A figura é de uma nativa da Florida, mas está aqui para representar a boa-vontade dos ameríndios em um primeiro contato com os conquistadores europeus, antes que ficassem denotadas as verdadeiras intenções dos visitantes. Regressemos à Carta de Pero Vaz de Caminha anunciando o "Achamento" das terras hoje brasileiras ao Rei Dom Manuel, carta esta que após longo tempo desaparecida só foi reencontrada em 1773, e divulgada a partir de 1817 (época em que a capital portuguesa era o Rio de Janeiro), pelo padre Manuel Aires do Casal:
* 26 de abril de 1500, domingo: "Do outro lado do rio, andavam muitos deles, dançando e folgando, uns diante dos outros, sem se tomarem pelas mãos. (...) Dirigiu-se, então, para lá, Diogo Dias, homem gracioso e de prazer. Levou consigo um gaiteiro e sua gaita. E meteu-se a dançar com eles, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam, e andavam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem, fez-lhes ali, andando no chão, muitas piruetas e salto mortal, de que eles se espantavam e riam muito. Mas como Diogo Dias tocasse neles e os segurasse com essas brincadeiras, logo se tornaram esquivos como animais monteses (...)" (Apesar de "mansos", os índios evitavam o contato físico com os portugueses. Demonstravam dessa forma não serem tão ingênuos, assim como o fato de não deixarem os portugueses dormirem na aldeia.)
** 30 de abril de 1500, quinta-feira: "Nesse dia, enquanto ali andavam, dançaram e bailaram sempre com os nossos, de maneira que são muito mais nossos amigos do que nós seus (...)" (Aqui, Caminha se refere à docilidade dos índios, o que poderia facilitar a catequização pelos missionários católicos. É interessante notar a sinceridade do relato neste último trecho, em que Caminha reconhece as "segundas intenções" dos portugueses diante da alegria desinteressada dos índios).
As notas explicativas são do site do CanalKids. Mas vamos nos deter no que é relatado como acontecido no dia 24 de abril, sexta-feira, quando Afonso López, um dos pilotos da nau capitânea, encontra na praia nativos armados de arco e flexa, e em um contato amigável, traz dois deles para conhecerem o interior da caravela:
O Capitão, quando eles vieram, estava sentado em uma cadeira, aos pés uma alcatifa por estrado; e bem vestido, com um colar de ouro, mui grande, ao pescoço. E Sancho de Tovar, e Simão de Miranda, e Nicolau Coelho, e Aires Corrêa, e nós outros que aqui na nau com ele íamos, sentados no chão, nessa alcatifa. Acenderam-se tochas. E eles entraram. Mas nem sinal de cortesia fizeram, nem de falar ao Capitão; nem a alguém. Todavia um deles fitou o colar do Capitão, e começou a fazer acenos com a mão em direção à terra, e depois para o colar, como se quisesse dizer-nos que havia ouro na terra. E também olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal, como se lá também houvesse prata!
Mostraram-lhes um papagaio pardo que o Capitão traz consigo; tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra, como se os houvesse ali.
Mostraram-lhes um carneiro; não fizeram caso dele.
Mostraram-lhes uma galinha; quase tiveram medo dela, e não lhe queriam pôr a mão. Depois lhe pegaram, mas como espantados.
Deram-lhes ali de comer: pão e peixe cozido, confeitos, fartéis, mel, figos passados. Não quiseram comer daquilo quase nada; e se provavam alguma coisa, logo a lançavam fora.
Trouxeram-lhes vinho em uma taça; mal lhe puseram a boca; não gostaram dele nada, nem quiseram mais.
Trouxeram-lhes água em uma albarrada, provaram cada um o seu bochecho, mas não beberam; apenas lavaram as bocas e lançaram-na fora.
Viu um deles umas contas de rosário, brancas; fez sinal que lhas dessem, e folgou muito com elas, e lançou-as ao pescoço; e depois tirou-as e meteu-as em volta do braço, e acenava para a terra e novamente para as contas e para o colar do Capitão, como se dariam ouro por aquilo.
Isto tomávamos nós nesse sentido, por assim o desejarmos! Mas se ele queria dizer que levaria as contas e mais o colar, isto não queríamos nós entender, por que lho não havíamos de dar! E depois tornou as contas a quem lhas dera. E então estiraram-se de costas na alcatifa, a dormir sem procurarem maneiras de encobrir suas vergonhas, as quais não eram fanadas; e as cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas.
O Capitão mandou pôr por baixo da cabeça de cada um seu coxim; e o da cabeleira esforçava-se por não a estragar. E deitaram um manto por cima deles; e consentindo, aconchegaram-se e adormeceram.
Vamos examinar essa comunicação intercultural por sinais e o entendimento delas extraído na época. Cabral aguarda os índios com uma posição majestática, veste uma boa roupa e paramenta-se com seu colar de ouro. Obviamente segue um rito de persuasão, buscando demonstrar sua posição de autoridade através de sua imagem. Os índios, entretanto, seguem um protocolo próprio. Aguardam primeiro para serem convocados a se manifestar, por desconhecerem a prática de cerimonial dos brancos. Ao perceberem que os portugueses tampouco sabem como se comunicar, um deles se adianta e pergunta se eles vieram ter ali em busca de ouro. É óbvio que esse índio, que devia possuir determinada autoridade dentro da tribo, já que fora escolhido como representante para travar o contato, não buscaria convidar os brancos para buscar ouro no continente. Ele por princípio não responderia nada que não lhe tivesse sido perguntado. Vê o ouro usado pelo português como símbolo de autoridade, e pergunta: é em busca disso que vocês querem vir para cá?
Vê o castiçal de prata e reafirma sua pergunta: é em busca disso que vocês vieram?
É claro que os índios haviam ido com suas armas à praia para sondar que tipo de atitude tinham os visitantes para com eles. E os que vieram a bordo eram emissários encarregados de saber o que os brancos estavam procurando ali, porque tinham ancorado junto à praia.
E os portugueses gananciosos entendem que os pobres nativos estejam a fazer propaganda dos atributos minerais do continente...
O papagaio pardo pode ter sido uma espécie indiana de papagaio, o Paradoxomis unicolor. Os portugueses tinham trânsito na Índia, e não na América, portanto seria impossível eles trazerem de Portugal um papagaio que os índios conhecessem. Mas por sua semelhança com os papagaios que conheciam, usaram o papagaio para tentar entender o que os índios estavam dizendo quando acenavam para a terra ao ver ouro e prata. Os índios recebem o papagaio com naturalidade e entendendo isso como resposta de que os portugueses haviam vindo em busca de papagaios, tranqüilizam-se e dizem que o continente abriga muitos desses pássaros.
O pássaro domesticado não é um sinal de relação pacífica? Curiosamente o país ficaria conhecido como "Terra dos Papagaios". Leiam sobre o tradicional tráfico de animais silvestres em "Papagaio! A tradução ornitológica da nacionalidade", de Roberto Pompeu de Toledo.
Um carneiro lhes é apresentado e eles não fazem caso de dizer nada, afinal a terra não tinha desses animais. Mas uma galinha, isso sim é motivo de surpresa. Não a querem tocar, e os portugueses insistem. Talvez por vê-la tão prisioneira, reclamando de ser segura, tenham entendido o jeito de ser dos brancos de outro modo. Não, não há dessas aves no continente.
Servem-lhes comida. Os nativos desconfiam de serem servidos e não acompanhados. Seu costume de hospitalidade era o de comer-se em roda, entre homens. Estes brancos lhes oferecem comida e ficam observando. Instados a comer, provam da comida mas cospem. Não confiam nos visitantes brancos nem sabem como foi preparada aquela comida. Vinho, nem o cheiro. Água, só para lavar a boca.
Depois de tudo, o rosário de contas brancas lhes chama atenção. Em sua expressão como que querem dizer que esses são os seus adornos, não os adornos de ouro de Cabral. Mas os portugueses entendem que eles queiram trocar ouro por contas. Buscam entender: e o comentário de Caminha, que diz que se eles queriam levar as contas e o ouro, parece transcrição de um comentário maldoso de um dos presentes que expressa o resultado pífio da entrevista com os índios, pois de nada tinham recebido certeza.
Não fica claro como eles resolveram pernoitar. Talvez tivessem percebido que os portugueses tinham sono, e demonstraram que poderiam dormir ali no chão. Cabral lhes oferece o coxim em que descansava os pés, e eles aceitam. Fingem que dormem, para que os portugueses os deixem sossegados. E que terão conversado baixinho quando se viram eles a sós? Que terão dito aos demais quando regressaram à terra firme?
Parece que não deram crédito às intenções de dominação portuguesa, e viram os rituais de missa e outros festejos com curiosidade e atenção. Dias depois as caravelas partiram, deixando com os índios dois degredados. Ainda houveram dois grumetes que desertaram, porcerto fugindo de maus-tratos. Só retornariam os índios a ver os brancos três anos depois, quando veio Gonçalo Coelho em missão de explorar o litoral, ou em 1534 quando Pero do Campo Tourinho ganhou a feitoria de uma Capitania Hereditária lá situada e veio a colocar o marco da posse portuguesa onde hoje é Porto Seguro trazendo consigo gente selecionada do reino.
Ouro e prata, por mais que buscassem, por ali nunca foi encontrado. A Capitania de Porto Seguro, décadas depois de ter sido criada, não produzia açúcar sequer para encher um carregamento por ano para mandar a Lisboa, sendo palco do ataque dos bravos aimorés, tribo muito mais arredia que aquela que recebeu pacificamente a expedição de Cabral. Tourinho acabou degredado para ser julgado pela Inquisição, denunciado pelo próprio filho, pois enlouqueceu com a vida no Paraíso. E aí nasceu o Brasil...
Leiam: "Aspecto Histórico da Carta de Pero Vaz de Caminha", por Cândido Mendes de Almeida, membro da Academia Brasileira de Letras.