4 de dezembro de 2009

Spruce e o Kabi no Culto Jurupari

Richard Spruce, por Sérgio Figueiredo

Foi o botânico inglês Richard Spruce quem, no século 19, primeiro identificou e nomeou para a ciência ocidental a planta do cipó utilizado pelas tribos ameríndias para a preparação das bebidas do iagé e da ayahuasca (as quais mais tarde se esclareceu diferirem apenas pela utilização da planta complementar à alquimia da poção, no caso do iagé as folhas de outro cipó, a chacroponga, e na ayahuasca as folhas de um arbusto, a chacrona). Deu-lhe o nome de Banisteria caapi, nome científico depois corrigido como Banisteriopsis caapi mas ao qual ainda caberia outra correção: “caapi” é o termo tupi-guarani para as gramíneas (de onde a palavra brasileira “capim”), e o termo utilizado em verdade pelos índios do Rio Negro para aquele cipó é "kabi", conforme esclareceu Adolpho Ducke há muitas décadas atrás mas como a etnobotânica ameríndia não possui ainda o devido respeito por parte dos cientistas das nações desenvolvidas não houve por parte deles nenhum interesse em registrar essa informação.
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A história de como se deu este encontro nos é relatada por Wade Davis em seu livro “One River – Explorations and Discoveries in the Amazon Rain Forest”, onde narra a saga de seu mestre, o grande Richard Evans Schultes. A traduzo aqui a partir da versão espanhola de Nicolás Suescún publicada em 2004 pelo Fondo de Cultura Económica em Bogotá, esperando que seja compreendido este copyleft em benefício da própria ciência e dos povos ameríndios que foram fonte de informação dos referidos cientistas:

“Em 15 de janeiro de 1852, ao chegar a São Gabriel, Richard Spruce estava deprimido e ansioso. Várias semanas de navegação no rio haviam culminado em catorze dias de redobrada luta por ultrapassar temíveis correntezas, seu pessoal seguro por cordas e sua lancha rodando às vezes como madeira levada pela torrente. A tensão era quase insuportável. ‘Me levantei esta manhã com uma sensação de cansaço e fastio dificilmente concebível’, confessou em seu diário. ‘A ideia de passar um dia a mais como os dois últimos era o mais deprimente’. Uma preocupação a mais o martelava: a recente notícia de que seu amigo Alfred Russell Wallace estava muito doente e com febres muito altas em São Joaquim, um povoado no rio Uaupés, um pouco mais acima de sua confluência com o rio Negro.
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Os dois naturalistas haviam se visto pela última vez em Manaus três meses antes. Wallace acabava de chegar de uma viagem de um ano pelo rio Negro, em uma jornada que o levou por terra, mais além da cabeceira, até o Orinoco. Ali seus índios o abandonaram e teve que abrir-se caminho por mil e novecentos quilômetros para terminar em Manaus, onde se encontrou com Spruce em 15 de setembro de 1851. Wallace se propunha ficar ali apenas o suficiente para preparar outra expedição, desta vez ao rio Uaupés. Spruce, que já estava a quase um ano em Manaus, também estava ansioso de empreender caminho. Falaram de viajar juntos, mas lhes foi impossível encontrar uma embarcação em que coubessem suas equipes, além de seus equipamentos e objetos pessoais. De má vontade se separaram a princípios de outubro. Wallace partiu de imediato a navegar pelo rio e Spruce ficou para segui-lo em 14 de novembro de 1851.
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Já então o destino de Herbert, o irmão de Wallace, havia sido confirmado. Ao regressar a Manaus em setembro, Alfred soube que seu irmão havia caído gravemente doente de febre amarela em Belém quando estava a ponto de embarcar para voltar à Inglaterra. Mas a carta pela qual soube a triste notícia estava datada de três meses antes, de modo que Wallace saiu pelo rio Negro ignorando se seu irmão ainda se encontrava vivo. De fato, havia falecido em maio, e Spruce tinha a difícil tarefa de dar a notícia a alguém que estava ele mesmo à beira da morte. (...) Poucos em São Joaquim esperavam que Wallace sobrevivesse. Delirou durante dois meses, atormentado pela febre e o suor, desanimado por essas profundas depressões próprias dos casos sérios de malária. ‘Não podia falar com claridade’, diria depois em seu diário, ‘e não tinha forças nem para escrever nem para mover-me na rede... Permaneci neste estado até o começo de fevereiro, sem que abrandasse a febre palúdica, apesar de cada vez menos forte; e apesar de que aumentou meu apetite e comi em abundância, recuperei tão pouca força que somente colocar-me de pé me já era difícil e tinha que caminhar pelo quarto ajudando-me com dois bastões. A febre, por fim, me deixou, e como podia caminhar até a beira do rio, apoiando-me em um bastão, fui a São Gabriel visitar a Spruce, que lá estava e tivera a bondade de ir ver-me um pouco antes’.

Nem Wallace nem Spruce registram em seus diários mais detalhes sobre esses dois encontros. Incrivelmente, Wallace empreendeu outra expedição em menos de quinze dias, e voltou ao Uaupés, onde dentre outros achados, presenciou pela primeira vez a festa tucano de jurupari e a exibição das flautas e trombetas sagradas que as mulheres não podem tocar nem sequer com seus olhos, sob pena de morte. Admirou o som dos instrumentos, mas disse que faziam uma música diabólica, convertendo-se assim no primeiro europeu em compreender mal esse extraordinário rito de iniciação e recordação.
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Abatido e ansioso por regressar à casa, Wallace continuou entretanto subindo o Uaupés. Cruzou a fronteira com a Colômbia e a remo chegou até a foz do Kuduyarí, abaixo de Mitú. Ali, a uma semana de seu objetivo, a grande catarata de Jurupari [Yuruparí], voltou atrás. Depois de passar, disse, ‘mais de cinquenta cachoeiras, grandes e pequenas, algumas menos torrenciais, outras furiosas cataratas e algumas quedas quase perpendiculares’, Wallace estava farto. Desceu rio abaixo com sua coleção de objetos etnográficos, esqueletos, peles de centenas de criaturas e cinquenta e dois animais vivos, e chegou a São Gabriel em 28 de abril de 1852. Lá ficou só um dia antes de seguir rumo a Manaus. Em seu diário anotou simplesmente que havia ‘desfrutado de uma pequena conversa com meu amigo Spruce’. Nada mais disse desta sua última entrevista na América do Sul com o homem que lhe havia salvo a vida.
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Desenhos de Spruce em seu diário, onde se mostra o chefe tucano Kumáno

Seis meses depois de sua despedida, Spruce viajou ao Uaupés, o rio do desencanto de Wallace, e estabeleceu-se em Ipanoré, uma pequena aldeia situada ao pé de mais de seis quilômetros de cachoeiras. Mais além das cachoeiras havia uma maloca tucana chamada Urubu-coará, ‘o ninho dos urubus’. Foi lá onde, em novembro de 1852, presenciou a cerimônia do culto jurupari. ‘Chegamos à maloca ao entardecer’, lembrou, ‘justo no momento em que os pututos, ou trombetas sagradas, começaram a ressoar, profundas e lúgubres, no largo espaço, limpo de mato, que saía da floresta e rodeava toda a maloca. Com o primeiro som, as mulheres que estavam de fora corriam para dentro, antes de que saíssem os homens com os pututos; pois o fato de apenas ver uma das trombetas significava sua sentença de morte’. Ao contrário de Wallace, que apreciava a vida indígena mas pensava que os índios eram animais, Spruce não fez nenhum juízo. ‘Os antigos missionários portugueses chamavam a estas trombetas juraparis, ou demônios’, anotou; ‘apenas algum ciúme de sua parte’.
Tuyúka tocando o Jurupari, desenho de Sérgio Figueiredo

Diante da enorme maloca, feita de palmeira e pintada com figuras fruto de visões, se haviam reunido trezentos homens para a dança, adornados os tornozelos com pulseiras de contas vermelhas, os corpos pintados com tintas vermelha e azul-escuro, e com longos colares de contas de vidro e dentes de onça. A maior parte levava cocares feitos com plumas de garça e papagaio, e muitos traziam penas de gavião pegadas ao peito. Em seu diário, Spruce conta muito pouco sobre o ritual em si. Enquanto botânico, parece estar mais interessado nas plantas empregadas na cerimônia, sobretudo em uma planta estranha e amarga, de coloração ocre esverdeada, com a qual os tucanos preparavam uma bebida alucinógena que chamavam caabi. Durante toda a noite, nas pausas entre as danças, Spruce viu que um ancião tucano percorria cantando e cantarolando em volta da maloca, em cada mão uma vasilha com a bebida. Ao aproximar-se dos bailantes, o xamã se inclinava com o queixo sobre os joelhos, levantando primeiro uma vasilha e logo a outra, dependendo de qual jovem devia recebê-la. A poção tinha efeito em dois minutos. ‘O índio empalidece cadavérico’, descreve Spruce, e ‘tremem seus braços e suas pernas, e existe horror em seu semblante’.
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Spruce se mostrou fascinado pela estranha poção, e apesar de que não provara a droga, certamente havia ouvido falar de seus efeitos por boca de comerciantes e de índios do rio Negro. ‘Os brancos que tomaram caapi da forma apropriada’, escreveu, ‘coincidem em seus relatos sobre as sensações sob sua influência. A vista se altera e diante dos olhos passam rapidamente visões onde parece combinar-se tudo o que viram ou leram sobre o esplêndido e o magnífico. Um amigo brasileiro me contou que certa vez, quando havia consumido uma dose abundante de caapi, viu passar velozmente ante seus olhos, como em um panorama, todas as maravilhas lidas em As Mil e Uma Noites. Os índios dizem que vêem belos lagos, matas carregadas de fruta, aves de brilhantes plumagens... Logo a cena modifica-se; vêem animais selvagens a ponto de lançar-se sobre eles, não podem parar em pé e caem ao chão.’
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A festa em Urubucoará ia ser a última oportunidade de Spruce para provar a droga. Desafortunadamente, não o fez. ‘Tinha ido’, recordou anos depois, ‘com a plena intenção de provar o caapi eu mesmo, mas apenas acabava de servir-me um copo da nauseante bebida quando o diretor da festa – desejoso, ao que parece, de que eu provasse todas suas deliciosas bebidas de uma vez – veio até mim acompanhado por uma mulher que trazia uma grande bacia de caxiri (cerveja de mandioca), da qual tive que tomar um trago copioso, com algo de secreto asco por ter visto a maneira de prepará-la. Apenas acabada de se consumar tal façanha, me puseram na mão um grande charuto de cinquenta centímetros, grosso como um punho, do qual segundo a etiqueta devia dar algumas puxadas. Depois de tudo aquilo tive que beber um grande copo de vinho de palmeira, e se entenderá facilmente que o efeito de dose tão complexa foi uma forte vontade de vomitar, que só pude vencer recostando-me na rede depois de beber um copo de café.
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Sobra dizer que Spruce perdeu o resto da festa. Na manhã seguinte, voltando a si, se dedicou a pesquisar a identidade botânica do ‘caapi’, e para assombro seu descobriu que era uma espécie desconhecida, um cipó de uma família que se ignorava tivesse propriedades narcóticas ou mesmo medicinais. A chamou Banisteria caapi, nome posteriormente modificado para Banisteriopsis caapi, conhecida mais comumente em outras partes da Amazônia como iagé ou ayahuasca. Aquele seria o único espécime botânico completo da planta em quase um século. Ansioso por determinar os componentes químicos da droga, secou uma boa quantidade de ramos e enviou a coleção à Inglaterra em março de 1853. Por azar, o envio se atrasou, e quando Bentham abriu por fim as caixas em Kew, o mofo e a decomposição tinham posto a perder os espécimes. ‘Os feixes de caapi’, escreveria depois Spruce, ‘é de se presumir que perderam seu efeito por essa causa, e não sei se foi alguma vez analisado quimicamente, mas deve ter ficado alguma porção no Museu de Kew... Isto é tudo o que vi ou soube sobre o caapi ou aya-huasca. Lamento não poder dizer qual é o peculiar princípio narcótico que produz tão extraordinários efeitos. Algum viajor que talvez siga meus passos, com mais recursos ao seu dispor, é de se esperar, poderá trazer materiais adequados para uma análise completa de tão curiosa planta.’
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Cem anos depois aquele viajor seguiria, com efeito, os passos de Spruce. Mas Schultes não apenas encontrou de novo o iagé na floresta, mas também o tomou com os índios em mais de vinte ocasiões e, ademais, encontrou finalmente os feixes que Spruce havia recoletado em Urubucoará, no dia seguinte à festa de jurupari. Em 1969 fez analisar o material e descobriu que depois de um século os pedaços de cipó ainda conservavam sua potência. Já então, é claro, se conheciam bem os componentes químicos do mais familiar dos alucinógenos amazônicos. Schultes ordenara a análise por razões científicas, mas sobretudo em nome de Spruce”.
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O relato de Wade Davis do encontro de Spruce com o kabi nos faz pensar não apenas que Wallace pode ter tido uma experiência com a bebida que preferiu não relatar, mas que o nome “caapi” com que o identificou pode ter se originado não de parte dos índios Tucano e sim das primeiras informações a seu respeito que recolhera anteriormente entre os moradores brancos do rio Negro. Barbosa Rodrigues, emérito cientista brasileiro, que foi diretor do Jardim Botânico no Rio de Janeiro, e como tal recebeu de Ducke um exemplar vivo da espécie no começo do século 20, deixou claro em sua nomenclatura botânica indígena brasileira que “caapi” é o termo nheengatú para a família das gramíneas, e “ycypo” o termo para as lianas. A nomenclatura dada por Spruce para a espécie originou-se de um pequeno equívoco do cientista inglês, mas cabe ainda reformulá-la agora para Banisteriopsis kabi. Com a palavra, o povo Tucano.
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Fonte: DAVIS, Wade. “El Río – Exploraciones y Descubimientos em La Selva Amazónica”. 2004: Bogotá, El Áncora Editores. Editorial Pre-Textos. Col. Itinerarios, v1. 640 p. (págs. 466 a 471). Leiam na web: "Richard Spruce e o rio Negro", de Hiram Reis e Silva, que faz referência a um editorial meu na exinta revista Arca da União.
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Imagens: Além dos desenhos do diário de Spruce, os desenhos a bico de pena são de Sérgio Figueiredo, acervo disponível no site cultural do Governo do Amazonas. Não podia também de mencionar como curiosidade essa hq brasileira publicada em Mestres do Terror (Jaguareté e o Jurupari).

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