Guará-Piranga (Eudocimus ruber)
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O jesuíta português Antonio Vieira, emérito pelo seu talento de argumentador, escreveu no século 17 um importante documento por nome “
História do Futuro”, onde relata os épicos feitos de Portugal como indicativos de um futuro grandioso reservado àquele reino cristão que um dia seria o Quinto Império do Mundo, qual florão do antigo Império Romano. Nessa obra inacabada, Vieira, do alto de uma genial erudição, utiliza profecias da Bíblia para justificar o poderio da navegação lusitana nos Sete Mares, e fala do Brasil amazônico de modo extremamente mítico:
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Ponhamos fim a Isaías com um celebradíssimo texto do cap. XVIII, o qual foi sempre julgado por um dos mais dificultosos e escuros de todos os Profetas, e é este: Vae terrae cymbalo alarum, quae est trans flumina Æthiopiae, qui mittit in mare legatos. et in vasis papyri super aquas! Ite, Angeli veloces, ad gentem convulsam et dilaceratam; ad populum terribilem, post quem non est alius; ad gentem expectantem et conculcatam, cujus diripuerunt flumina terram ejus. .
Trabalharam sempre muito os intérpretes antigos por acharem a verdadeira explicação e aplicação deste texto; mas nem atinaram nem podiam atinar com ela, porque não tiveram notícia nem da terra nem das gentes de que falava o Profeta. Os comentadores modernos acertaram em comum com o entendimento da profecia, dizendo que se entende da nova conversão à Fé daquelas terras e gentes também novas, que ultimamente se conheceram no Mundo com o descobrimento dos Antípodas; e notaram alguns com agudeza e propriedade, que isso quer dizer a energia da palavra: ad gentem conculcatam - `gente pisada dos pés’, porque os antípodas, que ficavam debaixo de nós, parece que os trazemos debaixo dos pés e que os pisamos; mas chegando mais de perto à gente e terra ou província de que se entende a profecia, também os modernos não acertaram até agora com o sentido próprio, germano e natural dela, e este é o que nós havemos de descobrir ou escrever aqui, por havermos recebido de pessoa douta e versada nas Escrituras, que, havendo visto as gentes, pisado as terras e navegado as águas de que fala este texto, acabou de o entender, e verdadeiramente o entendeu, como veremos e verão melhor os que tiverem lido as exposições antigas e modernas dele.
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(...) Porque esta terra que descreve o Profeta está além da Etiópia: trans flumina Æthiopiae, e é terra depois da qual não há outra: ad populum post quem non est alius. Estes dois sinais tão manifestos só .se podem verificar da América, que é a terra que fica da outra banda da Etiópia, e que não tem depois de si outra terra senão o vastíssimo mar do Sul. Mas porque Isaías nesta sua descrição põe tantos sinais particulares e tantas diferenças individuantes, que claramente estão mostrando que não fala de toda a América ou Mundo Novo em comum, senão de alguma província particular dele; e os autores alegados nos não dizem que província esta seja, será necessário que nós o digamos, e isto é o que agora hei de mostrar. Digo primeiramente, que o texto de Isaías se entende do Brasil, porque o Brasil é a terra que direitamente está além e da outra banda da Etiópia, como diz o profeta: quae est trans flumina Æthiopiae, ou como verte e comenta Vatablo: terra, quae est sito ultra Æthiopiam quae Æthiopia scatet fluminibus e o hebreu ao pé da letra tem: de trans flumina Æthiopiae. A qual palavra - de trans - como notou Malvenda, é hebraísmo, semelhante ao da nossa língua. Os Hebreus dizem - de trans - e nós dizemos, detrás; e assim é na geografia destas terras, que em respeito de Jerusalém, considerado o círculo que faz o globo terrestre, o Brasil fica imediatamente detrás da Etiópia. Diz mais o profeta que a gente desta terra é terrível: ad populuin terribilem e não pode haver gente mais terrível entre todas as que têm figura humana, que aquela (quais são os Brasis) que não só matam seus inimigos, mas depois de mortos os despedaçam e os comem e os assam, e os cozem a este fim, sendo as próprias mulheres as que guisam e convidam hóspedes a se regalarem com estas inumanas iguarias; e assim se viu muitas vezes naquelas guerras. que estando cercados os Bárbaros, subiam as mulheres às trincheiras ou paliçadas, de que fazem os seus muros, e mostravam aos nossos as panelas em que os haviam de morrer. (...) Em lugar de gentem conculcatam, lê o Sírio - gentem depilatam - gente sem pelo; e assim são também os Brasis, que pela maior parte não têm barba, e no peito e pelo corpo têm a pele lisa e sem cabelo, com grande diferença dos Europeus.(...)
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Diz pois o Profeta, que são estes homens uma gente a quem os rios lhe roubaram a sua terra: Cujus diripuerunt flunina terram ejus. E é admirável a propriedade desta diferença, porque em toda aquela terra, em que os rios são infinitos e os maiores e mais caudalosos do Mundo, quase todos os campos estão alagados e cobertos de água doce, não se vendo em muitas jornadas mais que bosques, palmares e arvoredos altíssimos, todos com as raízes e troncos metidos na água, sendo raríssimos os lugares por espaço de cento, duzentos e mais léguas. em que se possa tomar porto, navegando-se sempre por entre árvores espessíssimas de uma e outra parte, por ruas, travessas e praças de água, que a natureza deixou descobertas e desimpedidas do arvoredo, e posto que estes alagadiços sejam ordinánios em toda aquela costa, vê-se este destroço e roubo que os rios fizeram à terra, muito mais particularmente naquele vastíssimo arquipélago do rio chamado Orelhana, e agora das Amazonas, cujas terras estão todas senhoreadas e afogadas das águas, sendo muitos contados e muito estreitos os sítios mais altos que eles, e muito distantes uns dos outros, em que os Índios possam assentar suas povoações, vivendo por esta causa não imediatamente sobre a terra, senão em casas levantadas sobre esteios a que chamam jiraus, para que nas maiores enchentes passem as águas por baixo; bem assim como as mesmas árvores, que, tendo as raízes e troncos escondidos na água, por cima dela se conservam e aparecem. diferindo só as árvores das casas porque umas são de ramos verdes, outras de palmas secas.
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Diz pois Isaías que esta gente de que fala é um povo: Quae mittit in mare legatos et in vasis papyrí super aquas. `Que manda de uma parte para outra seus negociantes em vasos de casca de árvore sobre as águas’. As palavras do Profeta todas têm mistério e todas declaram muito a propriedade da gente de que fala. Diz que as manda o povo, com quem concorda o relativo quae, porque é gente que não tem reis, mas o mesmo povo e a mesma nação é a que elege aqueles que lhe parecem de melhor talento, assim para os negócios da paz, como para os da guerra, que tudo isso quer dizer a palavra legatos, como se pode ver na língua latina. Diz mais que vão sobre as águas em vasos de casca de árvores, porque esta era a matéria e fábrica de suas embarcações. Depois que tiveram uso do ferro, cavam os troncos das árvores e fazem de um só madeiro muito grandes canoas, de que o autor desta explicação viu alguma que tinha dezessete palmos de boca e cento de comprimento; mas antes de terem ferro despiam estes mesmos madeiros, cujos troncos são muito altos e direitos e, tirando-lhes as cascas assim inteiras, delas formavam as suas embarcações. E não faz dúvida dizer o Profeta que estas embarcações iam ao mar: Qui mittit in mare; porque, além de entrarem com elas pelo mar Oceano, o mesmo arquipélago que dizemos, de água doce, se chama na língua, por sua grandeza, mar, e daqui veio o nome que os Portugueses lhe puseram de Grão-Pará ou Maranhão, o que tudo quer dizer mar grande, porque Pará significa mar.
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Do que temos dito até aqui ficará mais fácil de entender aquele grande enigma do Profeta, que está nas primeiras palavras deste texto: Vae terrae cymbalo alarum, o qual foi sempre o que maior trabalho deu aos intérpretes e os obrigou a dizerem cousas mui violentas e impróprias, como aqueles que falavam a adivinhar, e não adivinhavam nem podiam. Os Setenta Intérpretes, em lugar de terrae cymbalo alarum, leram terrae navium alis e uma e outra coisa significam as palavras de Isaías, porque os nomes hebreus de que estas versões foram tiradas, têm ambas as significações e querem dizer: Ai da terra que tem navios com asas ou, ai da terra que tem sinos com asas. Se são sinos, como são navios? E se são navios, como são sinos?
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Esta dificuldade foi até agora o torcedor de todos os entendimentos dos expositores sagrados, de 1600 anos a esta parte; mas como podia ser que entendessem o enigma da terra, se não tinham as notícias, nem a língua dela? Para inteligência do verdadeiro entendimento deste texto ou enigma, se há de supor que a palavra latina cymbalum, com que significamos os nossos sinos de metal, significa também qualquer instrumento com que se faz som e estrondo; e tais eram os címbalos de que usavam antigamente os Gentios, que se chamavam por nomes particulares sistros, crótalos, ou crepitáculos e por nome geral címbalos. (...) Também se há de supor que os Maranhões usavam de uns instrumentos que chamavam maracás, não de metal, porque o não tinham, senão de cabaços ou cocos grandes, dentro dos quais metiam seixos ou caroços de várias frutas, duros e acomodados a fazer muito estrondo e ruído, servindo-se dás menores nas festas e nos bailes e dos maiores nas guerras. Estes maracás eram propriamente os seus címbalos ou sinos, tanto assim que, depois que viram os sinos de que nos usamos, lhes chamam itamaracás, que quer dizer, maracás ou sinos de metal.
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(...) As maiores embarcações dos Maranhões chamam-se maracatim, derivado o nome da palavra maracá, que como dissemos, significa entre eles sino e a razão de darem este nome às suas maiores embarcações era porque, quando iam às batalhas navais, quais eram ordinariamente as suas, punham na proa um destes maracás muito grandes, atados aos gurupés ou paus compridos; e bulindo de indústria com eles, além do movimento natural das canoas e dos remeiros, faziam um estrondo barbaramente bélico e horrível; e porque a proa da canoa se chama tim, tirada a metáfora do nariz dos homens ou do bico das aves, que têm o mesmo nome, e juntando a palavra tim com a palavra maracá, chamavam àquelas canoas ou embarcações maiores maracatim, e este nome usam até hoje, e com ele nomeiam os nossos navios.
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(...) Mas não está ainda explicada toda a dificuldade ou propriedade do enigma, porque diz o Profeta que estas embarcações ou estes sinos eram sinos e embarcações com asas: cymbalo alarum, navium alis. (...) Digo, pois, que fala o texto de verdadeiras asas de aves. Como aqueles gentios não tecem, nem têm panos, é grande entre eles o uso das penas pela formosura das cores com que a natureza vestiu os pássaros, e particularmente o chamado guará, de que há infinita quantidade, grandes e todos vermelhos, sem mistura de outra cor; destas penas se enfeitam quando se querem pôr bizarros, e principalmente quando vão à guerra, ornando com elas todo o gênero de armas, porque não só levam empenadas as setas, senão também os arcos e rodelas, e as partasanas de pau e pedra que chamam fanga-penas e quando a guerra era naval, empavesavam-se as canoas com asas vermelhas dos guarás, e as mesmas levavam penduradas dos gurupés e maracás das proas; e por isto o Profeta diz que todas estas cousas via e notava como tão novas: chamou as lanças sinos e sinos com asas: Navium alis, cymbalo alarum”.
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