31 de julho de 2007

Diálogos interculturais de um xamã

Típica moradia Washo (foto de Edward S.Curtis, 1924)

O povo Washo, do Oeste norte-americano, sempre viveu em hostilidades com a nação Paiute, e já viviam deslocados na Califórnia quando tomaram contato com o homem branco. Entre 1860 e 1862 os Paiute se impuseram contra eles e os confinaram a um pequeno território nas proximidades de Carson City, Estado de Nevada. Em 1859 eram contados como um grupo tribal de novecentos indivíduos, mas hoje não resta sequer um terço destes, lutando pela sobrevivência de sua cultura. Os Washo imploravam auxílio a Ti-Kai ("Meu Pai") por alimento, saúde e outras bençãos, e também realizavam rituais xamânicos com o cacto Peyote.

A história de um xamã washo, Henry Rupert, apresentada e comentada por
Don Handelman (1967), constitui um bom exemplo das mudanças sofridas pelos povos desta área a partir de sua ocupação pelos brancos. Henry Rupert nasceu em 1885, em Genoa, Nevada, de pai e mãe washo. Seu pai abandonou a família quando ele tinha três anos de idade e ele só irá vê-lo outra vez, trabalhando num restaurante chinês em Carson City, dezessete anos depois. Sua mãe trabalhava como doméstica em um rancho em Genoa. O marido de sua irmã mais velha era também empregado de um rancho, mas era também um xamã que atuava nas caçadas anuais de antílopes realizadas pelos washos. O marido da irmã de sua mãe também, já sexagenário quando ele nasceu, também era xamã. Henry Rupert convivia com os dois xamãs, tanto nos invernos em Genoa como nos verões nas margens do lago Tahoe (cortado pela fronteira California-Nevada). Já nos seus primeiros anos tinha sonhos que denunciavam seu potencial para atividades xamânicas e místicas.

Aos oito anos de idade, Henry Rupert foi na Escola Indígena Stewart, então sob a supervisão e controle das forças armadas norte-americanas, destinada a crianças indígenas da Grande Bacia, que aí deviam obrigatoriamente cursar até a oitava série. Nos três primeiros anos a criança não podia tirar férias nas casas dos pais. A disciplina era severa, mantida a chibatadas e detenção em celas. Era um centro de aculturação forçada, com batismo à revelia e exposição a missionários de diversas religiões. Também oferecia treinamento em alguma atividade profissional e Henry Rupert aprendeu composição tipográfica, que lhe possibilitou, após sair da escola, conseguir um emprego no jornal Reno Evening Gazette. E por dez anos morou na cidade de Reno.

Assim, Henry Rupert vivia entre dois mundos e suas próprias predisposições xamânicas passaram a receber influências estranhas à tradição washo. Foi o caso do hipnotismo, de que assistiu a uma demonstração num teatro de Reno. Ele resolveu dominar esta técnica, comprando até um livro para aprendê-la. E conseguiu, fazendo ele próprio suas apresentações mensais. Mas ao mesmo tempo continuava a receber instrução conforme as tradições washo. Aconselhado pelo xamã marido de sua tia materna, ele tomou como orientador um outro renomado xamã para ajudá-lo a treinar e controlar seus poderes.

família de índios Washo

Desse modo ele fez sua primeira cura em 1907, conforme técnicas tradicionais washo, que requerem a realização de quatro sessões, as três primeiras do anoitecer até meia-noite e a última a noite inteira, com o uso de tabaco, água, chocalho, assobio e penas de águia. Também sementes verdes e amarelas (que simbolizam alimento) e conchas de haliote (que simbolizam dinheiro) espalhadas ao redor do corpo do paciente. O assobio serve para atrair o objeto ou germe do mal do corpo do paciente para o do xamã, onde pode ser controlado. A água serve para lavagem e aspersões sobre a parafernália e o corpo do paciente. Visões durante os trabalhos permitem ao xamã conhecer a causa do mal e fazer prognósticos.

Mas logo Henry Rupert conseguiu um segundo espírito auxiliar que era um jovem hindu. Esse espírito teria origem no esqueleto de um hindu do laboratório de um colégio de Carson City que ele costumava visitar. Este espírito entrou em disputa pela primazia com as duas mulheres mitológicas que introduziram o poder de cura entre os washos, até que o xamã conseguiu conciliá-los. O espírito hindu reforçou os princípios dos três xamãs washo que tinham orientado a formação de Rupert: ser honesto, discreto, fiel, delicado e não fazer mal. Também inspirou-lhe novas técnicas de cura.

Em 1910 ele se casou com uma mulher paiute do norte, antiga colega da escola Stewart. O pai dela, trabalhador de rancho e confecionador de laços de couro cru, tinha sido um devoto de Jack Wilson o apóstolo da Dança dos Fantasmas (Ghost Dance) de 1890. Era um tempo em que casamentos intertribais era visto de modo desfavorável pelos xamãs e outros conservadores washo. Ele voltou a trabalhar na Reno Evening Gazette, fundindo linotipos, mas suspeitando que a fumaça do chumbo o estava envenenando, retornou para sua família em Genoa, onde trabalhou num rancho até 1924. Nesse ano seus filhos estavam na mesma escola Stewart, mas agora administrada pelo Bureau of Indian Affairs, e ele se retirou com a mulher para Carson Colony, destinada aos washos desde 1916, mas ocupada apenas por famílias paiutes do norte e shoshones (a maior comunidade washo então era Dressville). Sua mulher morreu de tuberculose. Ele plantava morangos e criava perus. Foi um tempo de introspecção, auto-exame e de elaboração de suas idéias relativas ao xamanismo e ao sobrenatural. Sua fama como curador cresceu, era chamado a atender não somente índios de outras etnias, mas também não índios. Assim, em 1942, ele deixou seu emprego de bedel e vigia da Agência Indígena de Stewart, retirando-se para Carson Colony para dedicar-se exclusivamente à cura. E aí continuava em 1964, quando Handelman fez sua pesquisa.

Fonte: Júlio Cesar Melatti

Fotografia dos idos de 1900: mulher Paiute fazendo uma cesta.
Library of Congress; Charles C. Pierce (neg. no. LC-USZ62-104705)

Um comentário:

Jay River disse...

Edward S. Curtis on Film

http://www.youtube.com/watch?v=lqiEx_GtrQM

www.curtisdvd.com