"Rerum Naturalium" e a Ipecacuanha
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Anchieta trata nessa sua epístola, intitulada "Rerum Naturalium", das coisas peculiares da terra brasileira (scribit de rebus terrae peculiaribus), abrangendo situação, estações do ano, ventos, tempestades, sol, chuva e duração dos dias, o peixe-boi, a pesca, a cobra sucurijuba, lagartos, a capivara (locus, tempora anni, venti, tempestates, sol, pluvia, et dierum spatia, boves marinus, piscatus, angues "sucuriuba", lacerti, animal "capivara" dictum) e, mais, ainda: as lontras (lutrae, a Lontra paranensis Rengger, existente no Brasil-Sul), o caranguejo e a cura do câncer (cancri-animalia, et sanatio a cancro-morbo), as cobras jararaca, cascavel e outras (colubres "iararaca", "cascavel", aliique), aranhas e vermes (araneae et cerucae, aliás Anchieta limita-se às aranhas e a um bicho parecido com a centopéia, a taturana, larva dos lepidópteros), as onças (pantherae), o tamanduá, a anta ("tapira" sive "anta"), a preguiça, o sariguê, os ouriços ("pigritia", "sarigué" et ericius), os macacos (simiae); o tatu, os veados, os gatos selvagens e outros animais ("tatu", cervi, cati silvestres aliaque animalia), os bichos de taquara e outros vermes (vermes arundinum, isto é, vermes de cana, de taquara, as primeiras formas da mariposa Pyralidae-Myelobia smerintha, a larva desta borboleta que se cria no ôco dos bambus, et alii), as formigas formicae, as abelhas, moscas e mosquitos (apes, muscae et culices), os papagaios, o "guará" e outras aves (psittaci, "guará" aliaeque aves), ervas, a mandioca, e outras plantas (herbae et plantae "mandioca", aliaeque), árvores de bálsamo, pinheiros e outras (arbores balsami, pinus et aliae), plantas medicinais (plantae medicinales), pedras e conchas (lapides et conchae), espectros noturnos e demônios (nocturnae imagines et daemonia), e finalmente, o Taumaturgo assinala a inexistência de deformidades entre os índios que quando têm filhos monstros, ou resultados de adultérios, sepultavam-nos vivos (non est deformitas membrorum in Indis, quia filios deformes sepeliunt vivos et etiam adulterino sanguine natos).
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Podemos antever na obra de Anchieta a difusão do conhecimento etnobotânico dos indígenas brasileiros no mercado colonialista: a mais célebre das drogas brasileiras difundidas no século XVII foi a ipecacuanha (Cephaelis ipecacuanha) e a história da sua entrada na literatura e na prática médicas ilustra bem a participação portuguesa no enriquecimento da proto-farmacologia seiscentista européia. A ação da raiz da ipecacuanha, utilizada pelos índios tupis no Brasil, foi conhecida pelos jesuítas logo no século XVI. O Padre José de Anchieta descreveu-a na já referida carta de 1560 e o Padre Fernão Cardim tratou igualmente da ipecacuanha no capítulo sobre ervas medicinais do tratado sobre o Clima e Terra do Brasil. O tratado de Fernão Cardim foi publicado em inglês por Samuel Purchas em Hakluytus posthumus (1625), nas condições atrás descritas, dando assim a primeira notícia impressa sobre a ipecacuanha. As primeiras descrições detalhadas da ipecacuanha devem-se contudo a Georg Markgraf (1610-1644) na Historia rerum naturalium Brasiliae e a Willem Piso (1611-1644), na Historia naturalis Brasiliae, publicadas juntas em Leyden em 1648. Apesar de conhecida, a ipecacuanha foi pouco utilizada até que Jean Adrien Helvetius (1661-1727) a usou para curar o Delfim de França de disenteria em 1688. No século XVIII as suas virtudes foram confirmadas por Carlo Gianelli (1696-1759) em De admirabili radicis ipecacuanhae virtute (Pádua, 1745), mas persistiram várias confusões e incertezas sobre a verdadeira natureza da raiz até que Bernardino António Gomes, depois de regressar do Brasil, a descreveu na Memória sobre a ipecacuanha fusca do Brasil ou cipó das nossas boticas (Lisboa, 1801), juntamente com a classificação feita por Brotero com base nas suas observações. O esclarecimento da natureza botânica da ipecacuanha veio permitir que Joseph Pelletier e o fisiologista François Magendie, em colaboração, isolassem o seu princípio ativo, a emetina, em 1817.
Fonte: Alfredo Gomes, in "Anchietana", 1965: Histórias e Lendas de São Vicente
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