O autor na berlinda
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Ana Lía Rios, uma autora argentina que se dedica ao tema dos Símbolos Sabianos, considera que “toda imagem simbólica fala a linguagem do inconsciente e se relaciona diretamente com ele e, por isso, constitui um instrumento inestimável de ligação e de modificação de nossas estruturas profundas”. Em seu livro “Oráculo Astrológico”, ela cita Carl-Gustav Jung: “O que para a consciência é uma laceração insuportável, para o inconsciente – pelo recurso simbólico – é conciliação e composição”. Pois bem, o quarto grau de Virgem, onde Sol e Vênus se encontravam juntos naquele dia histórico de Agosto de 1963, dizia exatamente: “Black and white children play together happily” (Crianças negras e brancas brincando juntos alegremente). A respeito desse grau, Ana Lía Rios assim o interpreta na obra citada:
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“Nós adultos tendemos a separar e a categorizar o que é diferente de nós. Nosso primeiro impulso nos impele a rejeitar e a adotar uma atitude defensiva por medo do desconhecido. As crianças não têm essas atitudes, uma vez que, para elas, o diferente não significa melhor nem pior, mas simplesmente algo com outras características e que não tem nada a ver com hierarquia. Por outro lado, tendemos a ocultar o negro (o que é estranho e incomum no nosso comportamento ) em nosso íntimo, acreditando que seja potencialmente perigoso e destrutivo; não sabemos brincar com ele nem lhe damos espaço para crescer e vicejar, como os outros aspectos de nossa personalidade que nos são conhecidos”.
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Elementos aparentemente diferentes e separados, como os grupos étnicos, são apenas uma ilusão de percepção social. Essas percepções sociais padronizadas (como “nós” vemos os “outros”) precisam ser postas de lado quando é tempo de irmanar-se: é só com a integração e a aceitação de todas as pessoas (e o contentamento disso decorrente) que a situação crítica deste planeta poderá ser resolvida e transformar-se adiante – uma irmandade universal. Se não formos aptos a nos ajustarmos psicologicamente a situações que requerem respostas criativas, esbarraremos no passado dos preconceitos raciais e todas as situações de dominação e subjugação do homem pelo homem, que fere a própria dignidade do ser humano. È esse ponto nevrálgico da consciência coletiva que o símbolo visualizado por Miss Wheeler toca, e este o motivo de neste weblog de debate intercultural agora se mencionar o estudo de Marc Edmund Jones.
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E porque então este autor “Karipuna” se diz na berlinda ao tratar desse símbolo? Porque eu nasci naquela mesma tarde de 28 de Agosto de 1963, no Rio de Janeiro, e trago portanto essa coincidente conjunção comigo. A qual tenho de analisar como referência, uma vez que o ponto de partida para este weblog foi essa mesma consciência inter-étnica plasmada em meu ser. A pergunta que me faço é: neste mundo de acirradas disputas de sobrevivência, já existe espaço para o sonho de Martin Luther King, como a eleição de Obama à cabeça do Império norte-americano fez pensar, ou ainda é um ideal feérico (de outro mundo)?
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A organização Global Voices fez recentemente uma menção ao nosso blog da qual me orgulho por estar inserida em um artigo sobre a presença dos ameríndios brasileiros na rede mundial de computadores, e são muitos índios que têm se comunicado comigo me chamando “parente”, como fazem a respeito de indivíduos de outra etnia nativa. Lá entre os Xacriabá, em São João das Missões, Minas Gerais, quando estive ano passado levando um jovem pajé Hunikuin da Amazônia para conhecer o projeto de produção de medicamentos tradicionais da Aldeia Barreiro Preto, perguntaram-nos surpreendentemente: “de que tribo vocês são?”, não enxergando diferenças entre meu amigo Ixã e eu, que tenho apenas uma bisavó filha de Karipuna. Isso na certa porque os Xacriabá, como me explicara o amigo Ailton Krenak em uma festa de São João dois anos antes naquela mesma cidade onde foi eleito o primeiro prefeito indígena do Brasil (o professor Zé Nunes), são uma nova etnia que se auto-gerou a partir dos restos de muitas etnias ali reunidas nos sertões do Rio São Francisco, e são portanto acostumados a buscar ver muito mais os laços de união e menos os traços de diferenças. Para o amigo Hunikuin, fruto de uma cultura eminentemente endogâmica, notei que também lhe parecia compreensível que Xacriabás fossem todos eles que ali conhecemos, mesmo que pela cor da pele uns fossem mais “negros”, outros mais “brancos” e outros mais “amarelos”. A unidade cultural, portanto, figurava naturalmente aos olhos do amigo Hunikuin como sendo o elemento base da etnia, e não as características raciais da classificação enciclopedista ocidental da qual nosso velho mundo parece ser ainda intelectualmente dependente.
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Este mundo de hoje: acabo de ver na televisão boliviana um trecho do documentário de Cesar Brie “Humillados y ofendidos”, retratando recente episódio em Sucre, quando os grupos opositores à proposta de constituição plurinacional de Evo Morales receberam grupos de indígenas que vinham do campo para manifestar-se politicamente de uma maneira que em tudo faz recordar as humilhações promovidas pelos conquistadores espanhóis no tempo colonial: os indígenas, que o “senso comum” da classe média mestiça faz figurar como ignorantes (e portanto atrevidos), foram açoitados, apedrejados, espancados, despidos e postos de joelhos no chão da praça para serem obrigados a beijar a bandeira pátria enquanto os “cívicos” cantavam seu hino e gritavam frases de ódio contra Morales. Por favor, William Waack e editores de telejornalismo da Globo, não subestimem o que acontece na Bolívia desfazendo do papel da liderança de Morales por o considerarem um mero seguidor do “ditador venezuelano”, como vocês costumam fazer com muita ironia. Há uma história muito mais profunda sendo edificada naqueles páramos andinos, há a história de um país de população majoritariamente indígena que foi criado no século 19 excluindo totalmente de direitos os ameríndios a fim de prolongar a situação colonialista de exploração e espoliação, há a história de uma república latino-americana como outras tantas que esteve por muito tempo servindo de fachada para a maldade da corrupção e dos desmandos dos interesses capitalistas, e se Morales conseguiu o que conseguiu ao eleger-se e ao colocar em vigência uma nova constituição para seu país, isso se deve à democracia e não a nenhuma ditadura. Se há falhas, se há tropeços, isso não desmerece o valor dessa proposta de democracia que surgiu das bases populares da nação boliviana, e se o Brasil abandonasse seu apoio a essa democracia no coração geopolítico do continente, talvez estivesse abandonando sua própria esperança de ordem e progresso, pois não importa o lema positivista por sua origem ideológica mas sim a trajetória evolutiva dessa proposta idealista bordada na bandeira brasileira em letras verdes como a simbólica esperança.
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Eu não sou ninguém. Não possuo identidade étnica. Sofro também preconceitos por parte de brancos, índios, negros e amarelo, pois não me encaixo nesses “nichos” raciais. Até de meu pai, - traumatizado na infância por ter sido enviado pela mãe italiana para ser alfabetizado em um orfanato de guerra de refugiados da Ucrânia no Paraná dos anos 40 - , que tinha na prateleira da sua casa um exemplar em alemão de “Mein Kampf” e se dizia nazista porque o pai dele era filho de alemães chegados ao Brasil em 1862 em uma das primeiras levas de imigrantes, talvez porque isso compensasse algum escuro sentimento de amargura que trazia dentro de si. Ora, nazistas matavam até hemofílicos a pretexto de limpeza genética, e eu sou hemofílico. Nos anos 80, quando surgiu a Aids e os hemofílicos se tornaram grupo de risco, ao rejeitar-me por deficiente ele me expulsou do seu “Olimpo” como a mãe de Hefestos a seu bebê feio, mas fez de mim também um pequeno Vulcano criativo que se tornou artífice ao saber manipular o fogo essencial guardado no seio da terra. Mas isto é um outro símbolo, e uma outra história. O que digo lamentar nesses preconceitos enfrentados é a visão errônea que surge dos condicionamentos sociais dos grupos humanos, é o horizonte estreito, a visão curta, a falta de ética que acontece quando há omissão a respeito de outrem, quando os indivíduos se permitem omitir a respeito do direito (e necessidades) de outros a título de terem que cuidar apenas de si próprios.
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Já não é assim. Já não tem como ser assim. Indo por esse caminho, o ser humano não chegará a lugar algum. Se ficar restringido a conceitos e “memes” culturais solidificados, estará se equivocando com relação à sua própria natureza, pois como diz a imagem poética, “tudo que é sólido flutua no ar”. Ninguém constrói sua felicidade em cima da infelicidade dos outros, não é isto possível. O que agora vem à tona, seja nos Estados Unidos, seja na Bolívia, seja na Indonésia, é a emergência da salvação deste planeta que, continuamente vilipendiado pela espécie humana dita “superior” (ou digamos, da espécie superior dita “humana”, pois nisso há senso e contra-senso) só pode ser salvo pelos esforços dessa mesma humanidade. Que se não for coerentemente fraterna tanto entre si quanto em relação às demais espécies vivas, não provará merecimento de ser filha deste planeta e desse sistema solar, portanto não merecerá mais a vida. Nenhum fatalismo nesta encruzilhada da história: apenas a necessidade definitiva de transcender as diferenças e acatar a multiplicidade como fundamento natural da vida.
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Ainda falta explicar o nome deste blogue: Criança do Futuro. Huberto Rohden ensinava que em português devíamos escrever “crear” porque assim se permitia aprofundar melhor os sentidos da palavra diferenciando-a do simples sinônimo de “fazer”. Quando chamei este blog “Criança do Futuro”, pensava em castelhano “Creanza del Futuro”, ou seja, o Engendrar, a Criação do Futuro. Esta é a proposta inerente a todos esses posts que venho publicando aqui, reciclando informações e procurando de alguma forma democratizá-las ao acesso daqueles buscadores sedentos de interculturalidade. Fico feliz desse “Karipunan Waköpünska” vir encontrando muitos leitores mesmo que em breves espaços de curiosidade. Agradeço aqui a Martin Luther King por haver feito luzir seu ideal de ética humanitária sobre a nação norte-americana e sobre tão vasto horizonte, e quero sim ser ainda uma mera criança brincando entre outras, sem noção do peso da condição desumana dos clichês e rótulos sociais. Esqueçam Babel: quando todos falarmos a linguagem da paz, conversarão todos os corações.
o mundo conhecerá a Paz.”
(Jimi Hendrix)