3 de agosto de 2009

Consciência plurinacional

Ontem, 2 de Agosto de 2009, a Bolívia comemorou seu Dia do Índio com uma grande festa em Camiri, quando foi entregue o texto final da Autonomia Indígena, que no prazo de três semanas deve ser referendada pelas municipalidades que desejem inserir-se na proposta.

De acordo com o texto da nova Constituição boliviana, que criou o Estado Plurinacional de Bolivia, são criadas várias autonomias regionais e étnicas, sem uma clara hierarquia e uma sendo responsável por fiscalizar a outra. Além do reconhecimento das línguas existentes antes da invasão espanhola – muitas delas usadas até hoje em concorrência com o espanhol -, passa a ser válido o poder dos indígenas de administrarem os próprios territórios, o direito a tratamentos de saúde gratuitos que respeitem os conhecimentos das medicinas alternativas e aos lucros gerados pelos recursos não-renováveis que saiam das propriedades comunitárias. Quem desejar também poderá expressar na carteira de identidade a qual povo pertence – além do boliviano.
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Sendo a mais específica das autonomias previstas na nova Constituição, a indígena-originária “consiste no autogoverno como exercício da livre determinação das nações e dos povos indígenas originários camponeses”. Cada povo deverá definir se quer ou não a autonomia, que prevê que essas comunidades devam gerir seus patrimônios históricos e culturais e os recursos do solo – como hidrocarbonetos, por exemplo. Além disso, quem decidir pela autonomia deverá definir a própria forma de organização de acordo com os costumes tradicionais, inclusive no que diz respeito à Justiça, com a formação de tribunais próprios compostos por moradores locais.
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O governo boliviano veio realizando estudos de forma a determinar quantos são os povos originários ainda existentes no país. Segundo o Censo de População e Moradia de 2001, existiam 160 municípios na Bolívia onde mais de 50% de seus habitantes têm um idioma indígena como língua materna. Todos estes poderão aceder a este referendo sempre e quando seus conselhos municipais façam o trâmite a tempo. Ademais, existem 149 municípios que têm uma Terra Comunitária de Origem dentro de sua jurisdição. A cifra se eleva a 187 municípios quando se toma como referência a auto-identificação étnica.
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Vários territórios indígenas mostraram em Camiri seus avanços para converterem-se em municípios indígenas. O mais adiantado de todos é o Território Indígena de Lomerío, que já tem uma resolução de suas organizações, declarando-se autônomo, e redigiu sua proposta de estatuto. Também apresentaram suas resoluções os municípios de Jesús de Machaca (sede dos ponchos rojos), os quechuas cochabambinos de Rajaipampa, os potosinos de Chayanta (berço de Juan Huallparrimachi), Chaqui, Tarabuco, Mojocoya (em Chuquisaca) e J’acha Carangas em Oruro.
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Em meio a todas as nações indígenas presentes à cerimônia em Camiri, destacaram-se os chamados afro-bolivianos, o que indica que para a nova Bolívia os direitos dos povos indígenas aprovados há dois anos pela ONU são realmente extensivos a todas as etnias "de raiz", como esse grupo que vive no que restou de uma floresta na região de Los Yungas, Andes, em um simbólico reino. O som dos tambores pode ser ouvido na cerimônia, bem como a tradicional saya. A comunidade, que está localizada a três horas de La Paz, foi recentemente tema de reportagem da britânica BBC:
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Julio Bonifaz Pinedo disse à publicação que era o primeiro rei afro-boliviano do grupo. Orgulhoso ao lado da esposa Angélica, afro-boliviana com o tradicional traje andino (chapéu, saia em várias camadas e manta), Pinedo admitiu ter uma responsabilidade imensa porque precisa trabalhar muito pelo povo, e não tem meios para isso.

O rei Julio é, segundo a BBC, um dos muitos afro-bolivianos atingidos pela pobreza, e há poucos anos descobriu que era descendente direto de Bonifaz, rei tribal da África Central. A reportagem explica que quase dois anos atrás ele foi coroado numa cerimônia como o primeiro rei afro-boliviano, iniciativa cujo objetivo era fortalecer a causa do grupo e ganhar reconhecimento na nova Constituição do país.

O Bonifaz original foi trazido para a Bolívia como um escravo no século 16 para trabalhar nas minas de prata de Potosí, lembra a BBC. Como a maioria dos escravos que sobreviveram as minas, Bonifaz foi vendido posteriormente aos proprietários de terras nas plantações de Los Yungas, onde o clima é mais parecido com o da África Subsaariana.

Negligência

A reportagem diz que hoje, mais de 35 mil afro-bolivianos continuam a se sentir negligenciados em um país que recentemente aprovou a primeira Constituição “multi-étnica e multicultural”.

– Ainda há muita pobreza entre os afro-bolivianos, estamos entre os mais pobres do país – disse o rei Julio à BBC, enquanto mostrava sua humilde loja de conveniências, onde vende bananas e pão, entre outros mantimentos.

Tradicionalmente agricultores, os afro-bolivianos cultivam frutas cítricas, café e banana. Hoje, entretanto, muitos plantam coca, diz lembrar que Los Yungas é um dos dois lugares na Bolívia onde a coca – matéria prima da cocaína – pode ser cultivada legalmente, desde que em quantidades limitadas. Os bolivianos a têm cultivado por séculos, desde o império Inca.

Em entrevista à rede britânica, Irene Morales, afro-boliviana que cultiva coca em um pequeno e íngreme pedaço de terra, disse que a pobreza atual é semelhante à escravidão.

Podemos até não ser mais escravos, mas nós negros somos muito pobres, o que é semelhante à escravidão – disse. – Se não cuidarmos bem de nossas pequenas plantações, não temos nada, nada mesmo; e sempre fomos odiados e discriminados.

Os “cocaleros” afro-bolivianos adotaram, segundo a reportagem, essa tradição indígena e trabalham duro na plantação e colheita de coca. Mas agora, pela primeira vez desde que chegaram à Bolívia como escravos, acreditam que as atitudes em relação a eles estão mudando muito lentamente, diz a matéria.

A reportagem da BBC conversou também com o líder afro-boliviano Jorge Medina, locutor do programa African Roots (Raízes Africanas) na rádio Yungasna, na cidade de Chulumani. Medina disse à BBC que os negros não têm fronteiras. Para ele, os tambores conectam os negros de toda a América Latina e Caribe com a África, com as raízes no Senegal, Congo, Guiné e Angola.

Visitem o site Cultura Afro Boliviana. Leiam também: Escueta Relación de las Etnías Originarias , de Marcos Serrate Suárez.
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