6 de maio de 2009

As Muitas Artes do Rapé

De uso muito difundido nos séculos 18 e 19 especialmente na Europa e Extremo Oriente, o rapé de tabaco foi socialmente bem aceito e considerado até mesmo elegante nessa época. Ao se fazer a leitura obrigatória do romance “A Moreninha”, de Joaquim Manoel de Macedo, estudantes brasileiros do século posterior se deparavam com a expressão “tomou a boceta de rapé” sempre com muita comicidade, embora a nota de pé de página sempre explicar que “boceta” no caso era como se chamava o estojo de portar rapé. Mas quanto ao rapé propriamente dito, passou a ser visto como um costume antiquado, de velhos, a partir dos anos 50, e o produto só continuou a ser visto nos mercados dos sertões brasileiros, em especial no Norte e Nordeste do país. Só no final dos anos 90 o rapé reapareceu nos grandes centros urbanos com o ressurgimento de tabacarias, na grande maioria fabricados em Minas Gerais com sabores como imburana, menta, cravo e canela, talvez como um meio fácil de se consumir tabaco sem produzir fumaça dada a legislação anti-tabagista a partir de então ampliada.

O rapé, entretanto, é criação milenar dos povos ameríndios e constitui uma sabedoria popular de múltiplas facetas, uma arte praticamente inesgotável. Juntamente com o artesanato, cada vez mais faz parte das encomendas que as representações culturais de povos indígenas da Amazônia, quando viajam para os grandes centros, recebem dos consumidores, e eu mesmo comprei um cuxipá (frasco de bambu) com rapé e o indispensável inalador de uso individual, quando da visita dos Katukina do Acre ao Museu da República, no Rio de Janeiro, quando estes vieram lançar seu documentário. Atualmente, em Rio Branco, tem tido grande saída um rapé verde produzido pelos Apurinã, e também a loja da Associação dos Seringueiros Kaxinawá do Alto Rio Jordão, localizada no Mercado Velho, novo ponto turístico da capital acreana, possui grande procura do rapé da tradição hunikuin. A respeito, nosso amigo André Domingos Kaxinawá assim comentou sobre o rapé para nosso blog:

“Quando nós usamos rapé isso faz parte da medicina tradicional dos nossos pajés. Pajé na minha língua se chama Inkan Naibai, ele conhece os cantos e rezas de cura e também sabe produzir todos remédios, inclusive o rapé. Rapé é cura sagrada, tabaco moído com cinzas da medicina. Rapé a gente chama tabaco espiritual, se chama dume yuxibu. A gente trabalha no roçado, vem pra casa tomar banho, a água da cacimba é muito fria e o corpo está quente por isso usa rapé para esfriar o corpo e vai tomar banho sem ficar resfriado. Também usa rapé com kampum, que é o mesmo kambô que o pessoal chama vacina do sapo. Um pouquinho de kampum seco misturado no rapé e ele fica muito espiritual, ajuda na pescaria e na caçada pra pessoa ficar esperto. Quando a gente toma huní (ayahuasca) a gente também consome rapé quando tem vontade, fica mais forte a miração e a pessoa faz limpeza porque rapé tira tudo que é gosma, limpa mesmo. Eu faço primeiro a cinza das plantas e madeiras que meu pai Dua Busen usa, depois vou torrar tabaco e pilar, pra fazer meu rapé. Para cheirar a gente usa o tepe que é um canudo em forma de forquilha, tem um lado só pra soprar e outro pra quem vai tomar o rapé, e a gente procura um amigo pra soprar pra gente. Nem todo rapé é igual, tem rapé mais espiritual que outros. O rapé dos hunikuin é muito forte, as pessoas gostam e fazem encomenda, gostam de provar da nossa cultura”.

Johannes Willbert, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, fala sobre o uso extendido do rapé entre os povos ameríndios:

Rapés psicotrópicos são conhecidos em forma esporádica em diferentes partes da América Central e do Norte (Bourne 1907:312, 313, 324, 328) mas especialmente na América do Sul e nas Índias Ocidentais. Desde os dias da observação de Pané (1974) com respeito ao rapé de chohobba (cohoba) entre os Taíno das Antilhas Menores, os pós tem sido vistos em preparação entre os indígenas do continente meridional a partir das vagens de Anadenanthera, de folhas de coca (Erythroxylum), de Virola spp., resina e uma variedade de nicotianas. Não se sabe bem ainda qual é a base botânica de vários rapés menos conhecidos do Novo Mundo (Schultes 1977; 1978), mas a absorção nasal de intoxicantes está bem repartida na América do Sul. De fato, alguns acreditam que se trata de uma forma peculiar de administrar a droga que se difundiu ao Velho Mundo, junto com o tabaco, na era pós-colombiana (Schultes 1967).
As fontes etnográficas documentam ao tabaco como uma fonte relativamente comum de rapé entre os indígenas da América do Sul. No subcontinente seus cinco focos de distribuição são o Orinoco médio e superior, o noroeste do Amazonas, a Montanha - Rio Purus, o Guaporé, e a zona andina. Outros casos são maiormente periféricos com respeito a esta zona de distribuição principalmente do norte e noroeste.
Na preparação do rapé, as folhas da planta são secadas ao vento ou ao sol, sobre um fogo ou sobre uma vasilha colocada de boca pra baixo sobre brasas ardentes. As folhas secas são piladas, pulverizadas e muitas vezes peneiradas. Cascas de cocos e panelas podem servir como pilões. O rapé de tabaco é guardado em recipientes feitos de bambu, cabaças ou concha de moluscos.
Os pós psicotrópicos, incluindo o rapé de tabaco, podem ser aspirados diretamente da mão ou de uma folha. Mais frequentemente entretanto são ingeridos por meio de tubos de absorção nasal, simples ou duplos, ramificados ou angulares, feitos de caniço ou ossos perfurados.
Os tubos de absorção nasal, simples e relativamente curtos, são usados como inaladores de autoconsumo. Como se mencionou previamente, o exemplo mais remoto na América do Sul é o inalador de osso de pássaro que Junius Bird encontrou junto a uma caixa de rapé em osso de baleia, no sítio pré-agrário de Huaca Prieta, na costa do Peru, datado de até 1600 A.C. Estes implementos se usavam presumivelmente para a
willka (Anadenanthera colubrina), não para tabaco em pó. Quando se usam como inaladores tubos de um metro ou mais de comprido, a intoxicação requer duas pessoas; um sopra com força o pó dentro das narinas do outro. Esta forma de administração foi bem documentada, por exemplo, por escrito e em filmes, entre os yanomami da Venezuela. Entretanto, eles também preparam seu pó intoxicante não de tabaco mas sim da cortiça interior da árvore Virola. Em alguns destes largos inaladores, o extremo receptor recebe peças nasais cônicas, lisas ou talhadas.
Os tubos duplos de absorção nasal medem uns vinte centímetros de comprimento e comumente exibem na extremidade próxima uma peça nasal feita de alguma noz redonda e perfurada ou de um anel de cera bulboso, para facilitar a aplicação às narinas. O rapé é absorvido desde a palma da mão do usuário através de inaladores duplos.
Os tubos bifurcados tem forma de Y, e são relativamente curtos. Permitem a autoadministração de pós por ambas fossas nasais simultaneamente.
Os tubos de inalação angulares tem forma de V; os curtos são para autoadministração e os mais compridos, de uns 20-30 centímetros são para administração mútua entre dois cooperantes. O rapé é colocado no extremo nasal do insuflador angular e soprado desde a extremidade bucal com um sopro brusco para dentro das fossas nasais do receptor.
O rapé de tabaco pode ser inalado desde a superfície de uma pequena tabuinha, mas as tabuinhas de inalação comumente usadas em conexão com pós alucinógenos não foram reportados especificamente em conexão com a inalação de tabaco. De fato, o rapé de tabaco, é de importância secundária na América do Sul, comparado com os pós alucinógenos, possivelmente porque os primeiros contém menos "força espiritual" que os segundos. Isto pode explicar porque os acessórios para rapé de tabaco são muito mais rústicos que a parafernália artisticamente elaborada usada por exemplo em conexão com os pós de paricá ou ebena.
Também o tomar rapé de tabaco ganhou aceitação ampla no mundo em geral, apesar da prática haver aumentado ou diminuído segundo a época através dos séculos
.”

Para contatos com a Associação dos Seringueiros Kaxinawás do Alto Rio Jordão, pode-se escrever para banebari@gmail.com e falar com José Bane, que aparece na foto abaixo aplicando rapé para seu primo Itsairu.

Fonte: “El Significado Cultural del Uso de Tabaco en Sudamérica”, de Johannes Wilbertt, professor emérito de Antropologia da UCLA, uma tradução de "The Cultural Significance of Tobacco Use in South America", publicado em Gary Seaman e Jane S. Day (editores) Ancient Traditions: Shamanism in Central Asia and the Americas, Denver: University Press of Colorado & Denver Museum of Natural History, 1994, páginas 47-76. Para uma discussão mais ampla do tópico e uma documentação detalhada pode-se ler: J. Wilbert, “Tobacco and Shamanism in South America”.

3 comentários:

centroyachak disse...

ola eduardo:

muito bom seu trabalho, eu tambem trabalho com rape e otras medicnas sagradas, sou do chile e atualmente moro no brasil em minas gerais e estamos desenvolvendo um trabalho com o santo daime em aliança com os povos nativos como os katukinas, q´eros, saraguros, pataxos e gostaria muito de poder tracar informaçoes com voce.
meu blog é:
http://www.centroyachak.blogspot.com/
ai publico artigos sobre rituais e medicinas ancestrais, o meu pessoasl é
http://yachakwessi.blogspot.com/
prazer em conhecer seu trabalho.
wessi

Familia Paraiso disse...

ola eduardo eu estava procurando algo para colocar em meu blog a respeito do rapé,e gostei muito da sua pesquisa do seu trabalho,queria pedir autorização para usar ...
desde ja agradeço,o meu blog é:
http://familiaparaiso.blogspot.com/
com carinho drica

canicus disse...

Bom dia Eduardo,

Parabéns pelo seu grande trabalho de pesquisa e escrita. Gostei muito de ler seu blog e espero que você continue disseminando o grande valor de todas as culturas indígenas. Excelente acervo de links. Vou citá-lo na minha tese de doutorado.

Abraços,
Vanessa