27 de julho de 2009

Poluição sonora na Amazônia

Klaus Kinski em "Fitzcarraldo" (1982)

Ficou para trás a imagem do gramofone de Fitzcarraldo, que como marca de sua loucura no filme de Werner Herzog lançava aos céus da Amazônia o som civilizado dos clássicos maestros como se assim fosse espantar tudo o que de bárbaro a paisagem inculta da selva bruta pudesse conter. A engenhoca tecnológica denotava o sentimento de superioridade de Fitzcarraldo ao impor-se aos ouvidos dos indígenas, mas é certo que a natureza decompositora da floresta igualmente a terminaria engolindo.
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A guerra ao som de "As Valquírias" de Wagner, em "Apocalypse Now" de Coppola, enquanto os helicópteros norte-americanos brandiam suas hélices sobre a selva vietnamita, representavam a ironia da erudita arte musical desapropriada pela tecnologia para servir como fundo musical para a destruição enquanto exercício de poder. Herzog retrabalharia a questão em seu documentário sobre a Guerra do Golfo, "Lições da Escuridão"(1992): o espetáculo da poluição dos poços de petróleo incendiados é mostrado ao som de melancólica música clássica fazendo ver a grande dicotomia entre os refinamentos da civilização ocidental e sua própria barbárie.
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Fundo musical apropriado para os atritos da vida urbana segundo muitos jovens, inclusive alguns mais engajados em esquemas alternativos, é a música eletrônica. A mais moderna tecnologia é utilizada para subverter sons, gerando entretenimento a partir de uma combinação de programadores: uma música maquinal, eco da experiência da vida moderna nos grandes centros urbanos, multiplicada em fortes decibéis que rompem os limites da capacidade humana. Rompe-tímpanos, a música das raves não tem nada a ver com a música dos luaus à qual sucedeu: certamente as raves reagem à hipocrisia da civilização capitalista de modo oposto ao dos luaus que buscavam o som acústico e a poesia de sertões estrelados, pois, ao passo que os luaus eram demonstrativos de uma esperança coletiva e uma consciência alternativa, o modo das raves traduz atitudes de desesperança e um consumismo exacerbado onde o sujeito chega até a consumir a si próprio.
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Dentro desse sistema de consumo amplificado e contando com a propaganda midiática da indústria de lazer, a música eletrônica aparece como modernidade ao gosto da juventude globalizada. Enquanto "som maluco", de característica rebelde, se faz palatável aos jovens dos grandes centros urbanos em especial àqueles que não tiveram acesso a uma mínima formação musical como a grande maioria. O chamado "ruído na comunicação" que décadas atrás era mencionado pelos estudiosos da linguística como dificuldade de diálogo entre gerações ou grupos culturais diferentes mas de mesmo idioma, agora é barulho mesmo, um barulho sobremodo invasivo pois os "bass boost" das mesas de som produzem ecos na caixa interna do tórax onde está o coração e por onde flui o sangue para todas as partes do corpo humano, às vezes mesmo a uma distância de quilômetros.
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Essa poluição sonora está sendo distribuída mundo afora, tanto pelas raves quanto pelas rádios que veiculam música eletrônica vinte e quatro horas por dia. As raves buscam os sertões do Brasil ou se internam em viagens de transatlântico pela costa do país para assim escaparem à vigilância policial, já que o lema "sex, drugs and rock´n roll" ainda causa bastante impacto no ideal libertário da juventude e, mesmo sem um bom rock, o sexo com drogas figura como ritual de iniciação na vida adulta para muita gente (inclusive para quem cigarros e bebida alcóolica não são drogas, já que legalizados pelo sistema, enquanto a milenar bebida ameríndia da ayahuasca ou um coquetel de Ecstasy com Viagra representam a mesma qualidade de ato transgressor). Em minúsculas cidadezinhas da Amazônia, como Assis Brasil, na tríplice fronteira com Peru e Bolívia, ou Fonte Boa, no Rio Solimões, os pobres moradores se sentem acuados quando um fanfarrão qualquer da cidade desfila seu carro pela madrugada com o possante aparato sonoro no máximo volume transmitindo a música eletrônica da rádio, e não se sentem capazes de contrapor-se a essa invasão ou mesmo de pedir uma intervenção policial a favor do repouso noturno das crianças, dos idosos ou dos trabalhadores, pois sua sensação é de medo, pânico diante dessa demonstração de violência sonora cometida impunemente e muitas vezes cotidianamente. E quem se recolheria a umas sonhadas férias em uma praia do Araguaia, por exemplo, sabendo que terá que suportar esse baticum eletrônico todas as noites a martelar seu sossego?
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No Peru, helicópteros foram proibidos de fazer linha todos os dias entre Cusco e Machu Picchu, como queriam os empresários da área, porque a poluição sonora gerada por seus motores acabariam espantando e maltratando a fauna (e flora) do Santuário Nacional de Machu Picchu. Nas aldeias indígenas, há muito tempo também se sabe que criar muitos cães espanta os animais silvestres para longe e inviabiliza a caça de subsistência. Qual o sentido de levar raves para o interior da floresta senão o de permitir ou facilitar atividades ilegais? Ora, o IBAMA não fiscaliza poluição sonora. E poluição sonora, fora dos perímetros urbanos, não costuma receber nenhum tipo de impedimento, acredito que nem no Brasil nem fora dele, a não ser em caso de áreas de proteção ecológica. É bom lembrar que poluição sonora também mata ou causa sequelas. A questão, mais do que legal, é de ética. Não houve ética na invasão colonialista de quinhentos anos atrás e não existe ética hoje entre a maioria dos descendentes dos espoliadores do continente. Como exigir ética de promotores de raves, produtores de música eletrônica ou fabricantes de equipamentos de som? Como exigir ética de consumidores desse tipo de entretenimento? Mais do que alienados, eles parecem ser alienígenas ou no mínimo pouco humanos quando desprezam a possibilidade de compreensão do ambiente ao seu redor e não diferenciam o espaço urbano (caótico, conturbado, doentio) de um espaço natural (harmônico, equilibrado, saudável) para seu próprio proveito.
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E não venham dizer que existem "raves ecológicas" só porque o pessoal acampou na Chapada dos Veadeiros para fazer seu Woodstock particular. Mesmo quem como eu curte o Sepultura mandando seu "Itsari" no álbum Roots onde heavy metal foi mixado com a música de tribos do Xingu, sabe que o som das motosserras é um cruel avassalador (fala de vassalagem, de pagar tributo aos poderosos e suas instituições) contra a natureza e querer martelar sua rebelde sonoridade no ambiente de selva não é fazer protesto e sim ensurdecer os descontentes. Os "rebeldes sem causa" só existem quando lhes é vedado o acesso à informação, e não nos consta que este seja o caso dos difusores/consumidores de música eletrônica. Rebeldes com uma causa justa deveriam estar exigindo ética das autoridades de todas as instâncias (municipal, estadual e federal) para impedir o vandalismo da poluição sonora no seio da Amazônia e de outros sertões Brasil afora.
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Os índios costumam falar baixinho. Até mesmo a seus filhos repreendem quando necessário falando assim, serenamente, sem gritos, sem violência. Não aprendem nem compreendem quando submetidos a rajadas sonoras que em seus espíritos transmitem imagens de nojo, agressão e violência. O mesmo cabe inclusive para certo tipo de pregação evangélica usual para muitos pastores que fazem exortações parecendo querer empurrar garganta abaixo o remédio para os "enfermos espirituais" de sua comunidade. "Luz para todos", promete o governo federal, sem estimar que com anterioridade deveria propiciar aos indígenas e sertanejos educação e noções de ética para o convívio coletivo de imagens e sons produzidos em massa nos grandes centros urbanos, a fim de preservar não apenas ambientes saudáveis mas também culturas tradicionais (em muitos casos também "em vias de extinção"). Nada contra a tecnologia, nada contra o livre-arbítrio, mas tudo a favor do bem-estar e da diversidade biológica e cultural, é o motivo de se protestar aqui contra a escalada da poluição sonora nos quatro cantos do país. Tragam amor, não guerra!...
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(este artigo vai dedicado à minha amiga Vera Olinda, que em 1992 na Aldeia Cana Recreio, do Alto Purus, quis me ensinar a cantar com mais doçura os cânticos que os índios me pediam...)
Eduardo Bayer Neto
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Leiam a respeito: "POLUIÇÃO SONORA COMO CRIME AMBIENTAL", por Anaxágora Alves Machado.

Um comentário:

Testes disse...

Entendo perfeitamente o seu posicionamento quando fala de poluição sonora nas áreas de preservação ambiental. Mas veja que o seu posicionamento perante as raves não é aplicável a realidade.

Infelizmente a maior parte do que vemos no mundo das raves é uma fruto degradado do que deveria ser positivo. É corrompido pelo desejo de se drogar sem julgamento e pelo desejo dos produtores de fazer dinheiro. Mas isso não se aplica a todos.

Sim, existem raves ecológicas, não somente porque fazem acampamentos, mas porque dedicam seu lucro a projetos ambientais e sociais, se esforçam para provocar o menor dano possível à Natureza se utilizando de energia sustentável, reciclagem e outros métodos de conservação da Natureza.

Também valorizamos nossas florestas, rios, animais e plantas, mas realmente não é fácil ensinar certos "valores" a muitos que buscam nas raves um culto dionisíaco em detrimento daquilo que realmente defendemos.

Por favor, não julgue todos os admiradores de música eletrônica como alienados por causa do comportamento de alguns que infelizmente tem se tornado a maioria.

Existem sim muitos "ravers" como eu que se esforçam para melhorar as raves, para fazê-las se corresponderem aos nossos ideais de paz, amor, união e respeito. Aprendendo com os erros e lutando de alguma forma a melhorar tanto as festas quanto as nossas relações sociais e naturais.

Tem gente que vai ao rio do araguai e fica colocando o som alto? O problema realmente é da música eletrônica? Lógico que não, ao lado da minha casa fazem isso com o funk, em outros locais com música evangélica ou forró.

Não queremos substituir o som orgânico dos luais, queremos criar outras possibilidades. Sim, ouvimos a música eletrônica no meio da Natureza e isso rpovoa emoções aos nossos ouvidos e corpo, dizer que somos alienados ou corrompidos por este som "estúpido" é uma mera reflexão preconceituosa acerca do assunto.

Um som do dj Goa Gil é completamente diferente do Skazi. Em qualquer estilo musical existem os artistas que correspondem verdadeiramente a cultura desta música e outros que a usam para fins duvidosos.