16 de outubro de 2009

Figurações

E os índios nas charges brasileiras, como figuram?

A Constituição da República - cujo fundamento, entre outros, é a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) - repudia quaisquer condutas que trilhem a estrada do menosprezo à pessoa humana, ou sua redução com propósitos ultrajantes. Assim, em 2003, a 3ª Turma do Tribunal Regional Federal (TRF) da 4ª Região, em Porto Alegre, decidiu que a Comunidade Indígena Toldo Chinbangue, de Chapecó (SC), deveria ser indenizada em R$ 100 mil por ter sofrido danos morais. Os magistrados acompanharam, por unanimidade, o voto do relator do caso na corte, desembargador federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, e condenaram o vereador chapecoense Amarildo Sperandio de Bairros (presidente da Câmara), a Sociedade Jornalística Diário do Iguaçu, do mesmo município, e o chargista Alex Carlos Tiburski dos Santos a pagarem a quantia. O Ministério Público Federal (MPF) ajuizou uma ação civil pública contra os três réus, relatando que o jornal Diário do Iguaçu, que circula no Oeste catarinense, veiculou em 31 de janeiro de 2001 uma matéria em que o parlamentar pratica discriminação e preconceito contra os indígenas e uma charge de Santos que tem o mesmo efeito, além de incitar a prática de homicídio contra os membros da comunidade caingangue. No desenho, um índio portando um telefone celular foge, em pânico, acossado por um agricultor e ameaçado de ir para “sete palmos abaixo da terra”. Na reportagem, o vereador afirmou que “é um absurdo os índios quererem ainda mais terra, se não produzem” (leia mais abaixo um trecho da matéria).

Na época, havia um clima de tensão e conflito entre indígenas e colonos na localidade de Sede Trentin, no interior de Chapecó, pois os silvícolas reivindicavam a incorporação de mais 912 hectares à sua reserva, mas, para isso, os agricultores que teriam suas terras desapropriadas exigiam receber indenização por toda a área e não apenas pelas benfeitorias que haviam realizado, como estipula a Constituição. A empresa jornalística, o vereador e o chargista alegaram que não ocorreu ofensa moral e que exerceram os direitos à livre expressão do pensamento, à crítica artística e à liberdade de imprensa. Bairros afirmou ainda que, devido à garantia de inviolabilidade parlamentar, não pode ser responsabilizado por opinião manifestada no exercício do cargo. Em janeiro passado, a sentença da 1ª Vara Federal de Chapecó entendeu que não houve discriminação nem incitação ao preconceito racial e negou a indenização. O MPF recorreu ao TRF contra essa decisão, destacando, entre outros argumentos, que o direito de expressão não é absoluto, pois caminha lado a lado com o direito à inviolabilidade, à honra e à imagem das pessoas e tem por limite a observância dos direitos fundamentais previstos na Constituição. O texto da apelação ainda ressalta que o direito de o indivíduo dizer o que pensa não o exime de ser responsabilizado por ofensas feitas a terceiros de forma desarrazoada. “O regime democrático garante o direito à liberdade de expressão. Tal prerrogativa, contudo, não se traduz no propósito de assegurar a impunidade da imprensa”, salientou o recurso do MPF, afirmando que os índios da etnia tiveram sua integridade moral extremamente afetada pela publicação da matéria jornalística e da charge.

O desembargador Thompson Flores adotou a fundamentação exposta no parecer do MPF, como a afirmação de que o eurocentrismo dos colonizadores que aportaram no continente americano sem respeitar diferenças culturais propagou a imagem corrompida de que os índios seriam preguiçosos e pouco afeitos ao trabalho. Conforme o texto, existem no Brasil “formas sutis de racismo e de intolerância que, mais de um século após a abolição da escravidão, continuam a produzir efeitos insidiosos contra a inserção socioeconômica de índios e afrodescendentes”. O MPF ressaltou também que “beiram a irresponsabilidade o desenho e os dizeres publicados, haja vista, principalmente, o clima de conflito que pairava sobre aquela região", registrando que, naquele contexto, “qualquer manifestação maliciosa poderia acirrar os ânimos entre as partes, possibilitando um desfecho indesejado“. Apontou também que a charge foi formulada a partir do ponto de vista dos agricultores, como, por exemplo, o entendimento de que o simples fato de o índio estar atento a inovações tecnológicas (como o celular) o desvincularia de sua identidade cultural e comprometeria o seu direito à terra. “Não há dúvida, a intenção dos demandados foi, além de ironizar, ridicularizar a imagem dos índios da Comunidade Toldo Chinbangue, bem como ratificar o preconceito à cultura indígena”, concluiu o parecer, lembrando que a divulgação da charge gerou clima de intranqüilidade entre os índios da região, principalmente aqueles cujos filhos estavam matriculados em escolas fora da reserva.

Maria Goretti Leite de Lima, em sua análise sobre "O índio na mídia impressa em Roraima", observa claramente que o elemento charge, por ser uma criação do chargista, na verdade revela a interpretação do autor dos fatos retratados de acordo com a ordem do dia da redação do jornal, podendo, portanto, ser de fácil manipulação, correspondendo assim ao desejo dos editores dos órgãos de imprensa. No caso de Roraima na época da luta do governador do estado contra a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, a visão estereotipada, preconceituosa e discriminatória do indígena desde Colombo até os dias atuais, (...) é reforçada nas charges, em que vemos o índio indefeso, incapaz, necessitado de apoio da sociedade branca para sobreviver. Por isso, o importante é saber ler a escrita nas entrelinhas, para ter o discernimento de quem são as partes envolvidas nesse jogo midiático e assim filtrar a boa informação da "apelação".

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