3 de setembro de 2007

Enawene Nawe, o povo flexeiro

foto: Lóránt Attila (2005)

Os Enawene-Nawe são um povo de língua Aruak cujo território está situado a noroeste do estado de Mato Grosso, nos municípios de Juina, Sapezal e Comodoro. Robin M. Wright, em "O Universal e o Particular: As Formações Sóciorreligiosas da Amazônia Indígena e suas Transformações Históricas", conta que:

Os Enawene-Nawe (...) faziam parte do grande grupo chamado Paressi que foram contatados no século 18 pelo bandeirante Antônio Pires de Campos. Uma história dessa etnia desde seus primeiros contatos ainda está por ser escrita; no entanto, creio que seja possível levantar a hipótese de que os Enawene-Nawe fossem um subgrupo Paressi que se separou logo no início do contato e conseguiu manter a sua autonomia até contatos fossem estabelecidos novamente no século 20.

Em sua cosmologia, os Enawene-Nawe dizem que habitam a camada intermediária do cosmos, entre os mundos dos espíritos ancestrais e celestes – imortais, belos, generosos, brincalhões, saudáveis, numa aldeia cercada por um mundo natural de plenitude, onde tudo cresce e floresce sem a necessidade de ser cultivado – e os espíritos subterrâneos – feios, perversos, insaciáveis, implacáveis, sovinas, associais. Em contraste com os espíritos ancestrais, os que habitam o subterrâneo são considerados não-parentes, ‘outros’ grupos (como os afins), que provocam doença e morte entre os humanos.

Estes espíritos subterrâneos, chamados yakayriti, são ‘donos’ ou pelo menos intermediários entre os humanos e quase todos os recursos encontrados na natureza. Já que controlam os recursos naturais, os Enawene-Nawe dependem desses espíritos para a produção de alimentos e, portanto, a reprodução da vida social. Se os Enawene-Nawe não alimentam esses espíritos, eles ficam tão furiosos que são capazes de matar todos com doença. A mitologia Enawene-Nawe está repleta de catástrofes produzidas no passado por esses espíritos. Assim, a sua relação com os humanos é de predação, em que eles, como os yerupoho entre os Wauja, controlam a produção ritual e social. Os Enawene-Nawe, como os Wauja, têm uma vida ritual extremamente elaborada, que envolve um conjunto complexo de aerofones representando os vários clãs. Uma relação de reciprocidade é estabelecida com os yakayriti durante os rituais yãkwa: os espíritos fornecem quantidades abundantes de peixe moqueado para os Enawene-Nawe, enquanto estes retribuem com sal vegetal e outros alimentos. Assim, como os espíritos yerupoho dos Wauja, os yakayriti são domesticados.

Foto de Kristian Bengtson,2003 - Arte Indígena

Ana Paula Lima Rodgers, em "Descantando caminhos - da ecologia musical enawene nawe (reflexões preliminares)", fala um pouco da expressão cultural da tribo:

A música dedicada ao ritual yãkwa, o qual ocupa sete meses anuais, é dos espíritos subterrâneos, dos yakayriti : dos yaka nawe - em linguagem ritual = povo flechador - , e eles não sobem à superfície para brincar em serviço... há mesmo um excesso dessa presença, essa presença é acachapantemente afetante : o que se pode fazer é entrar vertiginosamente em sua dança para ritmicamente conviver com a inexorabilidade faminta (literalmente!) de suas volições, de seu querer interminável...! Não se toma a sua perspectiva no ritual : o ritual não é o humano enquanto espírito, nem o humano comunicando-se com os espíritos; não é a suspensão do tempo cotidiano, nem o tempo da alteração das condições normais de percepção {sobre isso ver discussão infra}; se se trata da agência sobrenatural de base (espíritos, seres subterrâneos ou celestes, enfim) aliada à vitalidade humana (mas não apenas), significa que a agência-vital-ritual é cósmica, mas o cósmico não enquanto reflexão simbólico-idealista do humano no cosmos, mas como rebatimento afetante do ritmo cósmico sobre os povos, espécies, compósitos entre estas, múltiplos e díspares [nawe] - noção que no presente contexto parece ser mais pertinente do que a de humanidade. Não é portanto, como pareceu pensar Lévi-Strauss (1971), o "humano tentado se [re-]colar ao cosmos", espécie de retrocesso algo incontornável em relação ao advento da linguagem (embora que reorganizável em termos mais positivos para o autor através da deriva científica, esta com aproveitamento mais rentável do pensamento segmentador) - é mais o humano em vigília agenciando o seu colamento inexorável ao cosmos de forma conseqüente.
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O ritual é, assim, a única coisa que se pode ser: é uma lida, uma dança, uma contra-dança, uma negociação extremamente sensível, perceptiva, de espírito para espírito. De bloco (clânico) de
yakayriti para bloco (clânico) de yakayriti; ou ainda de enore nawe (povo celeste) para yakayriti. Seja qual for a modalidade, trata-se de uma guerra de titãs, aliança entre titãs, sempre. Os Enawene Nawe estão no meio, habitam os patamares do meio, são o meio : são como a cartilagem entre os ossos e os músculos - foco vital indispensável à articulação, articulação entretanto jamais humanamente egocentrada. Uma flecha-raio celeste, vinda de cima (enore nawe) para baixo (yakayriti), pode eventualmente pegá-los desprevenidos, como já presenciei certa vez....
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Os
yakayriti, por sua vez, sub-terrestres, digamos assim, são os senhores (e portadores) incontestáveis das cobras (ui)... andam com elas enroladas por todo o corpo, e têm a terrível mania de jogá-las (ui halatene) por caminhos por onde passam os Enawene Nawe... ora por perseguição intencional - a alguém cujo clã deixou de cumprir intensamente as tarefas rituais extenuantes -, ora por puro "descuido" jocoso (não para os que atravessam seus caminhos, entretanto!). As vestes yãkwa são compostas em grande medida de palha-cobra amarrada na cintura, no pescoço, nos braços, nos punhos. As flautas, antropomórficas em certo nível (embora não apenas), também as portam. Além disso, disseram-me uma vez que as joelheiras de borracha que as mulheres levam consigo desde crianças (iteyti) são também cobras (o que foi confirmado meio a contragosto por algumas mulheres).

O canal no YouTube de Greenpeace Brasil acaba de publicar um vídeo, “Amazônia, uma região de poucos”, com sua correspondente versão em inglês. O documentário registra fazendeiros e políticos de Juína (MT) impedindo visita de ativistas do Greenpeace, da OPAN (Operação Amazônia Nativa) e de jornalistas europeus à Terra Indígena Enawene Nawe. Veja as cenas de truculência e intimidação vividas pela equipe em 20 de agosto de 2007. A OPAN lançou a seguinte nota sobre os fatos ocorridos em Juína-MT entre os dias 19 e 21 de agosto:

Os acontecimentos

O Greenpeace Amazonas havia acertado com o povo Enawene Nawe, em 2005, um sobrevôo de vigilância da sua terra demarcada, assim que realizassem alguma atividade na região. Ao verificar os índices oficiais de desmatamento em Mato Grosso no último ano, o Greenpeace viu uma boa oportunidade para cumprir com os Enawene o compromisso de realizar o sobrevôo. Contatou a OPAN para avisar os Enawene desta possibilidade. A atividade seria feita aproveitando a articulação com uma equipe de jornalistas franceses que tinha o objetivo de tratar da diminuição do desmatamento e mostrar uma comunidade que depende dos recursos naturais para sua alimentação e desenvolvimento de sua cultura, desenvolvendo uma relação equilibrada com a natureza.

No final da tarde de domingo, dia 19, pouco depois da chegada dos jornalistas, da equipe do Greenpeace e da OPAN em um hotel em Juína onde se hospedaram, fazendeiros abordaram os integrantes das duas organizações, querendo saber quem eram e o que estavam fazendo na cidade. O grupo de fazendeiros alegava que a presença da OPAN com um grupo de jornalistas era suspeita.

Na manhã do dia 20, o hotel foi cercado por dezenas de fazendeiros e o presidente da Câmara Municipal de Juína, exigindo esclarecimento sobre os objetivos dos visitantes. O grupo visitante foi intimidado pelos fazendeiros e o presidente da Câmara a comparecer à Câmara Municipal, onde uma sessão especial foi rapidamente organizada, quando foram sabatinados e hostilizados durante seis horas por autoridades e proprietários da região do rio Preto. Supondo que o grupo iria para a região do rio Preto, área em que os Enawene solicitam um estudo da FUNAI, o prefeito de Juína afirmou que os visitantes não eram bem-vindos, que ele não iria permitir a ida do grupo em hipótese alguma e que a OPAN era “persona non grata” na cidade.

Em vista dos fatos, a viagem e a reportagem foram suspensas. Era preciso, porém, levar até o rio Juruena, que fica a 60 km da sede do município, o combustível para a volta dos Enawene Nawe à aldeia. Esse percurso foi feito com a escolta da polícia e sete caminhonetes dos fazendeiros, retornando para a cidade já no final da tarde.

Apesar de ser advertido a sair da cidade, o grupo da OPAN, Greenpeace e os jornalistas franceses ficou impossibilitado de fazê-lo, pois o avião que realizaria o transporte não poderia decolar à noite. Não havendo condições de decolagem, o grupo permaneceu sitiado no hotel. Para assegurar isso, os fazendeiros fizeram uma vigília durante toda a noite, reunidos no bar em frente ao hotel onde bebiam e proferiam ameaças. Uma viatura da Polícia Militar ficou na área, para impedir qualquer possível invasão ao hotel, mas não conseguiu impedir que o fotógrafo Alberto César fosse agredido depois de querer fotografar a tentativa de agressão a um Enawene que registrava algumas cenas.

Na terça-feira, dia 21, por volta de seis e meia da manhã, 30 caminhonetes de luxo, lotadas de fazendeiros “escoltaram” os ativistas do Greenpeace, da OPAN e os jornalistas, que estavam protegidos por duas viaturas policiais, até o aeroporto. Um cortejo que atravessou a cidade com faróis acesos e buzinando sem parar, enquanto os ocupantes insultavam e ameaçavam nossos colegas. O avião decolou sem maiores problemas. Uma vez em Cuiabá, nossos colegas protocolaram uma denúncia no Ministério Público Federal sobre os fatos ocorridos em Juína e fizeram a entrega do DVD com imagens dos acontecimentos relatados acima.

Contexto do caso

Há mais de cem anos a região Noroeste do estado de Mato Grosso tem sido palco de conflitos, massacres e mortes envolvendo índios, garimpeiros, madereiros, fazendeiros e missionários. Até os anos sessenta, foram os seringueiros e seringalistas que abriam fogo contra os Irantxe, Rikbaktsa, Cinta Larga e Enawene Nawe, entre outros. Nos anos mais recentes os conflitos com indígenas têm sido protagonizados por fazendeiros e madeireiros.

Nos últimos dez anos, de posse de motores de popa e barcos de alumínio doados a eles por fazendeiros de Sapezal - MT, os Enawene Nawe passaram a se deslocar com maior freqüência a um antigo local de pesca no rio Preto, afluente do Juruena. Principalmente durante a realização de seu ritual mais importante, o Yaonkwa. Eles não consomem carne vermelha, tendo nos peixes sua principal fonte de proteína. As pescarias dos indígenas nesse rio, no entanto, vêm provocando tensões com os atuais proprietários da área. O aumento da população e a crescente degradação ambiental levou os Enawene a solicitar da Funai o estudo antropológico da área do rio Preto.

A presença da nossa equipe em Juína não tinha relação nenhuma com o rio Preto, pois o caso é de responsabilidade do Governo Federal, através da Funai. A equipe da OPAN atendia ao pedido dos Enawene em acompanhá-los por se tratar de uma boa oportunidade de verificar os limites da área indígena demarcada que são de difícil acesso terrestre na região dos municípios de Comodoro-MT e Sapezal – MT.

A OPAN é uma entidade sem finalidade econômica, vínculo religioso ou político. Durante os seus 38 anos de existência sempre desenvolveu suas atividades voltadas para a construção participativa e o protagonismo indígena, como forma de garantir autonomia a esses povos sobre o curso da sua história. A mesma relação de confiança e trabalho conjunto foi criada com os apoiadores de nossas ações. Entre eles, diferentes instâncias do Governo Federal e Estadual, que a cada ação verificam nossa situação jurídica e contábil, além de realizar auditorias nos recursos a nós confiados. Dos mais recentes podemos citar Ministério da Saúde, Ministério do Desenvolvimento Agrário, Ministério do Meio Ambiente e Ministério da Educação. A OPAN desenvolveu ações com recursos do ICMS/Eco em parceria com a prefeitura de Juína, tendo cumprido com eficiência sua parte contratual.

Entre os trabalhos realizados pela OPAN junto aos Enawene, está o convênio com o Ministério da Saúde, através da FUNASA para atenção básica à saúde de quatro etnias do Mato Grosso, contando com enfermeiro, odontólogo, técnicos em enfermagem e acompanhamento médico. Atuando com uma equipe de profissionais que falam o idioma dos Enawene, moram em suas casas comunais e se integram à vida da comunidade. Para o atendimento à saúde, a OPAN ainda firmou convênios com as prefeituras de Sapezal – MT e de Brasnorte - MT. Trabalhamos com políticas públicas em questões de alta complexidade, como é o caso dos povos indígenas.

A OPAN não é contra o direito de cidadãos desenvolverem suas atividades produtivas dentro da lei. Também não é contra o desenvolvimento do Mato Grosso, mas acreditamos que esse desenvolvimento deva ser para todos e de acordo com a concepção de sociedade, economia e espiritualidade de cada segmento da população. Supor que modos tradicionais de vida e produção são sinônimos de atraso é um erro grosseiro e um desrespeito à Constituição, que garante aos índios o direito de habitarem suas terras e viverem de acordo com seus usos e costumes. Respeitamos o povo de Juína e sabemos que esses fatos não podem ser creditados à população local como um todo.

Os fatos ocorridos em Juína entre os dias 19 e 21 de agosto vão além das discussões sobre as políticas indigenistas e os modelos de desenvolvimento econômico. A naturalidade com que princípios básicos da ordem e das leis foram desrespeitados é uma afronta à luta pela democracia em nosso país. Companheiros nossos são transformados em foragidos por ameaças de quem confia na impunidade. Até quando iremos comparar as listas de ameaçados com a lista de mortos e torcer pela “sorte” de pessoas que envidam esforços pela construção de uma sociedade mais justa? Muito mais do que fazer camisetas com rostos de pessoas queridas que nos foram tiradas, precisamos de respostas concretas e imediatas das autoridades governamentais.

Em resumo: os conflitos são antigos, complexos e exigem a construção coletiva de soluções, com a intervenção das diferentes instâncias governamentais e que possam de alguma forma atender as partes interessadas. Dessa maneira, poderá ter início um processo de paz e desenvolvimento de acordo com as diferentes visões deste processo.

Leia e veja mais sobre os Enawene Nawe no site da Survival International. É bem interessante também a leitura (aqui em pdf) da tese de doutorado de Gilton Mendes dos Santos intitulada "Da cultura à natureza - um estudo do cosmos e da ecologia dos enawene-nawe".


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