8 de setembro de 2007

A liberdade dos Karajá

Jovem Karajá iniciado na vida adulta vestindo adornos tradicionais. Arte: Winfield Coleman.

"Aceitar a morte para ser livre"
Texto de Leonardo Boff, em estória descrita pelos Karajá, da Ilha do Bananal

No começo do mundo, quando foram criados pelo Ser supremo Kananciué, os Karajá eram imortais. Viviam como peixes - aruanãs - e, desenvoltos, circulavam por todo tipo de rios e águas. Não conheciam o sol e a lua, nem plantas e animais. Mas viviam felizes, pois gozavam de perene vitalidade.
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Estavam, entretanto, sob uma tentação permanente: entrar ou não entrar pelo buraco luminoso que havia no fundo do rio. O Criador lhes havia proibido terminantemente que fizessem isto, sob pena de perderem a imortalidade. Passeavam ao redor do buraco, admiravam a luz que dele saía, ressaltando ainda mais as cores de suas escamas. Tentavam espiar para dentro, mas a luminosidade impedia qualquer visão. Apesar disso, obedeciam fielmente.
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Certo dia, um Karajá afoito violou o tabu da interdição. Meteu-se pelo buraco luminoso adentro e foi dar nas praias alvíssimas do rio Araguaia. Viu uma paisagem deslumbrante. Encontrou um mundo totalmente diverso do seu. Havia um céu de um azul muito profundo, com um sol irradiante, iluminando todas as coisas e aquecendo agradavelmente a atmosfera. Aves coloridas, com seus gorjeios, davam musicalidade ao ar. Animais dos mais diversos tamanhos e cores circulavam pacificamente um ao lado do outro pelas campinas. Borboletas ziguezagueavam por sobre flores perfumadas e florestas exuberantes eram entremeadas por plantas carregadas de frutos.
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Deslumbrado, o índio Karajá ficou apreciando aquele paraíso terrestre até o entardecer. Quis retornar, mas foi tomado por um outro cenário fascinante. Por detrás da verde mata nascia uma lua de prata, clareando o perfil das montanhas ao longe. No céu, uma miríade de estrelas o deixou boquiaberto, a ponto de se perguntar:
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- O que se esconde atrás daquelas casinhas todas iluminadas? Quem lhes acende a luz, para brilharem com tanta força?
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E assim, embevecido, passou a noite até que comecou novamente a clarear e desaparecer a lua. O sol, que parecia ter morrido na noite anterior, ressurgia, glorioso, no horizonte distante.
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Lembrando-se de seus irmãos peixes, regressou com os olhos cheios de beleza, passando rápido pelo buraco luminoso. Foi falar aos seus irmãos e irmãs, dizendo-lhes:
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- Meus parentes, passei pelo buraco luminoso e descobri um mundo que vocês sequer podem imaginar. Contemplei com alegria no coracão o sol, a lua e as estrelas. Vislumbrei com os olhos esbugalhados campinas floridas e infindáveis borboletas. Apreciei animais de todos os tamanhos em florestas verdes e azuis. As praias são alvíssimas e de areias finas. Temos que falar com nosso Criador, Kananciué, para nos permitir morar naquele mundo.
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Mesmo sem entender aqueles nomes todos, os parente ficaram tão curioso que já queriam imitar a coragem do irmão Karajá e, coletivamente, desobedecer, passando pelo buraco proibido. Mas os anciãos sabiamente observaram:
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- Irmãos e irmãs, temos que respeitar nosso Criador, pois nos quer bem e nos fez imortais como ele. Vamos conversar com ele e pedir-lhe as devidas permissões.
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Todos, sem nenhuma excecão, concordaram. Foram falar com seu Criador, Kananciué. Expuseram as boas razões de seu pedido.
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O Criador, depois de ouví-los e, com certa tristeza na voz por causa da desobediência do afoito Karajá, lhes respondeu:

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- Entendo que vocês queiram passar pelo buraco luminoso que os levará a mundo de beleza, de cores variegadas, de diversidade de plantas, de flores, de frutos e de animais. Contemplarão, sim, a majestade do céu estrelado, o esplendor do sol e a suavidade da lua. Divertir-se-ão nas águas claras do Araguaia e rolarão de alegria em suas praias alvíssimas. Mas eis que vos revelo o que vocês não sabem e não vêem. Toda essa beleza é efêmera como a borboleta das águas, conhecida de vocês, que nasce hoje e desaparece amanhã. Os seres de lá não tem a imortalidade como vocês. Todos nascem, crescem, maduram, envelhecem e morrem. Todos são mortais. Todos caminham para a morte...Irresistivelmente para a morte. Vocês querem isso para vocês? Cabe a vocês decidirem.
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Houve um silêncio aterrador. Todos se entreolhavam. Todos se voltaram ao Karajá que descobrira o mundo encantado, embora mortal. E tomados como que de fascínio pela beleza daquele mundo, confirmada pelo Criador Kananciué em sua fala, responderam:
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- Sim, Pai. Sim, queremos conhecer aquele mundo. Queremos morar naquele paraíso dos mortais.
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O Criador ainda lhes falou pela última vez:
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- Aceito a decisão de vocês porque aprecio acima de tudo a liberdade. Mas saibam que de hoje em diante serão mortais. Continuarão livres, não deixem jamais que lhes roubem a liberdade, mas deverão morrer como todos os seres daquele mundo radiante. Lembrem-se que trocaram o dom supremo da imortalidade pelo dom precioso da liberdade. A história é de vocês.
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E todos os Karajá passaram entusiasmados pelo buraco luminoso do fundo do rio. Chegaram ao mundo dos mortais, da beleza efêmera e das alegrias finitas. Vivem ainda hoje naquele paraíso, às margens do Araguaia. Tiveram a inaudita coragem de preferirem a mortalidade, para que pudessem nascer integralmente como seres de liberdade, o que continuam sendo até os dias de hoje.

Fonte: Revoluções Sustentáveis


"INY - Canto da Tradição Karajá", um cd lançado em 2006 pelos Karajá pode ser adquirido no Ponto Solidário: Esse disco foi gravado na aldeia Fontoura, às margens do Rio Araguaia, no Tocantins. Daniel Coxini, o líder da aldeia, apresenta o disco dessa maneira: "Os Iny realizam todos os anos duas grandes cerimônias: a cerimônia de Aruanã (Ijasó), para reverenciar os ancestrais e Canãxuwê (Criador); e a cerimônia de Hetohoky, a Festa de Casa Grande, para iniciar os meninos na vida adulta. (...) Por esta razão gravamos este CD com alguns cantos destes rituais tão significativos para o povo Iny; para que através da música, o Tori (não-índio) possa conhecer um pouco da cultura do povo Iny. E assim, conhecendo e entendendo nossa tradição, possa ajudar a preservá-la, pois ela é parte da história deste país Brasil."

Realização: IDETI - Instituto de Desenvolvimento das Tradições Indígenas

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