19 de agosto de 2007

Ohiyesa e Nerburn no estudo do silêncio

Ohiyesa (Charles Alexander Eastman) estudante santee sioux de Dartmouth em 1887, um dos mais influentes líderes indígenas americanos de sua época.

"O silêncio não é o contrário da palavra. É a matriz dela. O sábio pronuncia a palavra como fonte de água viva. Ele não fala pela boca, e sim do mais profundo de si mesmo", diz Frei Betto. (...) Um dia num seminário sobre saúde perguntei a um grupo indígena: Porque vocês indígenas andam sempre em fila indiana pela mata, se deste jeito não dá para conversar direito? Um pajé velho, sorridente, respondeu: "Índio não fala na mata, índio fala em casa - na mata, índio escuta!..." Aprender a escutar é a grande tarefa do ser humano ainda hoje. Escutar e escutar sempre de novo é tudo o que o ser humano deve ser capaz. E, ao escutar, aprende de todas as pessoas e de todos os seres vivos, porque falam e cantam. E, se o ser humano é feito à imagem e semelhança de Deus, também ele faz-se um ser de escuta.

Refletindo sobre a sabedoria indígena do silêncio, deparei-me com essas reflexões do sábio ameríndio Ohiyesa (1858-1939): "Nossa contribuição pra nossa nação e o mundo não é mensurável em termos materiais. Nossa maior contribuição tem sido espiritual e filosófica. Silenciosamente, somente pelo exemplo… nós vivemos e viveremos, não apenas do esplendor de nosso passado, a poesia de nossas lendas e arte, não apenas na interfusão do nosso sangue com o vosso, mas no coração vivo da nação."

Ohiyesa (que em sua língua quer dizer "Campeão"), tinha como nome oficial o de Charles Alexander Eastman, e foi um ameríndio pioneiro que graduou-se em Medicina na Universidade de Boston, nos Estados Unidos da América. Eastman serviu na Agência Pine Ridge, Dakota do Sul, e foi testemunha dos acontecimentos anteriores e seguintes ao Massacre de Wounded Knee em 29 de Dezembro de 1890. Ele também escreveu livros chamados "Indian Boyhood", "Red hunters and the Animal people", "Wigwam Evenings", "The Madness of Bald Eagle", "Old Indian Days", "The Soul of the Indian", "Indian Child Life", "Indian Scout Talks", "The Indian today", "From the Deep Woods into Civilization", e "Indian Heroes and Great Chieftains". Natural de Minnesota em 1858, ele obteve graus de pós-graduação e aconselhou presidentes norte-americanos antes de retornar à vida tradicional nas florestas nativas. "Ohiyesa foi, de coração, um poeta do espírito e o o portador de uma visõ espiritual. Com crescente fervor conforme envelhecia, foi um pregador da visão nativa da vida. Acredito que é sua visão espiritual, acima de tudo, o que nós de nossa geração necessitamos ouvir. Temos fome das palavras e percepções do nativo americano, e nenhum homem fala com mais percepção ou claridade que Ohiyesa....", escreveu Kent Nerburn, seu conterrâneo de Minessotta, na introdução de seu livro"Soul of An Indian: And Other Writings from Ohiyesa".

Kent Nerburn também escreve sobre o processo histórico dos índios norte-americanos em obras como "Nem Lobo nem Cão - Por Trilhas Esquecidas com um Ancião Índio" ("Neither Wolf nor Dog - On Forgotten Roads with an Indian Elder", ainda não traduzido para o português):

"Deixe-me te contar como perdemos a terra. Não era nossa terra, como se nos pertencesse. Era a terra onde caçávamos e onde nossos ancestrais estavam sepultados. Era a terra que o Criador nos havia dado. Era a terra onde aconteciam nossas histórias sagradas. Havia lugares sagrados nela. Nossas cerimônias se realizavam aqui. Conhecíamos os animais, eles nos conheciam também. Presenciamos o passo a passo das estações nesta terra. Estava viva, como nossos avós. Éramos parte dela. A terra era parte de nós. Nós nem sequer sabíamos o que significava ser proprietário da terra. Seria como dizer que você é proprietário de sua avó. Para nós, a terra estava viva. Mover uma pedra significava alterá-la. Matar um animal era tirar algo dela. Tinha que haver respeito. Nós não vimos respeito nessa gente. Cortavam as árvores e deixavam os animais mortos onde os matavam. Faziam ruídos fortes. Pareciam selvagens. Essas pessoas cavalgavam pela terra e colocavam uma bandeira e logo diziam que tudo, desde onde haviam começado até onde colocavam a bandeira, lhes pertencia. Isso é como se alguém disparasse uma flecha no céu e dissesse que todo o céu até onde chegasse a flecha, lhe pertenceria. Nós pensamos que esta gente estava loca. Eles falavam de propriedade. Nós falávamos da terra. Seus sacerdotes podiam tornar sagrados qualquer lugar, mas não podiam entender que sagrado para nós era o lugar onde estávamos, porque aí era onde aconteciam coisas sagradas e onde os espíritos nos falavam. Sua gente não sabia nada sobre o sagrado da terra. Vocês estavam matando a todos os animais. O búfalo havia desaparecido. As aves haviam desaparecido. Vocês não nos permitiam caçar. Nos davam mantas e uísque, que enloquecia nossa gente. Vocês vieram à nossa terra e a tiraram de nós e nem sequer nos escutaram quando tentamos explicar. Fizeram promessas e romperam cada uma delas. Nos mataram sem tirar-nos a vida. Vocês nos tiraram os lugares onde os espíritos nos falavam e nos deram sacos de farinha. Para nós, a terra estava viva. Ela nos falava. Nós a chamávamos nossa mãe. Se ela estava chateada conosco, não nos dava alimentos. Se nós não dividíamos com os demais, ela nos enviada invernos duros ou pragas de insetos. Tínhamos que fazer coisas boas por ela e viver da maneira que ela considerava apropriada. Ela era a mãe de tudo o que habitava nela, portanto todos eram nossos irmãos. Os ossos, as árvores, as plantas, o búfalo. Todos eram nossos irmãos e irmãs. Se não lhes tratávamos bem, nossa mãe ficava chateada. Se lhes tratávamos com respeito e honra, ela se sentia orgulhosa. Para sua gente a terra não estava viva. Era algo assim como um cenário onde podiam construir coisas e fazer coisas. Viam o lodo, as árvores e a água como coisas importantes, mas não como irmãos e irmãs. Essas coisas exitiam só para ajudar os humanos a viver. Vocês tomaram a terra e a converteram em propriedades. Agora nossa mãe está em silêncio. Mas ainda tentamos ouvir sua voz".


Nerburn é um escritor PhD em Teologia e Arte, educador e escultor que tem estado profundamente envolvido no tema, havendo desenvolvido um projeto de história oral na Reserva Red Lake Ojibwe no norte de Minessotta. Dirigiu dois projetos de livros - "To Walk the Red Road" e "We Choose to Remember" e publicou obras aclamadas como . "Native American Wisdom" e "The Wisdom of the Great Chiefs", dentre outros. "Neither Wolf nor Dog" virou um roteiro de sua autoria que será dirigido pelo hábil John Irvin. Ele nos brinda em seu trabalho essas palavras finais para nossa reflexão:

Nós, os índios, conhecemos o silêncio. Não temos medo dele. Na verdade, para nós ele é mais poderoso do que as palavras. Os nossos ancestrais foram educados nas maneiras do silêncio e transmitiram-nos esse conhecimento. "Observa, escuta, e logo atua", nos diziam. Esta é a maneira correta de viver. Observa os animais para ver como cuidam dos seus filhotes. Observa os anciãos para ver como se comportam. Observa o homem branco para ver o que ele quer. Observa sempre primeiro, com o coração e a mente quietos, e então aprenderás. Quanto tiveres observado o suficiente, então poderás atuar. Com vocês, brancos, é o contrário. Vocês aprendem falando. Dão prêmios às crianças que falam mais na escola. Nas vossas festas, todos tratam de falar. No trabalho estão sempre a ter reuniões nas quais todos interrompem a todos, e todos falam cinco, dez, cem vezes. E chamam a isso "resolver um problema". Quando estão numa habitação e há silêncio, ficam nervosos. Precisam preencher o espaço com sons. Então falam, compulsivamente, mesmo antes de saber o que vão dizer. Vocês gostam de discutir. Nem sequer permitem que o outro termine uma frase. Sempre interrompem. Para nós isso é muito desrespeitoso; e muito estúpido, inclusive. Se começas a falar, eu não vou interromper-te. Escutar-te-ei. Talvez deixe de escutar-te se não gostar do que estás a dizer. Mas não vou interromper-te. Quando terminares, tomarei a minha decisão sobre o que disseste, mas não te direi se não estou de acordo, a menos que seja importante. Caso contrário, simplesmente ficarei calado e me afastarei. Terás dito o que preciso saber. Não há mais nada a dizer. Mas isso não é suficiente para a maioria de vocês. Deveríamos pensar nas palavras como se fossem sementes. Deveriam plantá-las, e permitir-lhes crescer em silêncio. Os nossos ancestrais ensinaram-nos que a terra está sempre a falar-nos, e que devemos ficar em silêncio para escutá-la. Existem muitas vozes além das nossas. Muitas vozes. Só vamos escutá-las em silêncio.

Fonte: Ermitão da Picinguaba. A obra de Ohiyesa "The Soul of the Indian", publicada em 1911, pode ser lida on line no site Mountainman ou no Globusz, em inglês. Uma tradução em português está "em processo" no site Monde de Livre mas obviamente foi feita através de software, com muitas falhas: em Portugal sim foi publicada como livro em tradução de Paulo Lima (Planeta Vivo, 2005).

Foto em estúdio de Ohiyesa na época da universidade

O velho lakota era sábio. Sabia que o coração do homem afastado da natureza se torna duro; sabia que a falta de respeito para com o que cresce e vive, depressa conduz também à falta de respeito para com os humanos. Por isso mantinha ele os jovens sob a mansa influência da natureza”. (Ohiyesa, em: “A Fala do Índio”).

Um comentário:

Stella Petra disse...

"Nenhum livro pode ensinar aquilo que apenas se pode aprender na infância, se entrega o ouvido e o olho atentos ao canto e ao vôo dos pássaros e se encontra então alguém que pontualmente lhes saiba dar um nome". Ítalo Calvino
A evolução da sociedade tem cobrado um preço alto demais. Afastamos-nos de nossas mais profundas raízes...voltamos-nos para o "Ter" e esquecemos-nos do principal..."Ser".
Obrigado por proporcionar reflexões tão belas e ao mesmo tempo, levar de alguma maneira aos corações que aqui tiverem a felicidade de entrar, uma fagulha da centelha que está quase a se apagar...está aí , é só escutar.
Abraços
Stellinha :)