18 de junho de 2009

Maury e as veias abertas da Amazônia

“Grupo de Escravos (?) com Mercadores Árabes” - Zanzibar, 1850-1890
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Quando presenciei pela primeira vez essa foto histórica do tráfico negreiro da África Oriental, em "The Winterton Collection of East African Photographs", confesso que fiquei impressionado também em dar-me conta de que nunca vira fotos de um Navio Negreiro, apenas ouvira e lera descrições e uma ou outra pintura. Em 1850, data presumível da imagem, a Inglaterra já combatia o tráfico de escravos há algumas décadas, mas aqui no Brasil ainda estava por ser publicada uma lei rígida a fim de impedir a entrada de novos escravos (leiam aqui). A imagem da fotografia, além de carregada de signos e leituras, também me permitiu recordar um dado curioso que pesquisei dez anos atrás quando elaborava minha monografia "Do Prata ao Amazonas - A Navegabilidade do MERCOSUL e a Questão Ambiental", que finalizei em São Pedro do Sul – RS , no ano 2000.
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Esta informação, oculta nos velhos arquivos, dizia respeito à propaganda realizada por um eminente Tenente da Marinha norte-americana nessa mesma época de 1850: Matthew Maury, escrevendo sob o pseudônimo "Inca", fomentava que os negros do sul dos Estados Unidos fossem libertos e enviados para colonizar a Amazônia. Como o Império do Brasil não abrira o Amazonas à navegação internacional, os Estados Unidos então procuraram cercá-lo por todos os lados, inclusive apoiando ocultamente a Guerra do Paraguai como forma de pressão contra D. Pedro II. O resultado da Guerra da Secessão nos Estados Unidos não deram seguimento ao Plano Maury, e tampouco houve algo similar aqui no Brasil quando em 1888 foi abolida oficialmente a escravidão, mas a tese de colonizar a Amazônia para dela sacar o máximo proveito temsequência até os dias de hoje. Publico portanto o que a citada monografia, em suas páginas 54 a 58, contava sobre a História da Navegação no Rio Amazonas:
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"Após a Independência do Brasil, os interesses da primeira Imperatriz, Dona Leopoldina de Habsburgo, junto ao ministro José Bonifácio de Andrada, pelas Ciências Naturais, representaram um estímulo à entrada de cientistas em viagem de estudos no país, até então pouco explorado por cientistas portugueses. Ainda antes da Independência, Von Martius e Spix haviam podido viajar de Juazeiro, no Rio São Francisco, até o Piauí, atravessando a caatinga, depois do que alcançaram o Maranhão, passaram ao Amazonas navegando até a altura de Tefé, de onde Spix subiu até o Peru enquanto Von Martius ia pelo Japurá até a República da Grã-Colômbia. Ambos voltaram a se encontrar de regresso em Belém, embarcando em 1820 para Munique com ricas coleções de botânica. Outros os seguiram no afã de descobrir a Amazônia para o mundo científico: Mawe, em 1828; Poepping, em 1831; Smyth, em 1834; Von Tschudi, em 1845; De Castelneau, em 1846, e Edwards, nesse mesmo ano.
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Em razão da riqueza dessas novas descobertas, despertou-se o interesse comercial dos Estados Unidos: entre 1849 e 1855, um oficial da Marinha de guerra norte-americana, o Tenente Matthew Fontaine Maury, publicou com o pseudônimo "Inca" uma série de artigos em jornais e revistas de seu país (1) , conclamando a opinião pública dos Estados Unidos pela abertura do "rei dos rios" ao comércio internacional. Segundo Maury, a abertura do rio-mar teria em relação à prosperidade dos Estados Unidos o mesmo efeito que teve a aquisição da Louisiana, e o governo americano aparentemente fez ouvido às suas idéias passando a sugerir ao Brasil as vantagens que adviriam do aproveitamento comercial do Amazonas. O próprio Henry David Thoreau comentaria em seu ensaio “Life without Principle”:
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"Lieutenant Herndon, whom our Government sent to explore the Amazon, and it is said, to extend the area of slavery, observed that there was wanting there a industrious and active population, who knows what the comforts of life are, and who have artificial wants to draw out the great resources of the country”.
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Matthew Fontaine Maury

Envolto nos artigos de Maury, segundo Sérgio Teixeira de Macedo, então ministro do Brasil em Washington, havia em andamento um plano da iniciativa privada norte-americana para transferir os negros do sul do país para o norte do Brasil, sendo que Belém do Pará seria o ponto de irradiação prática destes para o resto da Amazônia brasileira (2) . Publicados no Brasil em 1853 através do "Correio Mercantil", os artigos de Maury despertaram a apreensão dos nacionalistas, juntamente com a notícia de que se preparava em New York uma expedição de flibusteiros para forçar a abertura do Amazonas (3) . Outros intelectuais brasileiros sustentariam um ponto de vista mais aprofundado sobre a questão, como Gonçalves Dias, que em carta a Tavares Bastos declarou:
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"A respeito de Maury, V. me permitirá manifestar-lhe a minha opinião quanto ao resultado final do seu impresso. Autor infesto ao Brasil e mesmo odiado por muitos dos nossos homens ilustrados como advogado de desenfreadas ambições dos Americanos, Maury, no meu entender, deve ser qualificado como um dos beneméritos do Amazonas. As suas exagerações mesmo serviram... e data de então o maior cuidado que o governo tem tido com as coisas daquelas províncias, futuro paraíso, como se antolhou a Humboldt...” (4).
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A liberdade de navegação na Bacia do Amazonas foi estabelecida através de uma série de tratados bilaterais, a partir dessa mesma época, entre Brasil e Peru, entre Estados Unidos e Peru, entre Estados Unidos e Colômbia, entre Brasil e Venezuela e entre Equador e Peru. Também foi assegurado por meio de regulamentações unilaterais efetuadas por via legislativa, como foi o caso no Brasil, na Colômbia, no Equador e no Peru. A 23 de outubro de 1851, o Brasil e o Peru declararam, por meio de um tratado bilateral, que a navegação sobre o Amazonas, desde a sua foz até o território peruano, pertencia exclusivamente aos Estados ribeirinhos respectivos. A 15 de Abril de 1853, através de um decreto, o governo peruano reconfirma a concessão feita ao Brasil dois anos antes, especificando que o Peru estava disposto a estender os mesmos direitos, no concernente ao território peruano, aos cidadãos e sujeitos de outras nações que houvessem concluído com ele tratados comportando a cláusula de nação mais favorecida, ou seja, com privilégios no comércio exterior. Foi assim que os Estados Unidos, que em 1851 haviam firmado com o Peru um tratado com esta cláusula de tratamento com prerrogativas, passou a reclamar desse país as mesmas vantagens que acabavam de ser outorgadas ao Brasil quanto à navegação no trecho peruano do Amazonas.
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O Peru, entretanto, recusou atender a demanda norte-americana, e a 4 de janeiro de l854 seu governo emitiu um decreto declarando não dar direitos sobre a navegação do Amazonas peruano senão ao Brasil, excluindo-se todas as outras nações estrangeiras, mesmo se elas houvessem assinado convenções especiais com o Peru em matéria de navegação. O fato foi que o Brasil desde pronto mostrara-se hostil à idéia de abrir o Amazonas à navegação dos Estados Unidos, precavendo-se talvez da possibilidade de aplicação do plano aventado por Sérgio Teixeira de Macedo, e havia portanto protestado contra o decreto peruano de abril de 1853. A posição brasileira era de que o direito de navegação na Bacia do Amazonas devia pertencer somente aos seus ribeirinhos e não podia ser estendida aos não-ribeirinhos por meio da aplicação de cláusulas de favorecimento.
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Sem sucesso os Estados Unidos continuaram insistindo em negociar com Brasil e Peru a abertura do Amazonas, mas colheram melhores resultados adiantando-se com os outros países ribeirinhos, mesmo que seus navios jamais pudessem chegar até lá sem passar primeiramente por território brasileiro. A 26 de novembro de 1853, a República do Equador, por meio de um decreto-lei, declarou abrir a todas as nações os rios que passavam por seu território (e obviamente os afluentes do Amazonas). Seguiu-se um Tratado de Amizade entre Estados Unidos e Bolívia, em virtude do qual este último país atestava reconhecer que o rio e seus afluentes estavam abertos, por natureza, ao comércio de todas as nações. Colômbia já havia promulgado, a 24 de maio de l856, uma lei autorizando a circulação sobre as vias navegáveis colombianas de todos os navios de comércio nacionais ou estrangeiros.
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Foi graças à Guerra do Paraguai, surgida após o rompimento do acordo de livre navegação dos rios Paraná e Paraguai assinado em 1852, que o Brasil se viu obrigado a atender à demanda norte-americana e abrir o Amazonas. Já Inglaterra e França haviam obtido anos antes o acesso ao Rio da Prata, e desde 1853 os Estados Unidos garantira-se o direito de navegar o Rio Paraguai em todo o seu percurso até a fronteira do Brasil, mantendo as melhores relações com a jovem república criada em Asunción, de modo que pode assim influenciar secretamente os interesses bélicos do Paraguai no Brasil. Lawrence F.Hill confirmou a respeito que a abertura do sistema fluvial do Prata (e portanto a Guerra do Paraguai) foi usada como cunha para conseguir-se a abertura do Amazonas aos Estados Unidos da América (5) .
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Enfraquecido pela prolongada conflagração militar nos sertões de Mato Grosso e no sul do país, o governo imperial brasileiro, pelos decretos de 7 de dezembro de 1866 e 31 de julho de 1867, declarou o Amazonas e seus afluentes abertos, a partir de 1º de setembro de 1867, aos navios e ao comércio de todos os países. Em 17 de dezembro de 1868, o Peru aquiesceu proclamando por decreto que "a navegação de todos os rios da república está aberta aos vasos mercantes de qualquer nacionalidade”. A guerra com o Paraguai, concluída em 1870 e seguida por seis anos de ocupação brasileira no país vizinho, seria por motivos econômicos causa da falência da monarquia no Brasil, havendo fortalecido também em demasia o setor militar, o qual proclamaria a República em 1889, pouco depois da abolição da escravatura no país, aproveitando-se da insatisfação dos latifundiários escravocratas contra a família real. Quanto à abertura do Amazonas, esta propiciou, entre outras expropriações por contrabando (como no caso de madeiras nobres e metais preciosos, até os dias de hoje levados da região sem uma possibilidade efetiva de controle total das fronteiras), a falência dos seringais da Amazônia, emergentes no final do século 19, pelo roubo de 70 mil sementes que o inglês Alexander Wickham, ingressado no Pará como botânico, levou da região do Rio Tapajós: “em 1901, além das plantações inglesas no Ceilão, começa o cultivo da Hevea brasiliensis nas colônias holandesas do Oriente; os alemães fazem experimentos de plantio na África e os franceses na Indochina” (6).
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Exceção feita à Questão do Acre, levantada entre Bolívia e Brasil em 1901 por motivo da disputa do vale do Rio Acre, afluente do Purus habitado por bolivianos e seringueiros brasileiros, a qual implicou em uma interrupção da livre-navegação do Amazonas, afetando igualmente à França, Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos, sendo resolvida apenas em 1903, já não houveram entraves diplomáticos quanto ao Amazonas. Finalmente, por um tratado concluído a 12 de outubro de 1910 entre Bolívia e Brasil, a liberdade de navegação sobre o Amazonas e seus afluentes navegáveis (entre a Bolívia e o mar) estavam confirmados para os navios de todas as bandeiras.
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(1) Citam-se o "Southern Literary Messenger", o "National Intelligencer", o "Washington Union" e a "De Bow's Review", além de panfletos como "Letters on the Amazon and Atlantic Slopes of South America".
(2) TEIXEIRA SOARES. "Um Grande Desafio Diplomático no Século Passado", p.54, op.cit.
(3) Ver KIDDER & FLETCHER, "Brazil and the Brazilians". Philadelphia, 1857, p.578-579.
(4) Citado por TEIXEIRA SOARES, "Um Grande Desafio Diplomático do Século Passado", p.54, op.cit.
(5) HILL, Lawrence F. "Diplomatic relations between the United States and Brazil". Duke University Press, 1932, p.218.
(6) RIBEIRO, Berta G. “Amazônia Urgente – Cinco Séculos de História e Ecologia”. Belo Horizonte, Itatiaia, 1990. p.166.

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