nascido no Rio de Janeiro, no bairro de Botafogo, em 25 de setembro de 1884, Roquette-Pinto foi o precursor da radiodifusão brasileira, sempre com o objetivo de difundir cultura e educação. Graduou-se em medicina, com especialização em medicina geral, mas logo rumou para a Antropologia, sendo nomeado professor assistente de antropologia do Museu Histórico Nacional em 1906.
Conheceu então uma das figuras mais marcantes para sua biografia e para história do Brasil, o Tenente-Coronel Cândido Mariano da Silva Rondon. Roquette-Pinto acompanhou Rondon em uma de suas expedições à Serra do Norte, tendo contato com os índios Nhambiquaras e pioneiramente filmando uma civilização que ainda vivia na pré-história em plena alvorada do século XX. Filmava e tomava apontamentos a todo instante em seus cadernos de viagem.
Nessa expedição – e em toda a sua vida - foi etnógrafo, sociólogo, geógrafo, arqueólogo, botânico, zoólogo, linguista, farmacêutico, legista, fotógrafo, cineasta e folclorista. Com todas as experiências e anotações que trouxe na bagagem, Roquette-Pinto passou os 4 anos seguintes escrevendo um dos marcos da Etnografia brasileira, o livro ‘Rondônia’, que o levaria posteriormente à Academia Brasileira de Letras”. (Rádio FM 94,1 - Roquette-Pinto)
“No monstruoso percurso pelas selvas do Mato Grosso e do Amazonas e pelas bacias dos rios Paraguai, Jurena e Gi-Paraná, a morte acompanhou cada passo de Rondon, Roquette e seus homens. Dias e dias de caminhada podiam ser feitos sem sol visível, debaixo da espessa vegetação – e se avançassem um quilômetro por dia isso era considerado ótimo. O princípio da expedição era a pacificação dos Nhambiquaras, até então arredios a qualquer contato com o colonizador. Arredios e hostis. Os mateiros de Rondon eram flechados à distância por mãos invisíveis; outros eram capturados e devolvidos sem cabeças; e ainda outros se feriam nas armadilhas postas por eles. E havia as ameaças permanentes da selva, como os animais e as doenças - varíola, beribéri, impaludismo. Burros, cavalos e bois iam morrendo e sendo deixados para trás. Os Homens eram enterrados pelo caminho e Rondon batizava com seus nomes os acidentes geográficos do percurso. Mas, para o sacrifício de cada homem ou montaria, a expedição garantia um pedaço de chão que se incorporava efetivamente ao Brasil.
Para Roquette-Pinto, era tudo um milagre e esse milagre chamava-se Cândido Rondon. Sendo ele próprio mameluco por parte de avós indígenas, e falando os dialetos de várias tribos, Rondon conseguia repassar para os índios sua mensagem de paz – em nenhuma outra época, na história da América, o choque entre o ‘selvagem’ e o ‘civilizado’ foi tão suave e humano. Para isso, seu famoso lema, ‘Morrer, se preciso for, matar, nunca’, teve de ser, primeiro, entendido pelos brancos que o seguiam. (...)
Os Nhambiquaras contatados por Rondon e Roquette viviam na Idade da Pedra em 1912. Seus machados eram de pedra mal polida. As facas eram lascas de madeira. Não conheciam a navegação, a cerâmica ou as redes de dormir - donde atravessavam os rios a nado, comiam de mão para mão e dormiam direto no chão. Eram cobertos de bernes, pulgas e piolhos. Nunca tinham visto um homem branco ou negro. E o mal que faziam era, muitas vezes, por ingenuidade: ao ouvir o zumbido dos fios telegráficos, pensavam que o poste ocultava uma colméia e o derrubavam em busca do mel. Quando Rondon finalmente conseguiu que se aproximassem do acampamento (o que se deu a zero hora de uma noite memorável para Roquette), seus presentes para eles foram de um comovente simbolismo: machados de aço. Poucos anos depois, os Nhambiquaras, já ‘evoluídos’, iriam rir de seus velhos machados de pedra”. (Ruy Castro)
- Roquette e a Nova Raça
"É preciso ir lá para retemperar a confiança nos destinos da raça, e voltar desmentindo os pregoeiros de sua decadência. Não é, nem pode ser nação involuída, a que tem meia dúzia de homens capazes de tal heroísmo”. (Roquette Pinto)
Ao contrário das racistas teorias esposadas por pseudo-cientistas da época, Roquette acreditava na miscigenação e na formação de uma nova e formidável raça na ‘Terra Brasilis’. Contestava, veementemente, as teses, vigentes, de cientistas como Louis Agassiz e sua esposa Elizabeth Cary Agassiz que afirmavam categoricamente que: “Não se pode negar a deterioração causada pela mistura de raças, mais presente aqui do que em qualquer outro lugar do mundo. Ela está ceifando rapidamente as melhores qualidades do homem branco, do negro e do índio, deixando em seu lugar um tipo mestiço (mongrel) sem qualidades específicas, deficiente em suas energias físicas e mentais”.
- Roquette e Rondônia
“No futuro, mais precisamente em 1956, o crítico e ensaísta Álvaro Lins estabeleceria uma outra virtude de ‘Rondônia’: a literária. Segundo ele, era pela força estilista de seu tratado científico (e não pelos fracos contos e poemas que depois escreveria) que Roquette-Pinto fazia parte da literatura brasileira. E Gilberto Freyre, outro exigente no seu julgamento dos colegas, nunca deixaria de elogiar, ao lado da exuberante escrita de ‘Rondônia’, a ‘segura base cientifica’ de Roquette – distinção que não conferia a mais ninguém daquele tempo. Em seu livro ‘Ordem e Progresso’, Gilberto Freyre menciona treze vezes a seriedade de Roquette. O qual, não importavam as loas, sempre foi modesto ao falar de sua obra-prima: ‘É um instantâneo da situação social, antropológica e etnológica dos índios da Serra do Norte, antes que principiasse o trabalho de alteração que nossa cultura vai processando. É prova fotográfica – um clichê cru’.
Mas, naturalmente, era muito mais que isso. Suas experiências com os nativos e com os homens do sertão deram a Roquette os instrumentos para desfechar uma campanha anti-racista que atingiria em cheio o arianismo então vigente no Brasil. Para muitos naquela época (como para alguns ainda hoje), nossas mazelas seriam originárias da presença dos negros, mestiços e índios na composição racial brasileira. A tese original era do diplomata francês Joseph Arthur, conde de Gobineau (1816-1882), autor de uma teoria racial da História e que um dia resultaria no nazismo. Uma visão ‘benigna’ do problema, defendida pelo então diretor do Museu Nacional, o antropólogo João Batista de Lacerda, apostava no ‘embranquecimento’ do povo: em poucas décadas, os sucessivos cruzamentos extinguiriam a raça negra no Brasil... Mas Roquette, que via o Brasil como ‘um imenso laboratório de antropologia’, pensava diferente: ‘Nenhum dos tipos da população brasileira apresenta qualquer estigma de degeneração antropológica’, escreveu ele, ‘Ao contrário. As características de todos eles são as melhores que se poderiam desejar. (...) O número de indivíduos somaticamente deficientes em algumas regiões do pais é considerável. Isso, porém, não corre por conta de qualquer fator de ordem racial; deriva de causas patológicas cuja remoção, na maioria dos casos, independe da antropologia. É questão de política sanitária e educativa. (...) A antropologia prova que o homem no Brasil precisa ser educado e não substituído’. (Ruy Castro)
O livro enaltecia, sobremaneira, a figura notável de Rondon e para que o Brasil tivesse noção do quanto essa região devia a ele, propôs que o território, compreendido entre os 8° e 14° de latitude sul e entre 12° e 20° de longitude oeste viesse a se chamar Rondônia.
“A essas terras, ele sempre se referiria como ‘terras da Rondônia’, tais e tão importantes eram os elementos geológicos, geográficos, botânicos, zoológicos e etnográficos dela provenientes, através das expedições científicas de Rondon. Embora justificasse plenamente, desde 1915, a criação dessa província antropogeográfica, o nome de Rondônia só foi adotado para território brasileiro em 1956, quando o Congresso Nacional votou lei mudando o nome do Território do Guaporé, a fim de homenagear o Marechal Rondon.
Na ocasião, aliás, a Sociedade Brasileira de Geografia, em memorial dirigido ao Presidente da República, agradecia o gesto do Governo, mostrando, porém que, para manter a homenagem pretendida por Roquette-Pinto, seria preciso dividir a região em Rondônia Ocidental e Rondônia Oriental, a fim de que a denominação Rondônia pudesse alcançar águas do Juruena, onde foram notáveis as descobertas da Comissão Rondon. A Rondônia Ocidental seria o atual território, outrora denominado do Guaporé, e a Rondônia Oriental seria a região semi-virgem que prolonga aquela para o lado Leste, dentro do Estado de Mato Grosso, entrando em águas do Jurena. O memorial interpretativo da Sociedade Brasileira de Geografia não foi, contudo, levado em conta...” (Coutinho)
- Roquette-Pinto e a antropologia sul-americana
“Para Roquette-Pinto, a obra científica e social de Rondon não pode ser assaz admirada, conquistando milhares de quilômetros quadrados, fazendo de cada índio, cuja ferocidade não era lenda vã, e cuja animosidade sacrificou tantos homens, um amigo, abrindo à ciência um campo enorme de verificações e descobertas; à indústria, todas as riquezas de florestas seculares. Assinala, ao voltar da sua Rondônia, que, se como estudioso, as observações científicas que pode realizar - quase todas de grande alcance para o conhecimento da antropologia sul-americana - o encheram de alegria; brasileiro, deu-se por bem pago daqueles dias de privações e perigos, porque voltou daquelas terras com a alma refeita, ‘confiante na sua gente, que alguns acreditam fraca e incapaz, porque é povo magro e feio’.
Diz Roquette-Pinto: ‘São feios, efetivamente, aqueles sertanejos; muitos, além disso, vivem trabalhando, trabalhados pela doença. Pequenos e magros, enfermos e inestéticos, fortes, todavia, foram eles conquistando as terras ásperas por onde hoje se desdobra o caminho enorme que une o Norte ao Sul do Brasil, como um laço apocalíptico, amarrando os extremos da pátria’. (Coutinho)
Fontes: Coronel de Engenharia Hiram Reis e Silva - professor do CMPA (Colégio Militar de Porto Alegre) - Acadêmico da Academia de História Militar Terrestre do Brasil (AHIMTB) - Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS) - hiramrs@terra.com.br ; Coutinho, Edilberto – Rondon - o civilizador da última fronteira - Brasil, Rio de Janeiro, 1969 – Olivé Editor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário