6 de novembro de 2009

Pirataria no Xamanismo


"Nas tradições indígenas, o pajé é a expressão máxima representada, em forma humana, da espiritualidade e da cura. Seu dom é nato, porque é passado de geração para a geração. Nenhum pajé faz curso para ser pajé, ele adquire conhecimentos através da ancestralidade tribal, e desde a sua infância, ao ver seus avós e bisavós praticarem curas e rezas pelo bem da comunidade. O pajé é um ser totalmente desprovido de valores materiais. É um visionário nato. Seu maior bem é o dom ofertado com honras pelo Criador. Ele está sempre em conexão com o mundo atemporal, com atitudes concentradas e observadoras. O pajé é um sábio e está sempre disponível para atender o seu povo, doando sua cura de forma "solidária". Não há uma relação capitalista entre pajé e doente, entre o pajé e a comunidade. O pajé e sua pajelança representam, na realidade, a maior expressão nata dos conhecimentos tradicionais, a propriedade intelectual indígena, mesmo que ele não tenha conhecimentos científicos para compreender a defesa dos seus direitos indígenas. Por outro lado, cada pajé pertence a uma etnia específica indígena provida de valores, costumes, crenças específicas. Um pajé de uma certa etnia pode agir de forma distinta de um pajé de outra etnia. O pajé pode ter, se quiser, uma relação capitalista com indivíduos urbanos, pois o seu ofício equivale ao de um médico entre nós.
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O xamanismo é um termo que designa a filosofia de estar em viagem entre mundos mentais, físicos, espirituais, psicológicos. Não é uma religião. É uma forma de estar na vida e no Planeta. Povos contestadores das religiões impostas adaptaram-se a esse estar no mundo, ao longo do tempo. Antigos povos já praticavam essa filosofia. Na modernidade, seres conscientes adquiriram o sentimento de amor pela Mãe-Terra e entenderam que era necessária a prática da conservação do Planeta Terra - daí todo "ser xamânico" ser holístico. Aqueles que verdadeiramente estiverem dentro desses padrões, são Visionários. Os que mentem ou comercializam a fé, não permanecerão
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O leio em uma busca na web e reflito. Ricardo Kelmer complementa em "Xamanismo da vida fácil":
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"O antigo sistema das sociedades primitivas, que girava em torno do xamã e sua técnica do êxtase, é o novo xodó dos místicos de fim de semana. Agora espaços esotéricos oferecem cursos de xamanismo e muitos "formam xamãs". É como fazer um curso para tornar-se gênio. Gênios existem, claro, mas o último lugar para encontrar um, pode ter certeza, seria num curso para gênios. O xamanismo, a rigor, é um fenômeno religioso originário de sociedades primitivas da Ásia central e siberiana e que tem no xamã o centro da vida mágico-religiosa da comunidade. Por dominar as técnicas do êxtase e ser capaz de acessar mais facilmente estados especiais de consciência e, com isso, se locomover com fluidez pelas várias dimensões da realidade, aos xamãs era atribuída a competência de intermediar o mundo físico e o espiritual, utilizando o conhecimento adquirido nas incursões ao além para ensinar, curar, realizar atos milagrosos e também entreter os membros da comunidade.
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O xamã encarnava em si as funções de professor, sacerdote, feiticeiro, médico e muitas vezes poeta e artista. Nessas sociedades não havia curso de fim de semana para formação xamanística. Excluindo-se raras exceções, alguém se tornava xamã por vocação natural: o indivíduo era simplesmente compelido a aceitar o fato, mesmo a contragosto. Era comum também a transmissão hereditária do ofício. Em qualquer das vias, antes de ser reconhecido como xamã, o indivíduo (em geral homem) inevitavelmente passava por um delicado e doloroso processo de iniciação. Esse processo podia ser desencadeado naturalmente por uma doença ou sistematicamente ritualizado sob orientação de um xamã experiente. É isso que permitia ao futuro xamã efetuar uma notável reintegração psíquica, aflorando suas potencialidades e preparando-se convenientemente para as funções que desempenharia.
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Não pense que essa preparação era algo, digamos, festivo. Longe disso. Como todo verdadeiro processo de iniciação, nesse também havia dúvidas, temores e sofrimentos difíceis de suportar. O futuro xamã experimentava a morte e a ressurreição místicas, padecendo terrivelmente sob todos os horrores de seu inferno íntimo para depois emergir à vida cotidiana sobrevivido e triunfante, mais sábio e mais forte. Somente se submetendo a todos os rigores desse processo de morte e renascimento pessoal é que o indivíduo podia se tornar um xamã. Para nós, ocidentais civilizados, entendermos melhor o que se convencionou chamar xamanismo, é preciso ter sempre em mente que os antigos compreendiam a Terra como um ser vivo, dotado de uma espécie de inteligência e vontade própria, e os seres humanos, assim como animais, plantas e minerais, eram parte integrante do imenso organismo planetário, todos igualados em importância. Mais que um ser vivo, entretanto, a Terra era a Grande Mãe, que gera e nutre todas as suas criações com infinito amor, ensinando e guiando os seres humanos vida afora. Assim sendo, a Natureza inteira era algo sagrado e desrespeitar suas leis era atentar contra a própria vida, contra toda a comunidade e contra a Sagrada Mãe.
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O xamã, nesse contexto de espontânea interação com a Natureza, é alguém dotado de poderes especiais para manter-se num contínuo estado de profunda comunicação com o espírito da Terra, a quem jurou obedecer e defender até o último de seus dias. Como se possuísse antenas hiper-sensíveis, o xamã está intimamente conectado à alma da Terra e por isso vive em si mesmo o equilíbrio vital do planeta, imperceptível à maioria: se a Terra adoece, ele adoece também. Em reconhecimento à sua lealdade e reverência, a Grande Mãe põe à disposição do xamã segredos do mundo animal, vegetal e mineral, para onde ele, em espírito, vai frequentemente em busca de informações úteis ao bem-estar de sua comunidade. Quanto mais ele sabe, mais servo se torna. Quanto mais se anula, mais ele pode. Em contraste com a humildade espiritual desses antigos guardiães da tradição xamânica, muitos dos que hoje se dizem xamãs ostentam o título feito um estandarte, anunciando as maravilhas que têm para oferecer. Se de fato entendessem o que significa a função que tanto se pretendem impor, jamais vestiriam a antiga tradição com roupas tão vistosas e muito menos a exibiriam em poses tão constrangedoras nas vitrines coloridas de seus cursos. "
Hoje em dia proliferam xamãs profissionais. Está certo que nas origens da própria religião estava o teatro, estruturando rituais coletivos de grande complexidade dramática. Está certo que na urbanidade há a carência de conexão com a natureza viva, conexão esta que o xamanismo e sua ritualística propiciam. Entretanto, não existe xamã que possa ser professor sem nunca ter sabido ser aluno e aprendiz, por mais dons inequívocos que alguém porventura tenha herdado de vidas passadas ou de antepassados. Para saber ensinar é preciso primeiro saber aprender, e não é isso que se encontra em muitos que se pretendem xamãs, pelo contrário, há muito autodidatismo baseado em leituras apressadas (muitas vezes de traduções truncadas) de relatos etnológicos ou depoimentos de xamãs. Para os verdadeiros pajés e xamãs, esta é outra faceta da pirataria cultural e também da biopirataria, mais uma forma de exploração do conhecimento tradicional indígena por parte dos ditos "civilizados", sem nenhum retorno ou vínculo com as populações portadoras deste conhecimento sagrado. Aos que queiram seguir nessa trilha, é bom estar alerta contra as falsas aparências e as escolas de xamanismo abertas por alguns que se dizem "iluminados", para não se cair no culto à personalidade e no vazio das falsas correntes espirituais. Busquem a autenticidade, e ela estará a seu lado, pois quem busca a desonestidade, nela própria vive enredado.

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