14 de outubro de 2009

Interlocutores privilegiados


"Mas como a experiência da catástrofe pode ser abordada frontalmente ? Esta é a questão do testemunho.

Trata-se não somente de “fazer saber” (como um publicitário), também não é apenas uma reconstituição dos fatos (como um historiador), mas de trazer para o espaço público a primeira pessoa. Não é um discurso meramente testemunhal (Eu vi), mas um discurso de engajamento ao evento. O retorno da memória na escrita em primeira pessoa é acompanhado de um retorno da culpabilidade, de um permanecer vivo (o que eu cedi para permanecer vivo, terei me tornado igual?), quais foram as escolhas para permanecer vivo ? É possível retornar a inocência diante de tal desumanização ? É possível negociar com a vergonha ? O sobrevivente é exposto a um duplo perigo: ele revive sua culpabilidade em relação as vítimas e se expõe ao julgamento dos destinatários da escrita. A imensa simpatia do público não impede que eles sejam vistos como juízes potenciais. E o escritor-testemunha se descobre absorvido pelo monstruoso que ele carrega.

O discurso da testemunha não é o mesmo de uma garrafa jogada ao mar, ele implica interlocutores muito precisos. Ele pede um interlocutor capaz de conceder o perdão, capaz de receber a narrativa em nome dos que foram mortos. O discurso da vergonha pressupõe um interlocutor privilegiado que pode reconhecer a situação humilhante em face da qual é possível restabelecer a dignidade. Mas será que tal interlocutor existe ? Talvez precise advir, precise ser inventado. O discurso psicanalítico, segundo Sarah Kofman, a deixou doente com sua neutralidade distante. O discurso filosófico é capaz de ouvir, mas nada pode fazer com o silêncio."

O leio em um texto de Claudia Perrone, "Literatura, Testemunho e Potência de Criação", que faz parte da revista LITERATURA E AUTORITARISMO, sobre a produção cultural em regimes autoritários. Mas será que tal interlocutor existe?

Aqui no Acre eu estava desde a Aliança dos Povos da Floresta de 1988 vigilante. Vi como foi conduzida a formação de lideranças indígenas daqui da Amazônia Ocidental, e o ambiente formador daquela época pós-ditadura, quando me lembro que para a gente do sul e sudeste do Brasil o resto do país era considerado um grande rincão de desonestidade, de ausência de direitos humanos e de livre-exploração, as comunicações eram todas muito mais rudimentares à comparação de hoje e existiam mesmo lugares onde a colônia ainda se sentia latejante, selva bruta e mata grossa a ser assegurada ao Brasil a qualquer custo segundo o ideário formatado na Escola Superior de Guerra desde os tempos em que o General Golbery era um jovem. Nova Califórnia...

Hoje é a Florestania. Grandes avanços da cidadania dos moradores das selvas acreanas (pois assim se pronuncia o termo gentílico daqui, e as palavras começam com a fala e não com a escrita - vejam o protesto dos "acrianos" com o novo acordo ortográfico). Mas a inclusão continua acontecendo gerando exclusão. Há contaminação do indigenismo com a política e por isso problemas indigenistas causados por políticas que terminam demonstrando equivocado cunho particular ou pessoal invés do sentido humanitário que tal serviço indigenista pressupõe. Há lideranças complicadas por choques culturais e excesso de individualismo, justamente pela construção de um modelo algo trôpego na fase inicial de empoderamento, quando foi dado aos lideranças o direito de opinar sobre quem seriam os moradores das aldeias que seriam instruídos como professores e agentes de saúde. Não houve aplicação de testes vocacionais ou coisa que o valha, nem com estes primeiros que os líderes (caciques e tuxauas) puderam nomear - pois obviamente o escolhido pelos caciques é que seria validado em assembléia da aldeia, já que neste caso não havia qualquer oposição, apenas alguns interlocutores privilegiados entre o mundo dos brancos e o mundo das aldeias, os que melhor sabiam falar português.

Isso deve ter acontecido antes em muitas outras histórias do Brasil. Mas aconteceu aqui no Acre recentemente. Um americano me disse em uma aldeia onde se encantou e quis deixar uma contribuição, que tinha medo de destinar um dinheiro ao cacique ou ao filho do cacique e estes ficarem com o dinheiro só para eles, que queria poder fazer uma doação para todos mas temia a injustiça social. Isso é muito legal, por um lado, porque um gringo assim observador e analítico tem cabeça fria e coração quente, e assim como este teve a prevenção, outros também devem observar se estão lidando com gente honesta. Por isso é bonito ensinarmos aos nossos amigos índios a saberem agir com honestidade, transparência, atraindo para si também gente honesta e transparente, pois do modo que interagimos é que somos interagidos, não sei se me faço entender em meu acreanês.

Andei matutando mesmo essa coisa de existirem sempre interlocutores privilegiados, mas não no sentido mais corrente de negociadores de diálogo facilitado com alguma autoridade, e sim no de uns poucos que se beneficiam ao serem representantes de muitos. E isso é tão amplo que eu não posso abraçar. O meu discurso com os amigos sempre tem sido o de que agora precisam formar parentes em contabilidade para assim eles próprios saberem fazer prestação de contas de seus projetos, pois só assim vão obter sua autonomia. Mas alerto também aos lideranças mais jovens que vem despontando aí nas discussões ideológicas de cada uma das associações ou movimentos das diferentes etnias que, é fundamental que sejam aplicados testes vocacionais nas crianças que estudam nas aldeias, para poder identificar dentre delas quem são os mais aptos a aprenderem contabilidade ou educação ou enfermagem ou o que surgir no campo da cultura, da etnobiologia e da informática, pois gerações inteiras podem se perder por um mau professor que se perpetua em sua função por ser da família próxima de uma liderança importante. É da maior importância que os profissionais do futuro surjam espontaneamente através de seus próprios talentos e interesses, o que nos possibilitam os testes vocacionais, jamais profissionais apenas por interesse econômico ou de privilégio social.

A meu ver: política sim, indigenismo sim, mas política pra lá e indigenismo pra cá, pois política é representação pública e indigenismo não, indigenismo é serviço humanitário! Vejo muito cristão por aí sem um pingo de humanidade, mas é só venha a nós, venha a nós, e ao "Vosso Reino" nada... Portanto, estou aqui rogando um pouco de humanitarismo por parte de todos, pois [aqui] tem muito lideranças procurando por sua própria renovação. O sonho da Aliança dos Povos da Floresta não é um sonho de aliança étnica? Então aí entram todas as etnias, e todos em conselho se entendem sobre indigenismo, essa coisa de política é bestagem dos brancos, eles que se iludam, serviço humanitário é assunto de relações internacionais, e a Aliança dos Povos da Floresta poderia servir como exemplo a uma Aliança dos Povos da Terra, quem sabe um dia...

O mundo agradece.

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