30 de julho de 2009

Os Txuntxos e o Estrela da Neve


Em seu estudo sobre o grande festival andino da Estrela da Neve, o Qoyllur Riti, publicado em 1982), Robert Randall especifica as imagens transmitidas por aquilo que se situa no alto e por aquilo que se situa abaixo, a leste de Cusco, a antiga capital do império Inca, onde as montanhas se encontram com a floresta. Ele descreve esse festival anual como sendo “provavelmente o espetáculo mais comovente e deslumbrante dos Andes”, durante o qual, nos anos que se situam em torno de 1980, cerca de 10 mil peregrinos sobem as montanhas, por ocasião do Corpus Christi, a fim de chegar a um vale sagrado situado nos picos. (...)
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Emergindo das selvas, as montanhas Colquepunku, do pico nevado, são maciços alvos e resplandecentes que pairam na floresta tropical enevoada. O interior dessa cadeia de montanhas abriga um vale isolado que, durante a maior parte do ano, acolhe apenas rebanhos de lhama e alpaca que pastam a 4500 metros de altitude, abaixo dessas reluzentes geleiras. No entanto, durante a semana que precede o Corpus Christi, mais de 10 mil pessoas, em sua maior parte índios e campesinos, fazem uma peregrinação ao vale de Sinakara. A música ecoa para além dos muros que encerram o vale, e dançarinos, em trajes emplumados, andam empertigados em meio à fumaça de pequeninas fogueiras, onde a comida está sendo preparada.
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(...) Apoiando-se em estudos recentes no campo da etnoastronomia, sobretudo os de T. Zudeima, Randall sugere que essa peregrinação anual não só marca o desaparecimento e reaparecimento das Plêiades no céu (um lapso de cerca de 37 noites), como também aquilo que ele denomina a transição da desordem para a ordem (do caos para o cosmos). É uma interpretação que se harmoniza com a de Zudeima, segundo a qual, para os Incas, esse período de 37 noites correspondia, de acordo com o calendário, àquilo que ele denomina o caos. Randall é cuidadoso ao enfatizar que a desordem dos peregrinos dançarinos termina com a dança final, ao nascer do sol. Segundo o autor, ela é perfeitamente ordenada e sincronizada. (...) É com equanimidade que esse festival é retratado como uma grande comemoração do processo civilizatório, alimentado, quando não criado, pela dança ensandecida dos txuntxos (chunchos), homens selvagens da floresta. Isto é encarado como um rito de transição estelar, quando não cósmica, de renovação social e de cura individual. Tudo isso é resultado da transição da desordem para a ordem.
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Quanto aos chunchos, Randall cita relatos dos campesinos das encostas das montanhas, segundo os quais aqueles eram seus ancestrais. Um desses relatos narra como os antigos, os naupa machu, ocupavam as montanhas em uma época anterior a essa, quando não havia outro sol e outra luz que não a da lua. Esses antepassados eram seres poderosos, capazes de achatar montanhas e mover grandes rochas. O principal espírito dos picos locais perguntou a eles se gostariam de ter parte do poder daquelas montanhas mágicas, mas, orgulhosos de sua força, os naupa machu desprezaram essa oferta, levando o chefe do pico a criar o sol que, erguendo-se acima da selva, transformou os ancestrais em pedra, com exceção daqueles poucos que fugiram para o escuro caos das florestas abaixo. Por meio dessa criação dos chunchos na escuridão que reinava abaixo, a ordem Inca foi criada acima, nas montanhas iluminadas pelo sol.
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(...) No que diz respeito ao tempo mítico, o mesmo ocorre em relação aos chunchos do Leste de Cusco: inferiores, selvagens, hostis, ainda assim são curadores e concessores de fertilidade. Em relação àquilo que parece ser uma contradição significativa à sua tese de que a ordenação é curativa, Randall cita testemunhos para afirmar que os habitantes das encostas daquelas montanhas enviavam seus xamãs, responsáveis pela cura dos doentes e pelos cuidados com a fertilidade dos campos, lá para a selva, onde aprendiam durante um ano, a fim de trazerem essa fertilidade lá para cima, na sierra. A própria selvageria da floresta (e, presumivelmente, de seus habitantes) é curadora e fertilizadora.
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(...) Randall assinala que as grandes taças Incas, de boca larga e de madeira pintada, geralmente representam todos os inimigos do Inca como selvagens da floresta (chunchos) (...). Ele observa que nos dias de hoje, durante o Festival da Estrela da Neve, a figura selvagem e emplumada do txuntxo assume a função de representar o indianismo per se; não se trata apenas de seres míticos ao leste dos Andes, mas de todos os “índios”. Por outro lado, os integrantes do grupo Colla, considerados comerciantes ricos e procedentes dos altiplanos, hoje são representados não por índios, mas por mestiços (gente de ancestralidade índia e branca, mas, nesse contexto, considerada “branca”). No Festival da Estrela da Neve os txuntxos derrotam os Colla, em combate simulado.
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A selvageria, a fertilidade, a cura mágica, suprimidas, reprimidas, são consideradas embaixo, na sombria selva emaranhada, esse subterrâneo agreste da história que pode irromper através de rebeliões, de tom messiânico, que curam e fertilizam não simplesmente esta ou aquela pessoa, não só este ou aquele campo, mas toda uma sociedade erroneamente revestida de uma outra época. É a interpretação a que se pode chegar dos repetidos ataques aos espanhóis durante a época colonial, por parte dos moradores da floresta, que culminaram no romance, no vigor e no esplendor de um mito objetificado no movimento liderado por Juan Santos Atahuallpa em 1741. Randall detecta manifestações modernas dessa constelação de mito e ruptura social na geografia político-moral da rebelião associada a Hugo Blanco, nos anos 60. Em ambas as instâncias, os líderes das montanhas ou “profetas” desciam de suas terras para as terras baixas, cobertas por florestas, situadas ao leste, com as serpentes e os demônios, não para encontrar meramente uma base social de apoio, mas para reafirmar uma base mítico-histórica. As forças rudes da selvageria e da história foram recrutadas, numa tentativa de destruir a antiga ordem, porém fracassaram. Entretanto, a mitologia continua vivendo. O próprio Randall convoca a nostalgia do fracasso político para inspirar uma pungente identificação com os demônios da história e da renovação social, enquanto consolidam com segurança o triunfo da vontade de proceder a uma ordenação. No entanto, sem os chunchos e a selva – lugar de escuridão, caos e desordem, onde, escondidas do sol, as plantas crescem desenfreadamente, entrelaçando-se com desalinho e confusão – não haveria uma base para a própria ordem. Com efeito, é a partir dessa dependência que a magia e a fertilidade florescem
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Nota do Blog: Texto extraído da obra ímpar de Michael Taussig, “Xamanismo, Colonialismo e o Homem Selvagem – Um Estudo sobre o Terror e a Cura”, Trad: Carlos Eugênio Marcondes de Moura, Editora Paz e Terra, São Paulo – 1993, páginas 223 a 238. Neste livro o antropólogo norte-americano Taussig busca determinar a relação do mito e da magia com a violência colonial por um lado, e, por outro, com a cura e o modo como ela pode mobilizar o terror a fim de subverter essa violência. A obra de Randall citada por Taussig nesse trecho que adaptamos é: “Qoyllur Rit´i, an Inca fiesta of the pleiades: reflections on time and space in the andean world”, in Bulletin d´Institut Français des Études Andines, 1982.
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A festa de Qoyllur Rit´i na atualidade cresceu muito dada a nova facilidade de acesso com o asfaltamento da estrada de Ocongate ligada à chamada Carretera Transoceánica que faz ligação com o Acre, mas continua guardando seu aspecto mais tradicional. Entretanto, com o aquecimento global, a subida dos peregrinos ao nevado de Qoyllur Rit´i na última noite de festival, de onde traziam grandes blocos de gelo nas costas caminhando até o local da procissão de Corpus Christi, em Cusco, tem sido proibida dado o risco de deslizamentos fatais, já que ano a ano os nevados vêm diminuindo de tamanho e a neve se torna menos sólida mesmo ali nas alturas. Para os povos da montanha, como os xamãs Q´ero, o degelo dos nevados cumpre uma antiga profecia que alertava que, quando aquelas neves se extinguissem, era porque havia chegado o fim do mundo.

Fonte da Imagem: Thomohawk

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