Contra a extinção da humanidade
Turé na aldeia Espírito Santo. Foto: Vincent Carelli, 1982.
O historiador indígena Edson Brito, também conhecido como Edson "Kayapó", está a todo momento pensando na humanidade e na natureza como um Todo. Sabe que o tempo corre contra ele e seus parentes. E tem convicção também que esse tempo, "civilizatório científico-capitalista", corre contra todos os humanos. Para ele a atual crise econômica é agravante de um colapso civilizatório muito maior, que tem longas raízes históricas, científicas e filosóficas. Trata-se, portanto, de uma grave crise produzida por um modo de vida que destruiu e destrói muitas outras formas de viver, muitos outros modos de relacionamento entre humanos e natureza.
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(...) Em sua opinião, ou a "civilização científica capitalista tem pela primeira vez na história a humildade de assumir seus limites e sua ignorância" sobre uma série de complexas questões - entre elas, a preservação da Amazônia, e a própria relação entre humanos e natureza -, ou estaremos todos fadados à extinção. Nesse sentido é enfático: "o nó da questão, que a sociedade brasileira e mundial precisam entender, é que as terras amazônicas sob o cuidado dos indígenas é uma garantia para toda humanidade. Ao retirar a autonomia dos indígenas sobre suas terras estão assinando a sentença de morte da humanidade". O alerta aqui tem em vista as 19 condicionantes propostas pelo Ministro Menezes Direito e aprovadas junto com a demarcação contínua da RSS, que teoricamente se estenderia a outras terras já demarcadas ou por demarcar. Na opinião de Edson: "um verdadeiro golpe, inconstitucional, contra a autonomia indígena e de lesa-humanidade".
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BdF: Poderia começar contando um pouco de sua trajetória?
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Edson Kayapó: Sou filho de Kayapó, mas nasci no estado do Amapá, na margem do rio Amazonas, numa grande aldeia que hoje é a cidade de Macapá. O lugar onde nasci era a periferia da cidade de Macapá, mas devido ao crescimento exagerado da cidade, hoje o lugar é um bairro da cidade. Nossa família era muito pobre, meus pais analfabetos. Minha mãe era uma espécie de pajé, conhecedora de muitas plantas e remédios naturais; meu pai era mecânico. No início dos anos 1960 eles migraram do Pará rumo à região do Amapá, em busca de alternativas de emprego prometidas por aquele grande empreendimento mineral capitalista na Amazônia, a Icomi - que deixou um grande rastro de destruição e miséria na Serra do Navio e região. O Amapá e o Oiapoque, em especial, são lugares de muitas tensões sociais e pobreza... Os meus pais sofreram na pele a exclusão social daquela localidade, apesar de toda solidariedade dos parentes da região. Os dois não davam conta de nos sustentar: éramos sete irmãos e ainda tinha meu tio e meu avô materno que vivia conosco. Tanto que, no início dos anos 1980, antes de eu completar 11 anos, minha mãe tomou contato e me entregou para missionários evangélicos adventistas da região de Altamira-PA. No internato, cumpríamos longas e pesadas jornadas de trabalho na roça ("juquira" como chamam lá). E para fugir desta relação de semi-escravidão, na 8ª série, pedi transferência para outra escola em Cachoeira de São Félix, no Recôncavo Baiano. Lá, entre 1986 e 1987, aprendi muito, estabeleci relações muito diferentes, verdadeiramente antropofágicas - como, aliás continuam sendo hoje em dia aqui em São Paulo. Altamira era como uma prisão; Cachoeira era mais livre, no entanto persistia o rigor da educação missionária. Dois anos depois pedi nova transferência, agora para Petrópolis-RJ. Outro choque cultural: o Rio de Janeiro... Lembro quando conheci aquela cidade grande... Lá a dinâmica de trabalho dentro da escola também era mais amena, mais a vigilância e o controle dos nossos corpos e hábitos transformava a vida numa paranóia. Mas, acabou o segundo grau: acabou a relação com a Igreja! Apesar desse alívio, cheguei a quase esquecer completamente que era índio... completamente! A discriminação era muito grande, eu negava em muitos momentos, o quê era uma grande bobagem da minha parte - as pessoas próximas falavam que era ridículo, estava na minha cara... Nunca me propus a ir a psicólogos, nem sei se eles resolveriam, mas foi uma grande questão psíquica para mim. No Rio fui artesão, cobrador de empresas, vendedor (de livros) e frequentador das degustações de frutas e outros alimentos em supermercados... E foi assim que cheguei a Belo Horizonte-MG, na cara e na coragem, com um pouco de dinheiro para me manter por alguns dias numa dessas pensõezinhas próximas à rodoviária. Tinha que vender meus poucos produtos se não estava frito! E com muita luta consegui passar em História na Federal [UFMG], o quê foi um marco na minha vida: casa dos estudantes, comida em conta na universidade, bolsas que me ajudaram no sustento.
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BdF: O quê mais a universidade significou para você?
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Edson: Se tinha acompanhado o processo da Constituinte (1987-88) como um simples observador no Rio, já em 1989 a universidade foi o lugar onde assumi a luta política, no movimento estudantil. O marxismo era muito presente na época por conta dos recentes movimentos no leste europeu e na ex-União Soviética, bem como devido as primeiras eleições diretas pra presidente e a redemocratização do país. Eu fui ficando próximo ao PC do B e a alas do PT, além de ter um contato muito próximo e fraterno com correntes anarquistas, que eram muito presentes no movimento estudantil mineiro naquele momento. Curioso porque foi através desta militância política de esquerda que fui redescobrir e reafirmar minha identidade indígena. Era louco porque fazíamos, junto com o MST, rituais indígenas dentro da universidade... Os brancos da burocracia universitária ficavam horrorizados!
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BdF: Como era e como é hoje em dia esta relação com certas tradições originalmente "brancas", inclusive aquelas mais radicais de resistência, como muitas correntes marxistas?
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Edson: É interessante porque foi por meio de minha atuação na esquerda política que reafirmei minhas origens indígenas. Penso que os marxistas de todas as vertentes são aliados. Mas por outro lado, de forma geral, estão muito distantes da profundidade que tem a questão indígena: a perspectiva de classe apenas, num país como o Brasil, não é suficiente para explicar e responder às questões sociais. Até porque Marx nem poderia se propor a discutir, na Europa do século XIX, a questão indígena: ele estava interessado na formação e nas contradições da sociedade industrial. Há muitos outros brancos sinceros aliados. E, embora eu não acredite na existência de raças, há uma profunda construção histórica e cultural racista, que nos descrimina profundamente. Isso vem de longe, talvez desde a chamada "grande controvérsia" no século XVI, entre Sepúlveda e Bartolomeu de Las Casas: o primeiro falava em raças inferiores (indígenas) ou raças superiores (brancos europeus), e o segundo reivindicava a possibilidade e o direito de criar um "trabalho espiritual" nas terras e comunidades indígenas: evangelização, sendo mais direto. Uma falsa controvérsia, portanto: os índios não participaram dela, não deram sua opinião. Basta pensar também nessa idéia do Brasil como um país de cultura homogênea, essa idéia de identidade nacional única que exclui a diferença e ignora as mais de 190 línguas indígenas praticadas em nosso território...
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Miryam Hess: Trata-se de um longo processo histórico envolvendo a dominação e o racismo, que neste Continente (Aby Ayala) começa a se reverter somente agora, após mais de 500 anos de resistência indígena continental, com a subida ao poder de Evo Aymara [Morales].
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(...) Edson: Pois é... Quando meu pai saiu do Pará para o Amapá nos anos 60, em busca de emprego na Icomi, já se via vagões e vagões carregando toneladas de manganês para o porto de Santana-AP, e de lá, toda aquela riqueza atravessava o Atlântico. A Icomi, aliás foi um dos pioneiros mega-projetos capitalistas na destruição da Amazônia. Eles se instalavam numa região, ficavam por vários anos retirando tudo que podiam, e depois saíam fora, deixando favelas cheias de gente numa miséria só. O minério de manganês (e o arsênio produzido com ele), devastaram áreas gigantescas, poluindo terras e rios, e causando vários tipos de doenças físicas e psíquicas, no curto e médio prazos. Inclusive o câncer. A gente denuncia, mas sempre tem algum laboratório norte-americano para atestar "cientificamente" o contrário. E aí a "Justiça" acaba acreditando em quem? No nosso povo tradicional e sem escolaridade ou no laudo científico dos gringos? Aquela região teve e tem muito roubo de urânio também, como denunciou a revista Isto é, edição 1908 (2006). E a gente via e vê que as pessoas simples que estão fazendo o trabalho de extração do minério, trazem para dentro de casa o urânio, sem qualquer proteção, para os pilantras virem depois e levar tudo. Estão envolvidos, segundo a Polícia Federal, políticos, empresários nacionais e estrangeiros, terroristas e outros do tipo. O Sarney é senador no estado, mas prefiro nem falar dele, é chumbo grosso... O Eike Batista, que mais uma vez saiu na lista da Forbes como um dos grandes bilionários do mundo, o cara mais rico e playboy do Brasil... Sei... Como tem conseguido isso? À custa da destruição da Amazônia. Vão ver o quê ele está fazendo em Pedra Branca do Amapari-AP e na própria Serra do Navio, que já tinha sido devastada pela Icomi. A sua mineradora, a MMX, declara apenas a retirada de ouro ou de algum minério específico... Mas a gente sabe que os minérios não brotam separadinhos no solo. Então eles literalmente cercam áreas gigantescas, e é o dia inteiro aviões e helicópteros chegando e saindo. E nos galpões: trabalhadores em regime de semi-escravidão. Alguns desses casos são até investigados, em sigilo, pela Polícia Federal, mas muito pouco é noticiado e punido. No Amapá a nova febre são também os tais agrocombustíveis. No distrito de Curiaú-AP são milhares de hectares de cana-de-acúcar financiados pelo BNDES, e com autorização do IBAMA: "permissão para uso sustentável do solo". A expansão da Jarí Celulose, da Amapá Celulose (AMCEL) pela região... Muitas delas até chegam a ter limites ambientais de terras exploráveis, aí elas burlam arrendando terras de terceiros, de pequenos proprietários... Parece brincadeira...
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BdF: É nesse sentido que você defende enfaticamente a importância da autonomia indígena em seus territórios?
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Edson: Exatamente... Me parece que o movimento agora é, cada vez mais tirar a autonomia indígena. As 19 condicionantes aprovadas pelo STF têm esse objetivo. Eles demarcam, mas tiram a autonomia e criam um monte de cláusulas e brechas para poderem explorar os recursos que lhes interessam. Essas condicionantes são um verdadeiro golpe, inconstitucional, contra a autonomia indígena e de lesa-humanidade. Eu estou ansioso para ver a reação dos parentes de Roraima, e dos demais pelo Brasil... No final do ano passado o economista Ignacy Sachs esteve na PUC-SP fazendo uma palestra sobre o quê chama de "desenvolvimento sustentável" ou "biocivilização". E no raciocínio racista dele, que está por trás dessa ofensiva contra os indígenas, tem a seguinte construção: a sociedade moderna está em crise e a Amazônia seria o local da salvação, então os indígenas são um empecilho para esta salvação. Ele, no fundo, fez uma grande fala contra as demarcações. E aí argumenta sobre a crise ambiental, a crise alimentar: ora, o Brasil é um dos maiores produtores de alimentos do mundo e a maioria da população passando fome! A gente sabe muito bem como e para quem produziam os arrozeiros na área da Raposa, diferente dos indígenas que produzem para o sustento inclusive das cidades de Roraima. Imagina se fosse o MST que tivesse ocupado qualquer território: no outro dia vem polícia! Penso que os indígenas estão cansados de tentar explicar que nossa luta não é apenas pelas terras indígenas. Eu cansei de ouvir falar que essa terra é para nós: não é para nós somente! O nó da questão, que a sociedade brasileira e mundial precisam entender, é que as terras amazônicas sob o cuidado dos indígenas é uma garantia para toda humanidade. Ao retirar a autonomia dos indígenas sobre suas terras estão assinando a sentença de morte da humanidade. Uma decisão como esta deveria ser discutida num tribunal internacional, com a participação e voz dos indígenas.
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Miryám Hess: Esta súmula do Ministro Menezes Direito e as 19 condicionantes (18 delas por ele propostas e) aprovadas pelo STF são, realmente, inconstitucionais. O papel a que estes ministros estão se submetendo envergonha o País ao trabalharem para os interesses do agronegócio, dos grandes lobbies de mineração... A idéia deles é que tais condicionantes se estendam para as cerca de 227 áreas que estão declaradas para demarcação, além dos mais de 50 povos declarados "ressurgidos" (termo usado na antropologia) ou "resistentes" (como dizemos nas lutas indígenas). Na prática estão querendo facilitar a destruição de todas estas terras indígenas para os piores modelos de desenvolvimento, aqueles que mais degradam irreversivelmente os ecossistemas.
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Edson: Mas não vamos parar por aqui, e agora temos uma série de territórios que urgentemente precisam ter a demarcação contínua garantida: como a situação dos parentes Guarani-Kayowás do Mato Grosso do Sul, que têm vivido uma situação terrível nos últimos anos, com altíssimas taxas de suicídio entre jovens, sem falar dos homicídios que sofrem constantemente. E por outro lado, os Kayapó e os demais povos xinguanos estão dispostos a lutar até o fim, até o estado mudar de idéia com relação a estes mega-projetos que se espalham pela Amazônia. Foi neste sentido, e não em qualquer outro, que o Tuxaua Kayapó disse que os povos do Xingu estariam dispostos a lutar a "terceira guerra mundial", no sentido de defendesa da Mãe Terra e dos povos originários. Afinal, na região próxima ao Parque Nacional do Xingu, tanto os indígenas quanto ONG's como a Repórter Brasil - que é uma ONG séria - vêm denunciando por meio de análises das águas que a cabeceira do Rio Xingu está sendo completamente poluída por agrotóxicos e resíduos minerais...
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BdF: É a mesma situação que os Xicrin estão enfrentando ali perto, na região da Serra dos Carajás, sobretudo por conta dos antigos e novos mega-projetos da Vale do Rio Doce (como o Onça-Puma e o Salobo), que já estão poluindo importantes nascentes e afluentes que desembocam no rio Tocantins e no rio Marabá...
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Edson: É genocídio, não tem outra palavra! Os indígenas passaram milênios na Amazônia e conseguiram conhecê-la profundamente, respeitá-la e preservá-la, enquanto a civilização científica capitalista, além de massacrar brutalmente nosso povo, em poucos anos a tem desmatado e destruído progressivamente, como nunca antes. A hidrelétrica de Belo Monte, é outro exemplo. Desde 1989 os indígenas falam que não querem, que não vão aceitar... Aí recentemente foram aqueles engenheiros da Eletronorte, que os indígenas chamam de "Eletromorte", para arrogantemente informar que o projeto seria implantado, independente da vontade dos indígenas. E a televisão noticiou com estardalhaço que a índia Tuíra teria tentado matar os engenheiros. Ora, se quisesse matar, Tuíra teria matado facilmente, pois o Kayapó é guerreiro, tem muita habilidade com o terçado [facão], é acostumado a derrubar até árvore com ele. Aquilo foi mais um aviso de que estes mega-projetos e estas grandes hidrelétricas nunca são sustentáveis. São genocidas, e contra eles estamos dispostos a resistir com todas as forças.
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BdF: O projeto de lei para liberação da mineração em terras indígenas vai nessa mesma linha? Ou traria algum benefício para as comunidades originárias?
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Edson: Este projeto de lei não passa de uma tentativa indecente de esmola para os indígenas: cerca de 3%. Os indígenas não querem, não porque sejam bobos, mas porque sabem que isto vai destruir a Amazônia. Ou você acha que eles não sabem que há minérios, mogno e muitas outras riquezas em suas terras? Os Kayapó que chegaram a fazer algumas dessas atividades hoje já não fazem mais, porque tomaram consciência do risco de destruição da vida. Miryám Hess: A proposta de lei de mineração em terras indígenas fere os artigos 231 e 232 da Constituição Federal; fere também a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho; e a própria Convenção dos Povos Originários (ONU). O movimento indígena já está mobilizado para fazer essas denúncias e resistir contra sua aprovação, inclusive em tribunais internacionais.
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BdF: Aqui voltamos ao abismo de linguagem e de conhecimento entre os tribunais "brancos" e a realidade indígena...
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Edson: Pois é... Nessas ocasiões, nesses grandes encontros, existe uma dificuldade muito grande dos indígenas se comunicarem em pé de igualdade por causa da barreira da linguagem, e da concepção de mundo mesmo. Por isso a importância dos parentes se apropriarem desse conhecimento acadêmico. E não estou desqualificando os parentes sem qualificação acadêmica.... Muito pelo contrário: geralmente a academia cria teorias que abstraem e distorcem a realidade. E que são criadas para isso mesmo. Falam de qualquer assunto sem os pés no chão. Nosso compromisso é outro, é com nosso povo indígena. Não quero virar um acadêmico de gabinete, porque aí mano... Por isso tenho uma grande preocupação que é relacionada à educação indígena. Há algum tempo eu acompanho escolas, na Aldeia do Espírito Santo (Oiapoque) e região. E tenho procurado refletir sobre isso em meu doutorado. Porque historicamente a educação indígena é uma verdadeira agressão: desintegra as comunidades; destrói as línguas; proíbe os rituais e tradições indígenas; desperdiça nosso conhecimento. Em setembro deste ano deve haver a Conferência Nacional de Educação Indígena, em Brasília, acho que será uma grande oportunidade para o povo indígena delinear claramente a escola que interessa...
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Miryam Hess: É preciso avançar nas criações de Cátedras Indígenas, conforme propostas por Marcos Terena. Só é considerado acadêmico o pensamento eurocêntrico. A gente quer que a ciência indígena e a ciência africana sejam incorporadas nos currículos. Esta prostituição deliberada da chamada ciência (eurocêntrica) em relação a interesses econômicos remonta à origem do capitalismo, a deturpações fundamentais das concepções científicas do próprio Isaac Newton...
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BdF: Nesse sentido, Edson, você enxerga com bons olhos a Lei 11.645/2008, que defende a obrigatoriedade do Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Indígena nas escolas?
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Edson: A lei 11.645/2008 é mais ampla que a lei 10.639/2003. Esta criou a obrigatoriedade do ensino da cultura afro-brasileira nas escolas, enquanto a 11.645 de 2008 abrange tanto a cultura afro-brasileira como a indígena. O movimento negro atualmente é muito mais forte, até porque tem forte presença nas cidades. Nossa voz vem mais do campo, onde o tempo é outro e muitas vezes ela demora pra chegar aos meios formadores de opinião. Não que não estejamos presentes nas cidades, mas os territórios indígenas em áreas urbanas foram violentamente atingidos pela lógica da expansão imobiliária, com todas suas consequências, e nossos parentes muito enfraquecidos. Porém, é mais coerente que o movimento negro e indígena unam forças. Mas, no que se refere à história e cultura indígena, é necessário que esta qualificação dos professores seja feita por indígenas. É preciso que as universidades reconheçam muito mais indígenas, principalmente pajés, por notório saber. A biopirataria é um exemplo claro de roubo da ciência indígena. Outro dia uma colega minha aqui em São Paulo veio me fazer propaganda da nova "descoberta" da Natura - que é uma das financiadoras da WWF: o óleo de andiroba trifásica. Eu disse a ela: "mas como assim? Eu nasci e cresci me tratando com andiroba. Inclusive não fico nunca sem"... Portanto, nesse momento, é preciso fortalecer essa idéia de um Instituto de Defesa da Propriedade Intelectual Indígena...
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BdF: Por tudo que você diz é a favor das cotas para indígenas nas universidades...
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Edson: Claro que sim. Inclusive faço parte de um grupo na PUC-SP, que defende as cotas para indígenas nas Pós-Graduações. Porque se nas graduações você ainda vê um ou outro negro, um ou outro indígena: nos programas de pós é muitíssimo raro, quase impossível! Isso traria uma série de outras perspectivas para as universidades. No meu mestrado, por exemplo, eu abordei a história do presídio de Clevelândia do Norte, na região do Oiapoque, que foi criado em 1922 pela República Velha como um experimento repressivo pioneiro para massacrar militantes tenentistas, comunistas e principalmente anarquistas, além de menores abandonados e indigentes. Muitos brasileiros ficaram ali completamente desterrados, doentes, torturados e massacrados. Uma história (de resistência inclusive) que pouca gente conhece, e que antecipou muitos dos elementos do estado de sítio que criou o DEOPS, foi utilizado em outras ditaduras civil-militares, e é utilizado como modelo para muitas penitenciárias ainda nos dias de hoje, as "novas clevelândias".
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BdF: E você sinceramente acredita que seja possível avançar rumo a um respeito maior às perspectivas, tradições e conhecimentos indígenas?
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Edson: Eu sou sempre otimista, embora seja muito difícil lutar contra todo este sistema consolidado. Agora, se o modelo científico civilizatório capitalista é tão bom mesmo, por que a humanidade está correndo o risco de se extinguir? Ou ela tem pela primeira vez na história a humildade de assumir seus limites e sua ignorância... Ou... Eu não gosto de falar muito de antropólogos, mas o Darcy Ribeiro chamava a atenção crítica para aquela oposição entre a "civilização das cidades" (São Paulo, Nova York etc) versus os "bárbaros": quem são os bárbaros mesmo? Veja só São Paulo: quando explico para meus filhos que o Tietê é um rio, eles não acreditam: como pode ser, se fede tanto? A vida parece não fazer mais sentido, e as pessoas esperam a hora dela acabar, muitas já não pensam mais sequer em ter os seus filhos. Um outro problema geral que os povos indígenas enfrentam é que muitos "especialistas" acham que podem falar em nome deles. Diferente dos aliados, que assumem a luta indígena lado a lado. As formas de convívio, as tradições e conhecimentos indígenas podem colaborar e até ser a chave para a criação de uma outra sociedade planetária. E quando falo de conhecimento indígena não estou falando apenas do conhecimento de ervas e plantas, mas do conhecimento de organização social (que para mim não se separa do ambiental). As formas de trabalho coletivo, o respeito mútuo, a forma integrada de entender a relações sociais... Para os Karipuna, por exemplo, sempre é preciso renovar o equilíbrio entre o material e o espiritual. Na Lua cheia de outubro eles fazem o ritual do Toré, que é uma homenagem às Caruanas (seres criadoras e mantenedoras de todas as relações, como a Onça, as Cobra-Grandes e várias outras). O Pajé explicaria muito melhor do que eu, é claro, mas são as Caruanas que falam pra ele como deve ser a festa. Então se trata de uma ocasião no ano em que os Karipuna reúnem-se e reforçam o pacto de preservação e equilíbrio da natureza, e de não exploração entre os homens.
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BdF: Em que medida você acredita que a idéia de religião (como re-ligação de algo previamente separado... homem e natureza; corpo e espírito...), e em particular o cristianismo, tiveram também impactos nesse menosprezo da cultura e conhecimento indígenas?
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Edson: O cristianismo separou o espírito e a matéria; aqui é o sofrimento, lá o paraíso. Que bom que hoje podemos contar bastante com o CIMI [Conselho Indigenista Missionário] em muitas lutas... Agora, o indígena também tem o seu lugar dos mortos, mas para nós é outra coisa muito diferente, e é muito importante o equilíbrio. O sagrado é a relação entre nós, e entre nós e nosso meio. A relação da mãe Terra com seus filhos é constitutiva, não algo externo. Neste sentido que eu chamava a atenção para a concepção de "desenvolvimento dos juruás", que vai contra nossa concepção de interdependência constitutiva entre os seres.
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QUEM É EDSON KAYAPÓ?
Edson Machado de Brito é graduado em História (UFMG), fez pós-graduação lato sensu em História e Historiografia da Amazônia (UNIFAP), e mestrado em História Social (PUC-SP). Atualmente pesquisa no programa de doutorado em "Educação: história: política e sociedade", também na PUC-SP, desenvolvendo uma tese sobre a escola dos Karipuna da aldeia do Espírito Santo em Oiapoque-AP, onde também atua na área de educação indígena e formação de professores.
QUEM É MIRYÁM HESS?
Marília Miryám Hess Rondani é bacharelada e licenciada em Geologia na USP, e pós-graduada em Energia na mesma universidade. Atualmente é conselheira no Conselho da Rede GRUMIN de Mulheres Indígenas.
Reportagem de Danilo Dara publicada em Brasil de Fato. Imagem: Povos Indígenas no Brasil / Socioambiental. Note-se que a Nação Karipuna do Amapá é de etnia tupi: falam português e patois, que é a língua franca da região, mas que apresenta variações do patois falado por outros grupos indígenas e, principalmente, do patois de Caiena. O termo “Karipuna” é usado como autodenominação por essa população e indica uma identidade de “índios misturados” ou “civilizados”, que é tanto atribuída como assumida pelas famílias Karipuna. Os Karipuna de Rondônia, hoje quase extintos, foram relatados como vinculados ao grupo Pano e também nomeados como Élié, e a eles me reporto no título deste blog como descendente que sou de habitantes da Foz do Rio Jamari, na Bacia do Rio Madeira.
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(...) Em sua opinião, ou a "civilização científica capitalista tem pela primeira vez na história a humildade de assumir seus limites e sua ignorância" sobre uma série de complexas questões - entre elas, a preservação da Amazônia, e a própria relação entre humanos e natureza -, ou estaremos todos fadados à extinção. Nesse sentido é enfático: "o nó da questão, que a sociedade brasileira e mundial precisam entender, é que as terras amazônicas sob o cuidado dos indígenas é uma garantia para toda humanidade. Ao retirar a autonomia dos indígenas sobre suas terras estão assinando a sentença de morte da humanidade". O alerta aqui tem em vista as 19 condicionantes propostas pelo Ministro Menezes Direito e aprovadas junto com a demarcação contínua da RSS, que teoricamente se estenderia a outras terras já demarcadas ou por demarcar. Na opinião de Edson: "um verdadeiro golpe, inconstitucional, contra a autonomia indígena e de lesa-humanidade".
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BdF: Poderia começar contando um pouco de sua trajetória?
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Edson Kayapó: Sou filho de Kayapó, mas nasci no estado do Amapá, na margem do rio Amazonas, numa grande aldeia que hoje é a cidade de Macapá. O lugar onde nasci era a periferia da cidade de Macapá, mas devido ao crescimento exagerado da cidade, hoje o lugar é um bairro da cidade. Nossa família era muito pobre, meus pais analfabetos. Minha mãe era uma espécie de pajé, conhecedora de muitas plantas e remédios naturais; meu pai era mecânico. No início dos anos 1960 eles migraram do Pará rumo à região do Amapá, em busca de alternativas de emprego prometidas por aquele grande empreendimento mineral capitalista na Amazônia, a Icomi - que deixou um grande rastro de destruição e miséria na Serra do Navio e região. O Amapá e o Oiapoque, em especial, são lugares de muitas tensões sociais e pobreza... Os meus pais sofreram na pele a exclusão social daquela localidade, apesar de toda solidariedade dos parentes da região. Os dois não davam conta de nos sustentar: éramos sete irmãos e ainda tinha meu tio e meu avô materno que vivia conosco. Tanto que, no início dos anos 1980, antes de eu completar 11 anos, minha mãe tomou contato e me entregou para missionários evangélicos adventistas da região de Altamira-PA. No internato, cumpríamos longas e pesadas jornadas de trabalho na roça ("juquira" como chamam lá). E para fugir desta relação de semi-escravidão, na 8ª série, pedi transferência para outra escola em Cachoeira de São Félix, no Recôncavo Baiano. Lá, entre 1986 e 1987, aprendi muito, estabeleci relações muito diferentes, verdadeiramente antropofágicas - como, aliás continuam sendo hoje em dia aqui em São Paulo. Altamira era como uma prisão; Cachoeira era mais livre, no entanto persistia o rigor da educação missionária. Dois anos depois pedi nova transferência, agora para Petrópolis-RJ. Outro choque cultural: o Rio de Janeiro... Lembro quando conheci aquela cidade grande... Lá a dinâmica de trabalho dentro da escola também era mais amena, mais a vigilância e o controle dos nossos corpos e hábitos transformava a vida numa paranóia. Mas, acabou o segundo grau: acabou a relação com a Igreja! Apesar desse alívio, cheguei a quase esquecer completamente que era índio... completamente! A discriminação era muito grande, eu negava em muitos momentos, o quê era uma grande bobagem da minha parte - as pessoas próximas falavam que era ridículo, estava na minha cara... Nunca me propus a ir a psicólogos, nem sei se eles resolveriam, mas foi uma grande questão psíquica para mim. No Rio fui artesão, cobrador de empresas, vendedor (de livros) e frequentador das degustações de frutas e outros alimentos em supermercados... E foi assim que cheguei a Belo Horizonte-MG, na cara e na coragem, com um pouco de dinheiro para me manter por alguns dias numa dessas pensõezinhas próximas à rodoviária. Tinha que vender meus poucos produtos se não estava frito! E com muita luta consegui passar em História na Federal [UFMG], o quê foi um marco na minha vida: casa dos estudantes, comida em conta na universidade, bolsas que me ajudaram no sustento.
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BdF: O quê mais a universidade significou para você?
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Edson: Se tinha acompanhado o processo da Constituinte (1987-88) como um simples observador no Rio, já em 1989 a universidade foi o lugar onde assumi a luta política, no movimento estudantil. O marxismo era muito presente na época por conta dos recentes movimentos no leste europeu e na ex-União Soviética, bem como devido as primeiras eleições diretas pra presidente e a redemocratização do país. Eu fui ficando próximo ao PC do B e a alas do PT, além de ter um contato muito próximo e fraterno com correntes anarquistas, que eram muito presentes no movimento estudantil mineiro naquele momento. Curioso porque foi através desta militância política de esquerda que fui redescobrir e reafirmar minha identidade indígena. Era louco porque fazíamos, junto com o MST, rituais indígenas dentro da universidade... Os brancos da burocracia universitária ficavam horrorizados!
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BdF: Como era e como é hoje em dia esta relação com certas tradições originalmente "brancas", inclusive aquelas mais radicais de resistência, como muitas correntes marxistas?
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Edson: É interessante porque foi por meio de minha atuação na esquerda política que reafirmei minhas origens indígenas. Penso que os marxistas de todas as vertentes são aliados. Mas por outro lado, de forma geral, estão muito distantes da profundidade que tem a questão indígena: a perspectiva de classe apenas, num país como o Brasil, não é suficiente para explicar e responder às questões sociais. Até porque Marx nem poderia se propor a discutir, na Europa do século XIX, a questão indígena: ele estava interessado na formação e nas contradições da sociedade industrial. Há muitos outros brancos sinceros aliados. E, embora eu não acredite na existência de raças, há uma profunda construção histórica e cultural racista, que nos descrimina profundamente. Isso vem de longe, talvez desde a chamada "grande controvérsia" no século XVI, entre Sepúlveda e Bartolomeu de Las Casas: o primeiro falava em raças inferiores (indígenas) ou raças superiores (brancos europeus), e o segundo reivindicava a possibilidade e o direito de criar um "trabalho espiritual" nas terras e comunidades indígenas: evangelização, sendo mais direto. Uma falsa controvérsia, portanto: os índios não participaram dela, não deram sua opinião. Basta pensar também nessa idéia do Brasil como um país de cultura homogênea, essa idéia de identidade nacional única que exclui a diferença e ignora as mais de 190 línguas indígenas praticadas em nosso território...
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Miryam Hess: Trata-se de um longo processo histórico envolvendo a dominação e o racismo, que neste Continente (Aby Ayala) começa a se reverter somente agora, após mais de 500 anos de resistência indígena continental, com a subida ao poder de Evo Aymara [Morales].
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(...) Edson: Pois é... Quando meu pai saiu do Pará para o Amapá nos anos 60, em busca de emprego na Icomi, já se via vagões e vagões carregando toneladas de manganês para o porto de Santana-AP, e de lá, toda aquela riqueza atravessava o Atlântico. A Icomi, aliás foi um dos pioneiros mega-projetos capitalistas na destruição da Amazônia. Eles se instalavam numa região, ficavam por vários anos retirando tudo que podiam, e depois saíam fora, deixando favelas cheias de gente numa miséria só. O minério de manganês (e o arsênio produzido com ele), devastaram áreas gigantescas, poluindo terras e rios, e causando vários tipos de doenças físicas e psíquicas, no curto e médio prazos. Inclusive o câncer. A gente denuncia, mas sempre tem algum laboratório norte-americano para atestar "cientificamente" o contrário. E aí a "Justiça" acaba acreditando em quem? No nosso povo tradicional e sem escolaridade ou no laudo científico dos gringos? Aquela região teve e tem muito roubo de urânio também, como denunciou a revista Isto é, edição 1908 (2006). E a gente via e vê que as pessoas simples que estão fazendo o trabalho de extração do minério, trazem para dentro de casa o urânio, sem qualquer proteção, para os pilantras virem depois e levar tudo. Estão envolvidos, segundo a Polícia Federal, políticos, empresários nacionais e estrangeiros, terroristas e outros do tipo. O Sarney é senador no estado, mas prefiro nem falar dele, é chumbo grosso... O Eike Batista, que mais uma vez saiu na lista da Forbes como um dos grandes bilionários do mundo, o cara mais rico e playboy do Brasil... Sei... Como tem conseguido isso? À custa da destruição da Amazônia. Vão ver o quê ele está fazendo em Pedra Branca do Amapari-AP e na própria Serra do Navio, que já tinha sido devastada pela Icomi. A sua mineradora, a MMX, declara apenas a retirada de ouro ou de algum minério específico... Mas a gente sabe que os minérios não brotam separadinhos no solo. Então eles literalmente cercam áreas gigantescas, e é o dia inteiro aviões e helicópteros chegando e saindo. E nos galpões: trabalhadores em regime de semi-escravidão. Alguns desses casos são até investigados, em sigilo, pela Polícia Federal, mas muito pouco é noticiado e punido. No Amapá a nova febre são também os tais agrocombustíveis. No distrito de Curiaú-AP são milhares de hectares de cana-de-acúcar financiados pelo BNDES, e com autorização do IBAMA: "permissão para uso sustentável do solo". A expansão da Jarí Celulose, da Amapá Celulose (AMCEL) pela região... Muitas delas até chegam a ter limites ambientais de terras exploráveis, aí elas burlam arrendando terras de terceiros, de pequenos proprietários... Parece brincadeira...
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BdF: É nesse sentido que você defende enfaticamente a importância da autonomia indígena em seus territórios?
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Edson: Exatamente... Me parece que o movimento agora é, cada vez mais tirar a autonomia indígena. As 19 condicionantes aprovadas pelo STF têm esse objetivo. Eles demarcam, mas tiram a autonomia e criam um monte de cláusulas e brechas para poderem explorar os recursos que lhes interessam. Essas condicionantes são um verdadeiro golpe, inconstitucional, contra a autonomia indígena e de lesa-humanidade. Eu estou ansioso para ver a reação dos parentes de Roraima, e dos demais pelo Brasil... No final do ano passado o economista Ignacy Sachs esteve na PUC-SP fazendo uma palestra sobre o quê chama de "desenvolvimento sustentável" ou "biocivilização". E no raciocínio racista dele, que está por trás dessa ofensiva contra os indígenas, tem a seguinte construção: a sociedade moderna está em crise e a Amazônia seria o local da salvação, então os indígenas são um empecilho para esta salvação. Ele, no fundo, fez uma grande fala contra as demarcações. E aí argumenta sobre a crise ambiental, a crise alimentar: ora, o Brasil é um dos maiores produtores de alimentos do mundo e a maioria da população passando fome! A gente sabe muito bem como e para quem produziam os arrozeiros na área da Raposa, diferente dos indígenas que produzem para o sustento inclusive das cidades de Roraima. Imagina se fosse o MST que tivesse ocupado qualquer território: no outro dia vem polícia! Penso que os indígenas estão cansados de tentar explicar que nossa luta não é apenas pelas terras indígenas. Eu cansei de ouvir falar que essa terra é para nós: não é para nós somente! O nó da questão, que a sociedade brasileira e mundial precisam entender, é que as terras amazônicas sob o cuidado dos indígenas é uma garantia para toda humanidade. Ao retirar a autonomia dos indígenas sobre suas terras estão assinando a sentença de morte da humanidade. Uma decisão como esta deveria ser discutida num tribunal internacional, com a participação e voz dos indígenas.
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Miryám Hess: Esta súmula do Ministro Menezes Direito e as 19 condicionantes (18 delas por ele propostas e) aprovadas pelo STF são, realmente, inconstitucionais. O papel a que estes ministros estão se submetendo envergonha o País ao trabalharem para os interesses do agronegócio, dos grandes lobbies de mineração... A idéia deles é que tais condicionantes se estendam para as cerca de 227 áreas que estão declaradas para demarcação, além dos mais de 50 povos declarados "ressurgidos" (termo usado na antropologia) ou "resistentes" (como dizemos nas lutas indígenas). Na prática estão querendo facilitar a destruição de todas estas terras indígenas para os piores modelos de desenvolvimento, aqueles que mais degradam irreversivelmente os ecossistemas.
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Edson: Mas não vamos parar por aqui, e agora temos uma série de territórios que urgentemente precisam ter a demarcação contínua garantida: como a situação dos parentes Guarani-Kayowás do Mato Grosso do Sul, que têm vivido uma situação terrível nos últimos anos, com altíssimas taxas de suicídio entre jovens, sem falar dos homicídios que sofrem constantemente. E por outro lado, os Kayapó e os demais povos xinguanos estão dispostos a lutar até o fim, até o estado mudar de idéia com relação a estes mega-projetos que se espalham pela Amazônia. Foi neste sentido, e não em qualquer outro, que o Tuxaua Kayapó disse que os povos do Xingu estariam dispostos a lutar a "terceira guerra mundial", no sentido de defendesa da Mãe Terra e dos povos originários. Afinal, na região próxima ao Parque Nacional do Xingu, tanto os indígenas quanto ONG's como a Repórter Brasil - que é uma ONG séria - vêm denunciando por meio de análises das águas que a cabeceira do Rio Xingu está sendo completamente poluída por agrotóxicos e resíduos minerais...
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BdF: É a mesma situação que os Xicrin estão enfrentando ali perto, na região da Serra dos Carajás, sobretudo por conta dos antigos e novos mega-projetos da Vale do Rio Doce (como o Onça-Puma e o Salobo), que já estão poluindo importantes nascentes e afluentes que desembocam no rio Tocantins e no rio Marabá...
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Edson: É genocídio, não tem outra palavra! Os indígenas passaram milênios na Amazônia e conseguiram conhecê-la profundamente, respeitá-la e preservá-la, enquanto a civilização científica capitalista, além de massacrar brutalmente nosso povo, em poucos anos a tem desmatado e destruído progressivamente, como nunca antes. A hidrelétrica de Belo Monte, é outro exemplo. Desde 1989 os indígenas falam que não querem, que não vão aceitar... Aí recentemente foram aqueles engenheiros da Eletronorte, que os indígenas chamam de "Eletromorte", para arrogantemente informar que o projeto seria implantado, independente da vontade dos indígenas. E a televisão noticiou com estardalhaço que a índia Tuíra teria tentado matar os engenheiros. Ora, se quisesse matar, Tuíra teria matado facilmente, pois o Kayapó é guerreiro, tem muita habilidade com o terçado [facão], é acostumado a derrubar até árvore com ele. Aquilo foi mais um aviso de que estes mega-projetos e estas grandes hidrelétricas nunca são sustentáveis. São genocidas, e contra eles estamos dispostos a resistir com todas as forças.
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BdF: O projeto de lei para liberação da mineração em terras indígenas vai nessa mesma linha? Ou traria algum benefício para as comunidades originárias?
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Edson: Este projeto de lei não passa de uma tentativa indecente de esmola para os indígenas: cerca de 3%. Os indígenas não querem, não porque sejam bobos, mas porque sabem que isto vai destruir a Amazônia. Ou você acha que eles não sabem que há minérios, mogno e muitas outras riquezas em suas terras? Os Kayapó que chegaram a fazer algumas dessas atividades hoje já não fazem mais, porque tomaram consciência do risco de destruição da vida. Miryám Hess: A proposta de lei de mineração em terras indígenas fere os artigos 231 e 232 da Constituição Federal; fere também a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho; e a própria Convenção dos Povos Originários (ONU). O movimento indígena já está mobilizado para fazer essas denúncias e resistir contra sua aprovação, inclusive em tribunais internacionais.
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BdF: Aqui voltamos ao abismo de linguagem e de conhecimento entre os tribunais "brancos" e a realidade indígena...
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Edson: Pois é... Nessas ocasiões, nesses grandes encontros, existe uma dificuldade muito grande dos indígenas se comunicarem em pé de igualdade por causa da barreira da linguagem, e da concepção de mundo mesmo. Por isso a importância dos parentes se apropriarem desse conhecimento acadêmico. E não estou desqualificando os parentes sem qualificação acadêmica.... Muito pelo contrário: geralmente a academia cria teorias que abstraem e distorcem a realidade. E que são criadas para isso mesmo. Falam de qualquer assunto sem os pés no chão. Nosso compromisso é outro, é com nosso povo indígena. Não quero virar um acadêmico de gabinete, porque aí mano... Por isso tenho uma grande preocupação que é relacionada à educação indígena. Há algum tempo eu acompanho escolas, na Aldeia do Espírito Santo (Oiapoque) e região. E tenho procurado refletir sobre isso em meu doutorado. Porque historicamente a educação indígena é uma verdadeira agressão: desintegra as comunidades; destrói as línguas; proíbe os rituais e tradições indígenas; desperdiça nosso conhecimento. Em setembro deste ano deve haver a Conferência Nacional de Educação Indígena, em Brasília, acho que será uma grande oportunidade para o povo indígena delinear claramente a escola que interessa...
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Miryam Hess: É preciso avançar nas criações de Cátedras Indígenas, conforme propostas por Marcos Terena. Só é considerado acadêmico o pensamento eurocêntrico. A gente quer que a ciência indígena e a ciência africana sejam incorporadas nos currículos. Esta prostituição deliberada da chamada ciência (eurocêntrica) em relação a interesses econômicos remonta à origem do capitalismo, a deturpações fundamentais das concepções científicas do próprio Isaac Newton...
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BdF: Nesse sentido, Edson, você enxerga com bons olhos a Lei 11.645/2008, que defende a obrigatoriedade do Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Indígena nas escolas?
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Edson: A lei 11.645/2008 é mais ampla que a lei 10.639/2003. Esta criou a obrigatoriedade do ensino da cultura afro-brasileira nas escolas, enquanto a 11.645 de 2008 abrange tanto a cultura afro-brasileira como a indígena. O movimento negro atualmente é muito mais forte, até porque tem forte presença nas cidades. Nossa voz vem mais do campo, onde o tempo é outro e muitas vezes ela demora pra chegar aos meios formadores de opinião. Não que não estejamos presentes nas cidades, mas os territórios indígenas em áreas urbanas foram violentamente atingidos pela lógica da expansão imobiliária, com todas suas consequências, e nossos parentes muito enfraquecidos. Porém, é mais coerente que o movimento negro e indígena unam forças. Mas, no que se refere à história e cultura indígena, é necessário que esta qualificação dos professores seja feita por indígenas. É preciso que as universidades reconheçam muito mais indígenas, principalmente pajés, por notório saber. A biopirataria é um exemplo claro de roubo da ciência indígena. Outro dia uma colega minha aqui em São Paulo veio me fazer propaganda da nova "descoberta" da Natura - que é uma das financiadoras da WWF: o óleo de andiroba trifásica. Eu disse a ela: "mas como assim? Eu nasci e cresci me tratando com andiroba. Inclusive não fico nunca sem"... Portanto, nesse momento, é preciso fortalecer essa idéia de um Instituto de Defesa da Propriedade Intelectual Indígena...
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BdF: Por tudo que você diz é a favor das cotas para indígenas nas universidades...
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Edson: Claro que sim. Inclusive faço parte de um grupo na PUC-SP, que defende as cotas para indígenas nas Pós-Graduações. Porque se nas graduações você ainda vê um ou outro negro, um ou outro indígena: nos programas de pós é muitíssimo raro, quase impossível! Isso traria uma série de outras perspectivas para as universidades. No meu mestrado, por exemplo, eu abordei a história do presídio de Clevelândia do Norte, na região do Oiapoque, que foi criado em 1922 pela República Velha como um experimento repressivo pioneiro para massacrar militantes tenentistas, comunistas e principalmente anarquistas, além de menores abandonados e indigentes. Muitos brasileiros ficaram ali completamente desterrados, doentes, torturados e massacrados. Uma história (de resistência inclusive) que pouca gente conhece, e que antecipou muitos dos elementos do estado de sítio que criou o DEOPS, foi utilizado em outras ditaduras civil-militares, e é utilizado como modelo para muitas penitenciárias ainda nos dias de hoje, as "novas clevelândias".
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BdF: E você sinceramente acredita que seja possível avançar rumo a um respeito maior às perspectivas, tradições e conhecimentos indígenas?
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Edson: Eu sou sempre otimista, embora seja muito difícil lutar contra todo este sistema consolidado. Agora, se o modelo científico civilizatório capitalista é tão bom mesmo, por que a humanidade está correndo o risco de se extinguir? Ou ela tem pela primeira vez na história a humildade de assumir seus limites e sua ignorância... Ou... Eu não gosto de falar muito de antropólogos, mas o Darcy Ribeiro chamava a atenção crítica para aquela oposição entre a "civilização das cidades" (São Paulo, Nova York etc) versus os "bárbaros": quem são os bárbaros mesmo? Veja só São Paulo: quando explico para meus filhos que o Tietê é um rio, eles não acreditam: como pode ser, se fede tanto? A vida parece não fazer mais sentido, e as pessoas esperam a hora dela acabar, muitas já não pensam mais sequer em ter os seus filhos. Um outro problema geral que os povos indígenas enfrentam é que muitos "especialistas" acham que podem falar em nome deles. Diferente dos aliados, que assumem a luta indígena lado a lado. As formas de convívio, as tradições e conhecimentos indígenas podem colaborar e até ser a chave para a criação de uma outra sociedade planetária. E quando falo de conhecimento indígena não estou falando apenas do conhecimento de ervas e plantas, mas do conhecimento de organização social (que para mim não se separa do ambiental). As formas de trabalho coletivo, o respeito mútuo, a forma integrada de entender a relações sociais... Para os Karipuna, por exemplo, sempre é preciso renovar o equilíbrio entre o material e o espiritual. Na Lua cheia de outubro eles fazem o ritual do Toré, que é uma homenagem às Caruanas (seres criadoras e mantenedoras de todas as relações, como a Onça, as Cobra-Grandes e várias outras). O Pajé explicaria muito melhor do que eu, é claro, mas são as Caruanas que falam pra ele como deve ser a festa. Então se trata de uma ocasião no ano em que os Karipuna reúnem-se e reforçam o pacto de preservação e equilíbrio da natureza, e de não exploração entre os homens.
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BdF: Em que medida você acredita que a idéia de religião (como re-ligação de algo previamente separado... homem e natureza; corpo e espírito...), e em particular o cristianismo, tiveram também impactos nesse menosprezo da cultura e conhecimento indígenas?
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Edson: O cristianismo separou o espírito e a matéria; aqui é o sofrimento, lá o paraíso. Que bom que hoje podemos contar bastante com o CIMI [Conselho Indigenista Missionário] em muitas lutas... Agora, o indígena também tem o seu lugar dos mortos, mas para nós é outra coisa muito diferente, e é muito importante o equilíbrio. O sagrado é a relação entre nós, e entre nós e nosso meio. A relação da mãe Terra com seus filhos é constitutiva, não algo externo. Neste sentido que eu chamava a atenção para a concepção de "desenvolvimento dos juruás", que vai contra nossa concepção de interdependência constitutiva entre os seres.
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QUEM É EDSON KAYAPÓ?
Edson Machado de Brito é graduado em História (UFMG), fez pós-graduação lato sensu em História e Historiografia da Amazônia (UNIFAP), e mestrado em História Social (PUC-SP). Atualmente pesquisa no programa de doutorado em "Educação: história: política e sociedade", também na PUC-SP, desenvolvendo uma tese sobre a escola dos Karipuna da aldeia do Espírito Santo em Oiapoque-AP, onde também atua na área de educação indígena e formação de professores.
QUEM É MIRYÁM HESS?
Marília Miryám Hess Rondani é bacharelada e licenciada em Geologia na USP, e pós-graduada em Energia na mesma universidade. Atualmente é conselheira no Conselho da Rede GRUMIN de Mulheres Indígenas.
Reportagem de Danilo Dara publicada em Brasil de Fato. Imagem: Povos Indígenas no Brasil / Socioambiental. Note-se que a Nação Karipuna do Amapá é de etnia tupi: falam português e patois, que é a língua franca da região, mas que apresenta variações do patois falado por outros grupos indígenas e, principalmente, do patois de Caiena. O termo “Karipuna” é usado como autodenominação por essa população e indica uma identidade de “índios misturados” ou “civilizados”, que é tanto atribuída como assumida pelas famílias Karipuna. Os Karipuna de Rondônia, hoje quase extintos, foram relatados como vinculados ao grupo Pano e também nomeados como Élié, e a eles me reporto no título deste blog como descendente que sou de habitantes da Foz do Rio Jamari, na Bacia do Rio Madeira.
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