22 de julho de 2009

A Retórica Colonial e as falsas democracias

foto: Aidesep

"Como coroar com homenagens de herói um homem que está a serviço de reis e de interesses europeus contra populações indefesas? Os índios, "pasto de corvos", já não são silvícolas gentios, são trabalhadores concentrados em núcleos urbanizados, fiéis ao rei da Espanha e ao papa de Roma. Como podem as cortes fazer acordo sem ao menos ouvir os súditos? Como ter por herói o executor de lei arbitrária, que determina disparar com modernas armas de fogo contra gente pacífica? A guerra total, disseminada pelos conquistadores, não distinguia soldados de mulheres, crianças e velhos. Os corvos se fartavam de corpos de ambos os sexos e de todas as idades. Humanidade já não orna o herói fardado e mecanizado dos conquistadores. Note-se o singular, Herói (com maiúscula) contra o coletivo "povo rude". (...) O Herói de agora é a antítese dos heróis antigos, amparo dos desprotegidos, escudo da pátria e dos valores consagrados. O herói iluminista já não defende, subjuga. No trato com o "povo rude" não argumenta, não recorre aos artifícios da persuasão. A força bruta e muda segrega a palavra. Nova é a semântica de herói, dócil instrumento dos propósitos da monarquia absoluta, juiz do conveniente e do desprezível, do bem e do mal. Matanças praticadas no interesse do estado isentam-se da incriminação de más. Bom é o que favorece quem está no poder. O maquiavelismo triunfou. A retórica confirma o poder dos poderosos. Instrumento outrora da democracia, a retórica circula como arte de bajular o tirano. Povo rude? Mesmo que se esqueça a reserva contra o adjetivo rude para designar a outra cultura, como admiti-lo para qualificar homens que cantam, tocam instrumentos, pintam, esculpem, cultivam, criam, rezam e vivem em cidades? É a cor da pele que os torna rudes? "

Faço essa citação de um ensaio analítico de "Uraguai" - poema épico do brasileiro Basílio da Gama (1740-1795) - , escrito por Donaldo Schüler em 1998, para exemplificar o que jaz e subjaz às falastronias pseudo-democráticas de muitos países nascidos da expoliação colonialista na América Latina, como o Peru: a arte retórica herdada das faculdades de Direito (a primeira das quais, a Universidad de San Marcos, em Lima, criada em 1551, mereceu estudo de Darcy Ribeiro, que em outras obras retrata a mesma estrutura de contrastes) é também uma arte de mentir. Para os países que surgiram à sombra dessa instituição de cinismo e hipocrisia do falso cristianismo, cujas línguas-mães foram obliteradas pela instituição do idioma castelhano como idioma imperial, todo o pro-forma parece sensato pois obediente à rigidez da boa aparência gramatical, enquanto inculto pode ser considerado todo aquele que não conhece as regras de conduta da civilização a eles imposta.
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Mas a democracia é um anseio, uma esperança, mais do que uma realidade concreta, e ao aceitar-se esse sentido último se garante a resistência da diversidade cultural em todos os cantos do planeta: é assim que a democratização da comunicação representada pelos novos instrumentos tecnológicos de interculturalidade permite-nos avançar na quebra dos velhos paradigmas e outras formas de alienação e atraso. A notícia que nos chega agora é que, no Peru, um novo Gabinete reafirmou a imposição do neoliberalismo. Continua a perseguição a indígenas amazônicos: ordenam encerar a líder gravemente ferido e se inicia a busca de desaparecidos no Massacre de 5 de junho em Bagua.

A composição do novo Gabinete Ministerial do governo de Alan García Pérez não responde às exigências de câmbio das organizações populares. Ao contrário: seus integrantes, encabeçados pelo novo presidente do Conselho de Ministros, Javier Velásquez Quesquén, disseram claramente que sua primeira tarefa é “impor a ordem”, com o qual se espera um recrudescimento da repressão.

Desde o início de seu Governo, Alan García se alinhou fundamentalistamente com o neoliberalismo global em crise. Por isso negocia e assina tratados de livre comércio e emite pacotes legislativos para implementá-los e para criminalizar o protesto social. Cego e surdo às demandas dos povos pelo exercício de seus direitos, atribui os protestos a supostos complôs internacionais, falando inclusive de uma nova “Guerra Fria”.

As grandes jornada nacional de luta de 11 de junho, o Paro Nacional de 7, 8 e 9 de julho, e a solidariedade internacional exigiram que a saída do Gabinete Yehude Simon significasse um câmbio real da política econômica e social. Mas aconteceu tudo ao contrário, com uma composição ministerial aprista e de extrema direita, em uma aberta atitude provocadora do regime de García.

Ao fechamento e perseguição de emissoras locais e seus diretores, se une a intensificação da perseguição policial e judicial aos líderes indígenas amazônicos. Outros dois dirigentes nacionais da Asociación Interétnica de Desarrollo de la Selva Peruana (AIDESEP) solicitaram asilo político a Nicarágua, cujo governo já o outorgou ao presidente dessa organização, Alberto Pizango.

Igualmente grave é o fato de que já estão surgindo evidências de desaparecimentos no Massacre de Bagua da sexta-feira 5 de junho, tantas vezes negada pelo governo, amparado em um informe da Defensoria do Povo que, como esta instituição reconheceu, não pode recolher testemunhos e provas mais que na quinta parte das comunidades nativas e o fez nos poucos dias seguintes ao Massacre. Pior ainda considerando que a polícia impediu a entrada na zona durante cinco dias, nos quais haveria incinerado os restos de indígenas assassinados, do qual já aparecem também evidências.

Frente a estes fatos, a Coordenadoria Andina de Organizações Indígenas, CAOI, convoca à comunidade internacional a manter-se alerta e expressar seu rechaço à política neoliberal do governo de Alan García e a exigir investigação de seus crimes contra os direitos humanos e os direitos coletivos dos povos indígenas.
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Fonte: Adaptado do comunicado publicado pela CAOI em Enlace Indígena . Imagem: Village Earth

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