29 de novembro de 2009

Revelações (V)

"Nhanderu-Vusú", pintura de Patricia Solari


OS HOMENS-DEUS EM BUSCA DA TERRA SEM MALES

“Os homens-deus, poderosos xamãs locais, se apresentam aos índios [da América do Sul] como chefes religiosos e hegemônicos, encarnações de um herói cultural do mito indígena, anunciadores de uma era de renovação e de uma nova religião. Eles se opõem mais ou menos sistematicamente ao domínio dos brancos, fazendo-se intérpretes da reação nativa contra os ultrajes e as humilhações sofridas da parte dos portugueses e espanhóis, leigos e missionários. Os homens-deus vêm, pois, criar em torno de si outros focos de resistência contra os brancos, fundando uma unidade de novo tipo entre aldeias e tribos, frente a um opositor comum. Os homens-deus, chamados pajés segundo as fontes originais, se vangloriam de poder conferir aos prosélitos longevidade e até imortalidade, e de curar doentes. Representam figuras institucionais de sacerdotes-xamãs, cuja origem é indubitavelmente anterior à época colonial e mergulha no cabedal religioso originário local, com o seu fundamento xamanístico. No entanto, a conquista dos brancos teve, por certo, o efeito imediato de incrementar o número e a difusão destes homens-deus. (...)
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Claude d’Abbéville nos informa sobre a atividade de um destes homens-deus. Nos últimos anos do século XVI, cerca de oito a dez mil índios da região do Rio de Janeiro se puseram em marcha para seguir a um ‘profeta’, um mestiço de índio e português (o caso dos profetas mestiços não é excepcional). Nutriam assim cega confiança nele, de modo a suportar de bom grado a fadiga do longo caminho. O chefe proclamava ter nascido, não da união entre homem e mulher, mas da boca de Deus. Deus o teria enviado à terra para fundar uma nova religião. Segundo a fonte de informação, ele realizava prodígios, proporcionando alimento e bebida aos seus sequazes, e arrastava consigo os habitantes das aldeias por onde passava. A onda destes nativos fanatizados chegou até perto de Pernambuco, do Maranhão, e chocou-se enfim com a resistência dos montanheses da Serra de Ibiapaba. O profeta morreu; fome e doenças dizimaram os fiéis.
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Note-se, entre outras coisas, que os prodígios atribuídos ao profeta, particularmente de dar alimento e bebida aos fiéis, repetiam o modelo mítico dos prodígios atribuídos aos heróis (piaye) da mitologia apapocuva-guarani. (...) Entre os Guaranis do Paraguai, existiam figuras de homens-deus, totalmente distintas dos xamãs comuns. Estes últimos tinham a prerrogativa de se comunicar com os espíritos; mas os homens-deus se apresentavam aos seus sequazes como filhos do espírito, sem pai terreno, donos de uma sabedoria particular e taumatúrgica, vaticinadores do futuro, autores de todo tipo de prodígios e práticas mágicas. Vangloriavam-se de uma natureza divina e afirmavam ter criado céu e terra e de poder trazer chuva. Padre Lozano (fonte de 1875, relativa ao século XVI) conta que um destes messias, vindo da costa do Brasil para Loreto, proclamava-se dominador da morte e das mulheres, senhor das messes, capaz de aniquilar com um sopro o universo que ele mesmo criou. Com efeito, estes profetas-messias apenas assumem sobre si mesmos as qualidades e os atributos próprios dos antepassados míticos ou heróis culturais, dos quais pretendem ser reencarnações terrenas. Também Nhanderuvuçu, herói cultural dos Apapocuva-Guarani, tinha o poder de destruir com um sopro o universo por ele criado. Assim, ele já o destruíra uma vez e depois o criara de novo, e estava meditando – segundo o mito – a ruína posterior. Justamente por isso, como já se disse, os Guaranis antigos e modernos esperam angustiadamente os sinais da anunciada catástrofe. Em conclusão, o messias ou homem-deus brasileiro outra coisa não é que a encarnação do herói cultural do mito local.”

Fonte: LANTERNARI, Vittorio. “As Religiões dos Oprimidos – Um estudo dos modernos cultos messiânicos”. São Paulo: Perspectiva, 1974. Col. Debates, v.95. (págs. 196 a 198).

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