16 de junho de 2009

À Demanda da Verdade


"Não é hora para ficarmos calados" - Alberto Chirif

"Os antecedentes são conhecidos. Aproveitando faculdades legislativas outorgadas pelo Congresso, o Executivo peruano despachou uma centena de decretos de diverso corte e que porcerto vão muito além do objetivo da delegação recebida, que era adequar certas normas nacionais para poder implementar melhor o Tratado de Livre Comércio, subscrito pelo Peru com os Estados Unidos. Entre eles, por exemplo, há um que exime de juízo aos policiais que matem ou firam civis “em cumprimento de suas funções” e que permite a detenção de pessoas sem mandato judicial. E há vários que o seguem contra os povos indígenas, que ao longo de anos conseguiram que lhes reconheçam uma série de direitos, tanto no âmbito nacional como no internacional.

As análises jurídicas já foram feitas por muitos advogados, uns especialistas em temas indígenas e outros em assuntos constitucionais e, não sendo nossa especialidade, não queremos abundar no tema que eles examinaram com propriedade. Sobre o tema, recomendamos ler o contundente informe de Francisco Eguiguren, a quem ninguém poderá acusar de responder a interesses políticos partidários, nem sequer de ter vinculações com o movimento indígena. Hoje muitos alegam que o governo deve manter o estado de direito, mas passam por alto que o primeiro em transgredi-lo tenha sido precisamente o governo ao promulgar leis que não têm nada que ver com o TLC e que são anticonstitucionais por violar o direito de consulta, por afetar direitos reconhecidos aos indígenas na Constituição e as leis e por derrogar normas de maior hierarquia.

O massacre acontecido dia 5 de junho é consequência de uma longa sucessão de agressões, do Executivo em geral e do presidente Garcia em particular, contra os indígenas, aos quais desde o começo qualificou de "
cachorros do roceiro", para indicar que tinham recursos que não aproveitavam, mas que ao mesmo tempo não deixavam que fossem explorados por outros. Os indígenas, que não tem porque saber de ditados espanhóis ["el perro del hortelano no come ni deja comer"; em português: "o cachorro do roceiro nem come nem deixa os outros comerem"] nem de hortelãos, receberam a mensagem cientes de serem qualificados como cães pelo presidente, e logicamente reagiram com respostas escritas e comentários a seus artigos, que desta maneira havia começado a exacerbar seus ânimos.

A atuação dos achuares do Corrientes em defesa de sua saúde e a de seu meio ambiente começou uma série de protestos indígenas no ano 2006. Diante delas, o governo, assim como agora, assim como sempre, negou as evidências de contaminação e se omitiu de assumir sua responsabilidade de defender a seus cidadãos. Entretanto, a irresponsável tática de dilação para cansar aqueles que reclamam não funcionou neste caso e os achuares, exacerbados pelo governo, tomaram as instalações e, após tensa situação, o obrigaram a assumir seu rol. A ata de Dorissa, que selou os acordos dos indígenas com a empresa e o Estado para começar a sanear a zona (reinjetando as águas de formação), recolhendo os restos de petróleo acumulado em poças e reconhecendo demandas sociais (educação e saúde, que porcerto não foram atendidas) é apresentada pelo ministro do ambiente, Antonio Brack, como uma mostra de que a extração mineradora e de hidrocarburos é agora una operação “limpa” e que a contaminação é problema do passado. Um mundo de fantasias o que apresenta o ministro, porque remediar os estragos ambientais e recuperar a saúde das pessoas afetadas pela presença de metais pesados em seu sangue levará muitos anos e porque em zonas onde a população não teve a força dos achuares para reivindicar seus direitos as coisas seguem piorando ano a ano. O caso de Doe Run, em La Oroya, à qual, pela quarta vez, o Estado deu novo prazo para cumprir com o PAMA (Plan de Adecuación al Medio Ambiente) é significativo. A César o que é de César, senhor ministro, e o senhor deve reconhecer que as mudanças que se produziram no Corrientes se devem à inteireza das reclamações dos indígenas e não à vontade do governo, que não os aceitaram até o último momento. Que o governo tire uma lição disso e não repita como papagaio seus manuseados argumentos sobre indígenas manipulados, interesses de países estrangeiros que não querem que o Peru progrida e outros no estilo.

Mas o governo peruano não aprendeu a lição. Neste caso, outra vez o governo apelou à mesma tática de dilatar, de tentar cansar as pessoas, de driblá-la. Diante das reclamações de AIDESEP ao Executivo para a derrogatória dos decretos, a resposta foi que a organização tinha que falar com o Legislativo, já que o tema era de sua responsabilidade. E frente ao pedido expresso de derrogatória ante o Congresso, formulado dessa vez pela Comissão de Constituição e avalizado por uma demanda neste sentido da Defensoria do Povo ante o Tribunal Constitucional, a maioria legislativa respondeu que tinha que esperar o resultado do diálogo entre os indígenas e o Executivo. Se tratou de uma atitude evasiva, irresponsável e covarde da maioria parlamentária.

A perfeita sucessão entre a negativa do Congresso para derrogar os decretos e o ataque no dia seguinte aos manifestantes aguarunas e huambisas que tinham tomado a estrada próxima a Bagua, fala acerca de uma estratégia planificada por parte do gobierno. O Congresso não esperava os resultados do diálogo entre os representantes indígenas e o Executivo, tal como o disseram congressistas da maioria, mas sim aguardavam a repressão violenta daqueles que haviam fechado a estrada. Fica também claro que a resposta violenta do governo foi para adiantarse à resposta do Tribunal Constitucional, ante o qual a Defensoria do Povo havia apresentado, um par de dias antes, a demanda de inconstitucionalidade contra o decreto 1064.

As mentiras depois do ataque aos que bloquevam a estrada se sucedem e se reforçam dia a dia. O argumento da manipulação externa, que culpa aos presidentes de Venezuela e Bolivia pelos protestos, ou ao líder do Partido Nacionalista, é patético não apenas por falso, mas porque é uma maneira do governo de seguir evadindo sua responsabilidade frente às causas que estão na raiz dos protestos. A mentira não é boa conselheira, nem serve para que a gente assuma seus erros e busque soluções aos problemas. O próprio presidente do Conselho de Ministros, Yehude Simons, apelou a esta estratégia em uma recente entrevista televisionada, ao referir-se de modo indireto que por detrás do levantamento indígena estava o governo do Equador, com a finalidade de prejudicar a capacidade produtiva petroleira do Peru e evitar a competição. Sendo benévolos, poderíamos pensar que se trata de uma expressão de ignorância total acerca do que acontece nesse país, onde os indígenas atravessam problemas similares aos do Peru e protestam contra as petroleiras e contra o governo com similar energia que no Peru. Como exemplos podemos mencionar o juízo a Texaco interposto pelos cofanes, e as demandas dos kichwas de Sarayaku contra a Compañía General de Combustibles de Argentina e dos shuares contra outras empresas petroleiras. Mas nos dá trabalho pensar que pessoas que governam um país possam ser tão ignorantes, razão pela qual pensamos que o argumento foi maliciosamente desenhado para distrair a atenção.

A associação das reclamações indígenas com o terrorismo e o narcotráfico é também outra mentira grosseira. A nenhuma organização terrorista nem dedicada ao narcotráfico lhe passaria pela cabeça levantar tamanha poeira como a originada pelas manifestações indígenas em grande parte da Amazônia, porque seria um ato suicida ficar assim a descoberto. Surpreende escutar ao senhor Simons somando-se a este coro de falsidades, dado que ele próprio, fazem alguns anos, foi vítima de acusações semelhantes, que conseguiu superar graças à solidariedade de cidadãos que denunciaram o atropelo contra sua pessoa e ao papel de algumas instituições, entre elas ONGs e a Defensoria do Povo às quais agora ele desacredita.

O acontecido em Bagua é lamentável pela morte de policiais e indígenas, cujas famílias se esfacelaram e devem acostumar-se a continuar sua vida com esposas viúvas e descendentes órfãos. Após mais de uma década de violência, o enfrentamento entre peruanos é algo que nunca deveria voltar a acontecer. Ainda que não se trata de estabelecer uma competição de mortos, as notícias atuais nos produzem profunda desconfiança e pensamos que deverá passar um tempo para que se descubra a verdadeira dimensão desta tragédia. O governo deverá responder pela morte dos indígenas e dos próprios policiais, aos quais mandou para resolver um assunto que deveria haver solucionado pela via política e não a da repressão armada.

O que sim é objetivo é que a violência se originou no governo, primeiro com os ataques do cão do roceiro, e logo com a promulgação de decretos confiscatórios e, finalmente, com o ataque armado empregando armas de guerra contra uma população que só tinha lanças, como o reconheceu o próprio diretor geral da Polícia Nacional, general José Sánchez Farfán, em uma entrevista televisionada. Também sobre isto se mentiu ao se dizer que os indígenas dispararamn contra um helicóptero, quando na realidade este fato sucedeu na zona do VRAE, a centenas de quilômetros de Bagua, e num contexto no qual, efetivamente, se enfrentava o Exército contra narcotraficantes. Porta-vozes do governo distorsionaram as notícias buscando impressionar à cidadania.

Todo ato de crueldade deve ser sancionado, mas antes há que prová-lo, e nas circunstâncias atuais, com as notícias dominadas pelo governo, não existem condições que garantam a objetividade da informação. Assim como circulam notícias de atos de barbárie cometidos pelos indígenas, há outras que se referem a atrocidades realizadas pela polícia. Cair em sua difusão é colaborar a confundir as coisas, em vez de buscar soluções. Entretanto, o governo peruano e alguns meios estão avivando antigas imagens sobre os indígenas que os apresentam como selvagens e, ao mesmo tempo, aproveita a situação para declarar una caça às bruxas contra o movimento indígena e contra o presidente de AIDESEP, Alberto Pizango. Apresentar a este como responsável do massacre de Bagua é absurdo. A incursão da polícia se realizou no mais absoluto segredo, apenas algumas horas depois da mentira do Congresso de que aguardaria os resultados da negociação do Executivo com AIDESEP. Seu rol foi atuar como porta-voz de uma posição definida pelas bases. Foi o governo que desencadeou a reação dos manifestantes ao atacá-los com armas de guerra.

Para aguarunas e huambisas a agressão externa e a venta de seus recursos pelo governo a empresas estrangeiras não só está na letra dos decretos como possibilidade futura, mas é algo que já se plasma na realidad. Já fazem alguns anos, o governo assinou contrato com HOCOL para explorar recursos petroleros em parte do Alto Rio Marañón, sem haver-se dado o menor trabalho para tentar consultar a medida antes de tomá-la. Por ouro lado, a empresa mineradora, Borato Peru, subsidiária de uma transnacional canadense, se instalou na zona da Cordilheira do Condor com a finalidade de explorar ouro. O Ministério de Energia e Minas disse que ela não tem permissão para trabalhar ali, mas tampouco fez nenhum esforço para retirá-la. Como denunciou o jornalista César Hildebrandt e um especial de La Primera faz apenas uma semana, esta empresa, que opera em zona de fronteira vedada pela Constituição a estrangeiros, tem como gerente geral ninguém menos que a Carlos Ballón, assessor principal em questões de mineração do plano de campanha do atual governo.

Aguarunas e huambisas são culturas de antiga tradição guerreira, com grande capacidad de união frente a agressões externas, como o demostraram ao longo da história. O que está acontecendo agora é mostra disso e o governo deveria sabê-lo a fim de deter sua irresponsável cadeia de provocações que pode gerar situaciones nefastas para o desenvolvimento da paz no país.

Apesar de ser difícil que nas condições atuais o governo retifique sua atitude e aceite sua responsabilidade em todo este cúmulo de barbaridades, devemos pedir que faça isso como única manera de plantear condições claras e sadias para o diálogo com os povos indígenas.

Não é hora para ficarmos calados."

Há 40 anos a vida de Alberto Chirif está centrada em temas amazônicos, especialmente aqueles que dizem respeito aos direitos coletivos dos povos indígenas. Antropólogo e escritor peruano, dirige o Programa Integral de Desenvolvimento e Conservação Pacaya Samiria. Representa no Paraguai a Nouvelle Planète, instituição suíça que apóia projetos no Peru e outros países sul-americanos. Contato: alberto.chirif@gmail

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